27/04/2011

Rosário Breve nº 204- www.oribatejo.pt

A Noiva


Aqui há uns anos, um rapaz e uma rapariga marcaram casamento. Trataram das coisas comuns que havia a tratar. Quanto às particulares, trataram-nas particularmente. Ela arranjou um vestido branco. Ele mandou fazer um fato noutra cidade. Um dia antes do domingo marcado, o noivo meteu-se no carro e foi buscar o fato. Nunca mais voltou.
Nunca mais voltou – não porque se tenha arrependido, desistido e fugido. Nunca mais voltou porque teve um acidente mortal na estrada. Em casa, solteira ainda e para sempre, a rapariga ria-se com as amigas experimentando as rendas brancas, o branco chapéu, a cauda nívea do vestido inicial.
Quando a notícia chegou com a morte pela mão, a rapariga viu-se sozinha numa praia com muito mais areia do que mar. Só se apercebeu do mar pelo som dentro da cabeça: uma espécie de asma eléctrica que se ouvia em espiral-dentro da cabeça, em espiral-dentro da cabeça, abafando o coração.
Desmaiou, levaram-na para a cama, chamaram um médico. Ninguém se lembrou de que ela continuava vestida de noiva. Conseguiram acordá-la por alguns instantes, o tempo suficiente para engolir dois comprimidos com um pouco de chá de folha de laranjeira. No dia seguinte, o domingo continuava marcado.
O sol cegava na cal da igreja. A multidão enegrecia de roupa a própria sombra. Rezada a missa de corpo presente, trouxeram a urna para a luz inclemente. As flores sufocavam o carro fúnebre. Então, alguém gemeu de surpresa. E depois o silêncio ferrou os colmilhos na multidão: ela tinha aparecido para acompanhar o funeral. Sempre vestida de noiva.
Ninguém sabia o que fazer, de modo que ninguém fez nada. Ela tinha um ar calmo. Aceitou um lugar no banco de trás do carro fúnebre e esperou. Já então, ela era especialista na difícil arte da espera que se chama desespero.
No fim do enterro, trouxeram-na para casa. A mães e as irmãs conseguiram que despisse por si mesma o vestido de casamento. Dobrou-o muito bem dobrado e guardou-o na caixa. Depois, guardou a caixa no armário alto. Guardou o chapéu na caixa própria. Depois, guardou também essa caixa. Sentou-se na cama e sorriu um pouco.
Ela celebra, até hoje, o aniversário do seu casamento. Veste-se de noiva e vai ao cemitério. Depois, volta para casa, despe-se sozinha, guarda o vestido na caixa, guarda a caixa no armário, guarda o chapéu na caixa, guarda a caixa no armário. E depois fica à espera dele mais um ano.

Mais coisas

22. LENA E OUTRAS PEREMPTÓRIAS SENHORAS

Leiria, quinta-feira, 21 de Abril de 2011

O fado reforça na manhã a vadiagem peremptória do (m)eu-corpo. Vou a Coimbra hoje. Falei com senhoras, uma de Marvão (Portalegre) por Leiria radicada vai para lá (ou cá) de quarenta anos, chama-se Dona Guida; a outra chama-se Dona Rosa, não sei (ainda não sei) de onde é. Também falei com senhoras chamadas Dona Leonor, Dona Alda, Dona Amélia, Dona Sandra e Dona Alexandra. Por serem todas irmãs, as senhoras são todas donas de si mesmas em aparato de relação ginoglotológica, por assim dizer. Plasma-se agora uma pátina de sol, agora sendo as 12h36m. E a vida teima a vida.

*

Passa ao lado do Mercado de Santana a carrinha-frigorífica do Talho Lena. Conduzida por uma senhora, mas por estas bandas Lena é nome de rio. Sentado em degrau lateral do antigo BNU vendo passar as coisas mundiais: carripanas, gente absorta, camisas e blusas de cores emaciadas pela iminência pluvial, rapazelhos de patins-em-linha, nuvens sobre azul à genérico dos Simpson, óculos de lentes fumadas à Brad Pitt, farolins cagados pelas pombas, personalidades omnívoras palitando anfractuosidades tártaras, toldos de esplanada como pálios de paradas procissões ao orago do consumo, predomínio cinzento-metalizado dos bólides pequeno-burgueses, pombas recortadas à folha-de-flandres volante, carrinha da ECF Telecomunicações, cinco freiras de azul num Fiat Punto, o táxi 103 da praça de Leiria (Mercedes C220 CDI, 47-GZ-60), um cavalheiro com mica porta-procurações e cabelo ralo como uma escova-de-dentes de há dois matrimónios – e a minha Senhora, finalmente, que se faz hora de almoço e ainda não fomos ao pão.

