Enjeite-Se a Rosa
mas a Laranja também
De não igual mas idêntica maneira, vai cada qual levando a
vida que lhe coube e cabe. Não é porém feliz verdade essa da evidência de
muitas vidas afixarem ao peito de vidro o mesmo que muitos estabelecimentos nas
respectivas montras: ARRENDA-SE,
TRESPASSA-SE, VENDE-SE. É o chamado fenómeno da LIQUIDAÇÃO TOTAL DA EXISTÊNCIA. Sou levado a lapijar esta
demonstração algo macambúzia pela visão do acordeonista.
É um cego esmoler de esquina – e da mesma estirpe dos que
Salazar, por cosmética, mandou encerrar em 1957 por ocasião da vinda a Portugal
do real casal britânico. Este músico pedinte de que vos falo, não sendo igual a
todos os outros, a todos os outros é idêntico: por ser, como eles outros, vivo
símbolo da vileza de uma sociedade que não cuida de se ver retratada a si mesma
num rosto desprovido da bênção da luz esmifrando migalhas de cobre ao pórtico
dourado das agências bancárias a troco e a compasso da lágrima ferrugenta da Rosa Enjeitada.
Do presépio orneje o burro santo e muja placidamente a
plácida vaca, que da caridade as palhinhas lhes darão, se não que comer, o que
tasquinhar. A compasso de acordeão ceguinho, é difícil todavia que envelhecer
em Portugal deixe de ser um crime, que a simples escola pública não mais seja
contabilizada como um deve mas como
um haver, que a saúde seja como
deveria ser saudação exercida localmente como direito terreno e não como
celeste privilégio de quanto é interior população, que a juventude não seja
levada a alugar e a empobrecer coração, cabeça e estômago nos modernos bidonvilles da velha estranja, que o
sistema judiciário se preste à justiça de ser justo por breve, idóneo,
imparcial e equitativo – ou que, já agora, os cronistas de última página possam
passar a tecer loas à pesca sustentada, ao direito laboral à medida do direito
humano, à potenciação fruteira de um solo úbere e à redução a desafio de futsal
da relação RTP-PSP.
Enquanto o cego toca, repugna-me o meu mesmo pendor por
assim dizer ecuménico, que à classe possidente há-de parecer descarada
comunistice e à classe despojada desperdício crasso de papel & lápis. Seja.
Seja. Não posso deixar de me sentir atordoado de impotência ante o
acordeonista, a quem aliás não obolei com um cêntimo que me não sobra nem vem.
O meu Portugal-dos-Pequenitos não é o de crianças violadas em seminários e/ou
barracas suburbanas. A minha geriatria não é a dos idosos ardendo devagar à
combustão das lareiras de pardieiros. A minha utopia é a de pão-com-manteiga,
não a de amanhãs que diziam cantores mas que afinal só tocam, mal, acordeão, e
que só não vêem porque não querem, ou não sabem, ver.
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