46. ONZE IMAGENS E OUTRAS INUMERABILIDADES
Leiria, quinta-feira, 9 de Junho de 2011
Imagens aleatórias perpassam translúcidas (peixes claros em rio claro) pela mente que me é quem sou. Vêm de livros lidos, filmes vistos e sonhos sofridos. Enumero hoje algumas:
- Um rapaz a cavalo; uma rapariga a cavalo; por uma álea de plátanos antigos, altos e muito vivos folha-farfalhando ao vento quase forte; dirigem-se a uma aldeia encastoada em colina; a capela é no cume e brilha como um giz-verniz; à esquerda da leitura (ou do filme; ou do sonho), um ribeiro semelha uma cristaleira deitada; rumor plumitivo (e primitivo) de aves invisíveis; um cão deitado na ponte de pedra desperta ao som dos cascos dos cavalos; a rapariga vai de lágrimas felizes; o rapaz vai de cigarrilha-creme na boca bem talhada.
- A minha Irmã a cantar numa madrugada verde (vai nevar, ela pressente-o na música, os anos idos caídos aos pés dela como folhas outonais).
- Um guarda-nocturno chamado Germano José Catre Capim com um cão chamado Melchior JC Capim.
- Aos quatro anos, copio o texto alemão de um catálogo ilustrado de maquinaria agrícola descoberto na oficina do meu Pai entre côtos de lápis n.º 1 para desenho e programas das Festas da Rainha Santa para 1942, 48 e 52.
- Retrato compósito de raparigas ante-amadas: caleidoscópio, cornucópia, prisma: Pandora.
- Cinzeiros arrefecidos na varanda de um quarto devoluto após um ano à espera de uma morte e de um (outro) abandono.
- Crianças vestidas umas de encarnado, outras de verde-litoral, outras de azul-submarinho: levando gelados numa das mãos, balde & pá na outra, caminho da praia.
- O Senhor dos Passos muito roxo – como um bêbado crónico.
- Do céu nocturno, no avião, o rapaz recebendo a visão de rios de ouro em fusão: milhares de carros saindo de Madrid.
- Quatro marinheiros bebendo em silêncio, manhã cedo, num bar de Alcântara ’inda sem putas nem navalhistas àquela hora.
- Um casal feliz.
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Estar coisa de uma hora a ler o jornal, uma hora sem espasmos musculares nem oxidação úrica das articulações – é quanto pede Germano José Catre Capim ao mais agnóstico dos anjos-da-guarda: o dele, que se chama Melchior JC Capim.
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2 comentários:
Uma rosnadela alegre a todo este surrealismo que me surpreendeu... :)
Obrigado, Maria João.
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