Ao que chegámos
Chega-se por vezes a uma mulher como ao fim de um dia de Verão. Emoldura-se-lhe o rosto com ambas as mãos, agradece-se-lhe o ter ela nascido-nos. Não longe, uma fonte acetina de som a respiração das árvores, crianças lápiscoloram pátios, um avião a jacto traça o giz altíssimo do crepús-azul-culo, um viúvo à varanda pensa na mulher a que pertenceu como um fim de dia, um fim de Verão.
Dos nossos filhos chega-nos por vezes o telegrama de um mimo, uma película-diamante de amante-água-de-olhos, um recado feliz como uma concertina, um pássaro molhado horizontalando a chuva, uma hora na praia, um fruto encarnado em mesa atoalhada a branco.
Um cão (um simples cão) chega a ser retrato da galeria familiar, companheiro fidelíssimo do nosso coração ambulatório e da nossa emigração mental: e desse cão os olhos ambarinos humanizando-nos as passadas com que todos os dias viassacramos o périplo venerando de Nossa Senhora da Solidão.
Quantas vindas uma vida é? E quantas idas? No remanso finalmente sereno da jornada, engendro esta música em sonoro azulejo: porque só o amor pode salvar um homem do descalabro de estar vivo sem uma mulher, um cão, um filho ou um Verão.
O resto conta muito pouco e quase nada: a fealdade autista dos desgovernantes, a idiotia seguidista dos acólitos, a superstição institucional e acarneirante das religiões (todas elas), a aguadilha maninha de tanto assessor-ascensor, as discursatas moralizantes dos rapa-o-tacho, as dívidas colossais dos anões camarários, os poluidores dos rios e a RTP.
Na antemão de a mão (re)pousar o lápis, o que é isto, o que é isto? É um rumor de fonte, um alarido álacre e colorido de crianças em pátio, a respiração abnegada da nossa de cada um mulher – e um cão só nosso, por uma hora só nossa, numa praia que é de todos, sob o giz-a-jacto do derradeiro azul, do derradeiro Verão.
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