23. RISCO

Leiria, sábado, 23 de Abril de 2011

Por um dos lados da minha cabeça, a ideia da morte-com-sofrimento de amigos é intolerável. Quinta-feira à noite, esse corvo mexeu as asas nauseabundas: há risco em linha no que respeita ao Aniano. Li o relatório da tomografia axial computorizada. Pousei devagar o copo, atirei para a esquerda a baforada tabágica.

24. FAZ HOJE

Leiria, segunda-feira, 25 de Abril de 2011

À varanda, fumando um cigarro sem destino, considero com a pele algumas diatribes quanto ao futuro compósito de múltiplos passados meus. Jornada ampla de sol em plataforma e torno. A casa, protegida de persianas, guardava-se a si mesma ao fresco. Cozinhei devagar, folheei um livro, fui redescoberto por um manuscrito de Dezembro de 2001, relemo-nos um ao outro. Trabalhei no Ideário terminado (entradas 15 e 16). Saímos depois a tocar a brisa aprilina. Disse-lhe:

– Faz hoje dezassete anos, sepultámos o meu Pai.

Agora, este caderno cresce como um fruto para meia dúzia de bocas. Pedem-me a presença em Coimbra na próxima quarta-feira, 27. Lá estarei, em princípio. Cá e lá – mais durantes e por-enquantos. O meu trabalho é este: estar vivo por escrito. O resto é a crestomatia das minhas circunstâncias, nada de especial nem de outro mundo. Na esplanada, um rapazola com um paralelipípedo de merda nas mãos: um “romance” daquele locutor de televisão, o coiso das orelhas. Tempo do vazio, era do frívolo – estes anos da “imagem”, do “à tona”, da acefalia orgulhosa de si mesma. Nada de importante, enfim. Melhor do que a merda é o dia: bom sol instantaneando ideia & emoção, perspectiva & perífrase, cor & distância, segunda-feira & feriado. Bebe-se uma mini, fala-se de irmos ao pão, as coisas decorrem muito fluvialmente como se manassem deste caderno-nascente. Talvez deveras manem. Estou atento. Do que vier, darei conta.

*

Não há quem possa segurar a onda do mar com as mãos, ela é irreprimível, há que resignar-se toda a pessoa à força dela, o mar aí está para ensinar a morte enquanto demonstra a vida, é natural dos rios rumarem a ele para morrer como se fossem salmões, este ciclo não pode ser reprimido, por mais que a alguém isso custe como dar os olhos da cara ao rosto da noite, não há como nem quem.
Gente moça vista daqui través vidraças passeando pelo jardim municipal, também essa mocidade é duplamente rio e onda-do-mar, usam as mãos como antenas que aprendem a efemeridade dos sinais, e no entanto também os sinais são irreprimíveis, os sinais-gestos que afloram os rostos-éter, muito pulsa a vida na pulsão da morte, a estiagem convoca atlanticamente os corpos para o litoral literal do país lateral, as mãos vão a bordo das pessoas-antenas, eis senão quando segurar a onda do mar intentam, coitadas.
Em salões acortinados a damasco, os nomes dos mortos fazem-se bibelôs de faiança, bules adejam chás perfumados que não podem senão arrefecer na suspeita do exterior jasmim, ou jardim, ou mar sem fim, não há como reprimir a mão que alcança o bule e o retrato, o dossel e a baixela, a prata e o pó, não há quem nem como.

26/04/2011

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 20

PELO CANO

Leiria, segunda-feira, 18 de Abril de 2011

In memoriam do grande cantor espanhol

Naveguei o dia.
(M)Arejei manhã muito cedo, como apraz ao marinheiro honesto.
À boca do entardenoitecer, cozinho ervas e ervilhas em silêncio.
Desta vez sim, a tempestade cumpre-se: majestosa, negra-azul como um corvo descomunal que trucida o Levante em nome do Poente.
Ponho o falecido-vivo Carlos Cano a pasodoblar a restrita humanidade só dele.
Já choveu sobre o derradeiro grés da visão.
A noite arrebanha suas crias: os deambulantes sem livros, os cães exercendo suas memórias alimentares, o polícia-de-giro espreitando da rua, pela montra, o futebol a cores do serão televisivo.
Silhuetas demonstram a fixidez pétrea das igrejas, o sono mastodôntico dos autocarros estacionados como desde/para sempre nos parques que a Lua estiva de cutelos.
Naveguei para isto o dia: até Carlos Cano, até
Maria la Portuguesa.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 19



