Susana M., senhora
nossa conhecida
Chama-se Susana M. e é caixeira de farmácia. Tem um filho
que praticamente herdou sozinha de si mesma, contada e descontada a
irrelevância do masculino concorrente que com ela, há vinte e oito anos e nove
meses, o co-gerou antes de fugir (todos os homens fogem, por esta ou aquela
razão, por nada ou por tudo, a torto e a direito). O menino nasceu rijo,
pondo-se de imediato, de goela escancarada como um tenor, a berrar vida, pelo que
também de imediato começou Susana a pagar-lha.
O infante fez-se rapaz, o rapaz entrou no ensino superior,
ninguém sabe por nem para quê. Dez anos depois, ainda lá está, superior e por
ensinar. Susana paga.
De novo só na comezinha realidade quotidiana, Susana
cumpre o horário de trabalho de tão lavada maneira quão lavado é o branco da
bata profissional com que ao balcão transparece, qual anjo compadecido da
carestia dos medicamentos com que os pobres vão adiando a morte e a saúde.
Do salário, cada fim de mês, a caixeira liquida prontamente
a renda de casa e os serviços que à vida privada dão dinamismo: água e luz, gás
e lavagem das escadas, dízimo evangélico e quota duodécima da Associação de
Senhoras que Não Dizem Mal Umas das Outras. Aos sábados à tarde vai ao hiper,
onde se demora pouco e de onde regressa com os despojos triviais das comuns precisões:
detergentes para roupa & louça, água mineral, uma caixa das médias de
bombons, pescada congelada, feijão-frade de lata, ovos, leite condensado, comer
para o pássaro, comer para o inevitável gato de todas as mulheres sós, velas
aromáticas de cabeceira, revista TV, pudim em pó, biscoitos de canela e sopas
instantâneas daquelas cuja imitação de marisco nunca deixa de lhe despertar no
palato a obstinada nostalgia das férias de um Verão improvável à face de uma
toalha de areia estendida à vista do mar do Tempo perdido. Na caixa, Susana caixeiramente
paga.
Aos domingos, permite-se o luxo sensato de dormir duas
horas mais, que pela semana vai descontando em clareiras de insónia. Acumula
saldo no telemóvel: os recarregamentos periódicos obrigatórios empilham valor
por gastar à razão directa dos telefonemas mudos que não faz. Todos estes anos,
saiu e deitou-se um par de vezes com um médico quase local que fumava mais do
que interessava, depois com um professor de Castelo Branco que era tímido e
dotado de apostemas de acne como uma cartografia de pus geodésico, finalmente
com um artista de stand de automóveis que era casado mas se esqueceu de lho
dizer. Nada, enfim, nem de muito grave nem de premente notação cartorial.
Susana foi das raríssimas pessoas portuguesas que não integraram
o rebanho de ir ver o Titanic: de
amores afogados, sabia ela o suficiente para se poupar à descoroçoante
evidência de tudo na vida descambar, mais cedo ou mais tarde, em naufrágio – e
sem que algum ice-Adamastor de gelo-bergue seja preciso mandar vir pela pantalha
espantalha dos sonhos filmados.
Preveniu a tempo (tinha o filho onze anos) o cancro da
mama esquerda, de que se fez arrancar sem hesitação nem remorso. Só depois
telefonou à própria mãe a contá-lo, evitando a hipocrisia das lágrimas da
velha, um crocodilo de cera que nunca lhe perdoou ter parido antes do casamento
que aliás não chegou a contrair.
Ao deitar-se, acende a vela perfumada, abre a caixa de
bombons e esquece-se de si e do mundo com um livro fácil de literatura top-de-vendas.
Em casa, Susana M. dá de comer ao pássaro e ao gato como,
nas respectivas repartições, dá de comer à Segurança Social e ao IRS. Tem gato,
pássaro, finanças e reforma em dia.
Por tudo isto, é perplexo que vos confesso o meu
absoluto desconhecimento quanto à razão pela qual o ministro Vítor Gaspar a
odeia. A ela e às Senhoras que Não Dizem Mal umas das Outras, muito menos, e
quanto mais, do Governo.
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