Melão ao mar
Tirando os imbecis, que nem a si mesmos entendem, julgo
que toda a gente pode compreender toda a gente. A ler vamos.
Rodolfo Hilo de Astona, muito velho e quase cego,
revisita, no pino do Verão, a outra cegueira: o mar. No regresso a casa, ouve o
vento no sangue, o trabalho do sal na areia do coração. Pensa: “O ruído é o silêncio que não sabemos ler”.
O velho mete-se em casa e cala-se para dentro. Ouve o vento repetir nos
pinheiros a gravação das ondas da praia.
Maria de Jesus Taborda, vendedora de melões, dormita no
abafo da sombra da barraca de canas à beira da estrada nacional. Um chinelo de
borracha pinga-lhe do dedo grande. Duas moscas disputam-lhe a orelha,
despertando-a. A mulher mastiga em seco, abre um olho e descobre-se viva num
sopé de ouro branco: os melões por vender.
Conheci estas duas pessoas numa paragem de autocarro. A
vendedora de melões ajudou o velho a subir para a viatura. Deitou-lhe a rude
mão ao fraco sovaco e içou-o com inesperada delicadeza, como se erguesse do
prato uma codorniz grelhada. Maria escolheu para Rodolfo um lugar à janela,
sentando-se depois ao lado dele. Sentei-me atrás deles para ter que vos contar.
Ela disse: “Os
malandros dos incendiários, era amarrá-los a um pinheiro e deixá-los arder.”
Ele respondeu: “Moro ao pé de pinheiros.
À noite, parece o mar.” Ela perguntou: “Um
pinhal ao pé do mar?” Ele esclareceu: “O
pinhal é o mar.” Ela: “Antes fosse e
que os incendiários não soubessem nadar!” E ele: “Vejo que compreende.” Maria, feliz, disse: “Quando passar pela minha venda, dou-lhe uma peça de ouro branco, meu
senhor.” Rodolfo aceita: “Adoro
melões, minha senhora”.
Não é difícil perceber os outros. Difícil é termos alguma
coisa para lhes dar. Nem que seja um melão. Nem que seja o mar.
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