Hospital Toyota
Aqui há tempos, um incómodo persistente no joelho direito
levou-me a procurar um edifício público onde por enquanto ainda vão aceitando
coxos provisórios que pagam impostos. Não se tratava, é verdade, de uma dor
incapacitante, mas era das peremptórias, daquelas que, como o Toyota de
antigamente, ameaçam ter vindo para ficar.
Porque todos somos paramédicos do nosso próprio corpo, não
me foi difícil perceber que parte da caminhante algia era filha natural de
remotas patadas recebidas, há muitas décadas, no decurso da minha breve,
gloriosa e irrelevante passagem pelo futebol distrital do tempo dos pelados e
dos bufetes de balcão de contraplacado com carrascão traçado de gasosa de
pirolito mesmo à beirinha da cal viva dos recintos. Outra parte da maleita,
quiçá mais determinante e bem mais determinista, vinha daquilo que a todos nos
leva: a oxidante osteoporose da idade, cujo inexorável divertimento resume um
ex-moço a um emaranhado de arames locomotores cuja maleabilidade vai dando
lugar, com o tempo, ao desengonço roberto das marionetas úrico-artríticas. Uma
tristeza de sapatos, enfim. Lá fui portanto ao hospício.
No vidrofone das inscrições, uma arara de trufa oxigenada
quis saber o que é que eu tinha. Eu disse-lhe que vinte euros. Ela disse que
sim e botou-me o nome no computador. Eram elas as oito da manhã. Quase à hora
de almoço, um rapaz alto de fato-macaco azul assobiou-me que o seguisse.
Segui-o. Disse-me ele: “Vá-se orientando
pelas placas conforme o seu caso, ó chefe.”
Uma placa dizia: QUEIXINHAS.
Entrei. A seguir: HOMENS – SENHORAS – CRIANÇAS ATÉ AOS 35 ANOS. Fui
pela esquerda (coisa que sempre faço nas eleições com o mesmo resultado do
joelho). A seguir, LETRAS – CIÊNCIAS –
NOVAS OPORTUNIDADES. Comecei a desconfiar o meu bocadito. Como já li
qualquer coisita de Fernando Namora, fui pelas LETRAS. A esperança de topar com a simples indicação ORTOPEDIA abandonou-me de vez à visão da
bifurcação seguinte: NEOGARRETTIANOS à
esquerda e SIMBÓLICO-DECADENTISTAS à
direita. Aí, comecei a ladrar-me baixinho uma tosse de obscenidades relativas
às progenitoras dos escritores de placas. Ainda assim, manquejei pelos
imitadores de Baudelaire. Lá dentro, era pior: à esquerda, ORTOGRAFIA DE 1911; ao centro, ORTOGRAFIA
DE 1945; à direita, ORTOGRAFIA
NENHUMA À MODERNA. Por essa altura, já quase o joelho me não doía, ao
contrário da alma. Peguei no telelé e roguei à Senhora dos Aflitos, vulgo minha
mulher.
Desandei dali por portas não lidas nem contadas, até que
cheguei a um corredor de lúrido néon crepuscular ao cabo do qual a minha esposa
me esperava com aquele sorriso todo mãe que as mulheres afivelam à boca desde
meninas. Atrás dela, todavia, três portas gritavam maiúsculas.
A do centro, PS.
A da direita,
PSD/CDS.
Mas a da esquerda dizia uma coisa simplesmente
maravilhosa: SAÍDA.
Estava porém impedida a duplo aloquete.
Que eu saiba, ainda está.
E eu também ainda lá estou, bambo da perna e marreco de
toda a esperança, sem sequer a mínima de um pirolito ao intervalo.
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