37. PEDRA E ’SPUMA
Leiria, tarde de sexta-feira, 19 de Outubro
de 2012
III
Aí o temos, o fim da natural luz da
jornada.
O fim é natural. A Natureza não é final.
Não é ainda o frio, não é já o calor.
Comprei pão.
Na iminência do regresso a casa (meu
recomeçado reduto final também), faço ’inda por recolher um pouco do
mund’humano.
Três homens idênticos à idêntica
humanidade, mesa ao lado dextro. Tomam os três whisky do bom com um, dois dedos
de água lisa. Os três salvam o País. Estão na fase doutrinária do encopanço. Um
é de óculos crespos, testa abrindo clareira alta. Outro é vasto como uma dorna,
casaco encarnado de lã, coxas continentais, sapatos um bocado reles. O outro é
do tipo bancário wanna-be-banqueiro. Mas o whisky é de boa marca, deixemo-los
falar.
Derredor, a progénie é típica do
entardenoitecer:
um casalito de cores cinzas de mãos mútuas
e comovidas umas com as outras;
uma rapazita de semblante espertote
folheando revista que não lê;
um rapazote de axúndias que o abonacham, de
uma bovinidade delicodoce no falar, bigodito bistrado, fuliginoso, semeado ao
vento;
uma mulheraça de pé, pernas mola-da-roupa
juntas à cinta por os arames fartos da cueca ampla.
É, alfim, um mundo bonito. Ainda bem, posto
que único. Vede comigo:
com a mão esquerda ocultando a boca, um
rapaz de jaqueta cor-de-pombo telefala imóvel. Ri-se, a mão vibra. É corado,
rubicundo: talvez de falho bombear seja dele o coração físico. É quase magro de
mais. Nem formoso nem hórrido: um tipo como eu e como tu, não andam propriamente
por aí georgeclooneys a dar com um pau.
Entretanto, a espertota da revista adquiriu
companhia: é uma dríade de bom cabelo lacado, de que o quieto verniz fulge
ilusória dinâmica. As duas já conversam. Fazem-no baixinho e em compenetração –
não custa lobrigar que é de efebos donzéis feito o assunto delas. Junta-se-lhes
uma terceira, cuzito magro, varetas tíbias, disúrica talvez, ar de quem por
melomania tem tão-só o toque da Nokia.
Mas, enfim, moças: bonitas portanto, por mais inócuas.
Entrementes, o trio whiskeyro dá-lhe forte
no malte. Comemoram os respectivos desaniversários de 364 dias. Fazem bem.
Suspeito-lhes esposas amaras, avaras, secas e ínvias. O tempo e os casamentos
não vão fáceis, tirante o meu.
Achega-se agora ao café e à página um mote
veramente interessante: uma gansa volumosa de carnadura apertada em boas
gangas, claras redondezas pró-matriciais não há-de tardar muito, se acaso não
desovou ossos já. Sei que se chama Clotilde porque assim a apodou a do
casalinho de cinzas. Boa para namorar aos
domingos, como dizia um ex-amigo que tive no século passado. A Clotilde
fuma daqueles cigarros que a Adelaide do Adelino fuma também, uns assim para o
branco, o comprido e o fino, acho que aos dez em cada maço. Gosto das botas da
Clotilde: de cabedal caçador, tipo medieva sala-de-armas. Nunca saberá, a
coitada, a feliz, que me perde.
Não perco eu mais nada: já os ácidos me
revoluteiam o odre gástrico, que toda a tarde enferretei de café bem torrado.
Faço a verdade de conta: que nada é comigo, pelo que ensaco os pertences
papeleiros e as ferramentas lápis-tintureiras, pelo que pago, pelo que vou para
casa, onde as pequenas plantas, em pequenos vasos, ajardinam o lancil banal e
feliz da cozinha, cuja janela abre para a rua leiriense em pleno, valha-nos
Deus, século XXI.
(E ao chegar a casa a notícia da morte de
Manuel António Pina. Viva Manuel António Pina.)
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