Peço a
palavra
Duche tomado, queixo rasurado com pancadinhas
finais de loção pós-barba, roupa decente e sapatos não enlameados: eis como
todas as manhãs, muito cedo, me apresento ao público regional do café do
bairro.
Às seis e ¾ somos pouca gente – e sempre a mesma,
para nosso burguesinho alívio. Tenho logo direito, como os demais íncolas, ao
nome próprio e a nem ter de dizer ao que venho – que por igual me não variam o
baptismo e o consumo. Sento-me à mesma mesa da galeria e cafeíno-me devagar
enquanto faço de conta que as não espero. Mas espero-as. E elas nunca me falham,
nunca tardam, não deixam de vir jamais: as palavras de cada dia.
São os brinquedos que levo mais a sério. É porque
elas trazem pessoas dentro. As palavras trazem pessoas dentro – o contrário é
que nem sempre. Sem palavras que as contivessem, as pessoas valeriam menos do
que sinais de trânsito numa rua só pedonal. A palavra “Rita”, por exemplo,
contém duas dedadas castanhas chamadas “olhos”e um travessão de discurso directo
chamado “boca” que emanam “Senhor Daniel, então o cafèzinho a dobrar mesmo como
mand’-a-lei, pois atão não é verdade?”. É, Rita.
A palavra “Choupal” voa-me em falso e em vão para
uma casa que já não tenho numa cidade que não existe já (os Pais eram a casa,
eram eles a cidade).
A palavra “paz” faz-me sorrir por causa do Nobel
dado este ano à União Europeia, quando até a Rita sabe (e di-lo sem papas de
gaguejo) que “ó senhor Daniel, deviam mas era tê-lo dado aos nossos tribunais, a
esses é que sim, ora veja-me o senhor Daniel, o Isaltino em paz, o Valentim em
paz, os coisos do BPN em paz, os dos submarinos em paz, os casapiadófilos em
paz, é mesmo como mand’-a-lei pois atão não é verdade?”. É, Rita.
A palavra “pedra” não me faz sorrir – por não ser
palavra que se ponha nas mãos de meia-dúzia de fedelhos, ainda por cima
covardes, que, à frente de manifestantes justamente indignados mas dignamente
cívicos, rastilham na polícia uma reacção só cirúrgica no banco das urgências
hospitalares.
A palavra “mulher”, tirando a que da particular
minha é particularmente continente, é-me já, por má-sina, mais volátil do que a
branca cegonha cujo voo caia de alvinitente neve alada os virentes arrozais e
os púrpur’anilados céus de Portugal: pois que, à beira não tarda do meu
primeiro meio século de idade, já a próstata me as faz ver tão mais
formosa’petecíveis quão mais altamente longínquas e mais longemente fora de
unhas.
À palavra “esperança” não dou, até por aziaga rima,
confiança. O ovo-no-cu-da-galinha não me é filosofia benigna. Será luzinha
periclitante ao cabo do túnel do doente terminal. Ou do honesto sportinguista.
Ou do crédulo penitente de impenitente e peregrina mania do vai-lá-com-deus.
Sou mais do correr do que do fiar-me-na-virgem.
É bem verdade porém que, qual canavial inclinado pela
tormenta eólica, tremo o meu bocado à plural palavra que tão singular é: “filhas”.
Rosas ambas de alvura a mais nívea, vivo lírio cada uma cujo caule declina a
etérea desinência que me levou a ajudar a fazê-las de olhos fechados e braços
abertos, fazem-me, agora que deram já as sete e meia, merecer da manhã nova a
sagração boa e o bom verniz de estar vivo.
Assim é, pois, que dou por mim cuidando de não
atirar, afinal, pedras à esperança, indo em lugar disso com elas, filhas e
palavras, um destes dias de melhor sol, a Coimbra rever a casa que era dos meus
Pais e que eles eram, sítio onde deveras se aprende o que, em letra e espírito,
mand’-a-lei.
Não é, Rita?
3 comentários:
E a palavra "beleza" passará a fazer-me lembrar a tua escrita!
Quão gentil, Malena. Obrigado.
Enviar um comentário