04/12/2012

Mariposa (republicação de texto in O PREÇO DA CHUVA, Coimbra, 2006)



Mariposa

E então uma mariposa, grande e inóspita como um helicóptero de combate, apareceu no ar gorduroso do restaurante à cheia hora do cozido. Gerou-se de imediato um vietnam de porras, braçadas e xôs. Guardanapos anti-aéreos desfraldaram patriotismos de caça higiénica. Intrusa involuntária, e aturdida de tanto pano predador, a mariposa tentou colar o ventre à pá do heliventilador, de onde foi sacudida sem mercê por um comedor de farinheira que se tinha empoleirado com garbo e sem cautela num banco precário. Tão precário efectivamente, que deu de si, o banco, dando com ele, o da farinheira, no chão, nadir frio do zénite ventilador. Houve risadas. O tombado, caído sem querer nem remédio no ridículo, amuou e foi continuar o cozido numa mesa que não era a dele, facto que aproveitou para se reenfarinheirar a gosto e à borla.
Entretanto, a voz da razão tentava serenar os desânimos, que pela sala guardanapavam ainda com luxúria, mas tanto menos acuidade quanto mais nervo. A mariposa resistia num voo copérnico, imprevisível, desesperado e desesperador. Pertenciam, a tal voz e a tal razão, a uma senhora afinal mais esbracejadora que uma deusa hindu ou um sinaleiro lusitano, desses de antigamente que, de capacete cor-de-cueca e do alto de uma peanha de lata, desorientavam vauxhalls e NSUs a caminho do ferro-velho do destino.
De repente, já não havia mariposa. Havia, em vez dela e tão-só, um restaurante de preço popular virado de pantanas. O vinho derramado pelo chão consubstanciava um lúgubre onanismo cor de sangue, um guardanapo pendia como uma mão de velho do poster do Sporting local, duas cadeiras tombadas juntas armavam uma aranha octoplégica, tudo somado a um dono da casa perfeitamente estarrecido de desconcerto perante a evidência do prejuízo.
Mas, enfim, lá se recompuseram mesas e cadeiras, fraldas de camisa e respirações. Famílias desunidas redesuniram-se e voltaram aos enchidos, crianças de colo foram reencontradas já púberes, uma senhora amelanciou o decote farto, o telejornal foi posto em som mais alto que de costume e a ordem do mundo voltou ao mundo, o nosso mesmo mundo que só precisa de uma mariposa para soprar na gentinha o escabroso tufão da loucura. 

1 comentário:

Malena disse...

Que pena não haja sempre uma mariposa a perturbar a monotonia quotidiana...

:)

Canzoada Assaltante