19. O CORVO PELA POMBA

Leiria, domingo, 17 de Abril de 2011



Pela manhãzinha, a brisa fresca beneficiava a luz nova. À flor do Lis, patitos eram como brinquedos felizes. Dois pescadores à linha sacavam peixe que o Sol tornava numismático-cintilantes. Derivei depois pelo sossego dominical das ruas até chegar a este café, cuja dona acaralha interjeições de rico teor obsceno. Não tem papas no linguajar, a magana. Os foda-ses e os lá-co-caralho fazem-me feliz, confesso. Espero o retorno de Isabel pela hora de almoço. É segura, a luz da hora: 11h14m.

*

Das senhoras mãos tuas recolho
a esmola do afecto, a branda carícia.
O coração me sequestraste, mas a polícia
não sabe. Roubado, com cordura te olho

retratada em a pura mansidão de cada mão.
Viceja entre nós tanta mútua humanidade,
que intemporal se nos volve a condição:
pois que nos queremos sem cadastro nem idade.

Pascais, as pombas lêem o chão a pedra assoalhado.
Eu, eu ando-te por aqui e por todo o lado.
Escrevo de tua passagem os suaves sinais:
não menos que isso quero – nem mais.

*

Noite do Domingo de Ramos, Leiria, 21h14m. O Lis segregou sua noite contínua e rumorosa, não há pescadores à linha nem à vista, patos e peixes dormem seus sonos puros, pré-históricos.
Por ruas mais escuras, solitários parecem-me irremediavelmente desavindos com a vida. Maus dentes, maus cigarros, más roupas: sombras tristes que entristecem quem as sente assim verticais. Fui já um homem assim. Tenho-me evadido como posso de tão pouco gregária comunidade. Faço por fazer mais corpo e menos sombra. Não é fácil – não é fácil para ninguém que por esta ou aquela razão se desalinhasse com isto de viver. Que no meu outono pessoal, enfim, possa trocar no ombro o corvo pela pomba.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 3

© Andre Kertesz
Wandering Violinist, Abony, Hungary, 1921



3. CAMINHO DO QUARTO-CASA

Coimbra (Associação Recreativa da Casa Branca), domingo, 20 de Março de 2011

De novo, ou ainda, cresço para imagens mentais
com que a pessoal volumetria estabeleço, querida.
Pano de laranjeiras recebe em cheio a Lua Cheia.
As pessoas – ou são muito felizes, ou nem pensam nisso.

Ou nem por isso. Deixo andar: é domingo, anoiteceu,
vi hoje o Rio, ele cintilava través os patos boiando,
era bonito e triste como quase tudo na vida,
querida.

De momento, estou livre para novas, ou ainda, incursões
no escuro. Manobro orquestralmente, às claras.
Isto podia ser pior do que os ontens, querida
– e nem sempre é possível recorrer à voz.

Uma casada de cabelo palha-incêndio, aquela,
mostra imaculadas unhas ao cabo de alvos dedos.
É senhora sem medos: atira sorrisos desenhados
a cinzel na pedra da conversação masculina.

Reparto os despojos dos nossos defuntos velhos.
Uma pouca louça, cobertores, uns poucos livros, pão.
Estamos, mortos eles, no topo da carreira.
Isto é natural, é assim que tem de ser – e é.

O poder palavroso da tristeza merece paciência.
Merece-a sim, querida: olha-me estes tantos prédios
urbanos desafiando a eternidade glauca do Tempo.
Uma igreja menor, uma gelataria, domingo à noite

recolhendo crianças divorciadas a ninhos de saias,
carritos irrelevantes parados nos semáforos sanguíneos,
um faz-por-ti-mesmo, um tem-te-não-caias,
o terror dos sonhos os mais longilíneos.

Ouve a Lua, o rumor dos cães, ouve comigo o rumor
da Lua, ouve os cães comigo. Verifica, a meu par,
a violência verbal da ignorância dos homens, deles
o rumor lunar, canino, violento como eu te sou.

Tentar dormir suburbanamente no escol de mendigos.
Ser uma pessoa derivada-ao-facto, uma é-assim-pessoa.
Estas mantas pesando nos ossos transparentes
como retinas de égua-madre – ou como água,

apenas, Mãe.
Algumas (muitas) vezes, patadas de pus na base do
coração, querida. Outras, por minha vida, não.
Frango guisado com massa, bolachas de água & sal,
um quarto iluminado a roxo numa (c)idade de Portugal.

Volveram já porém as andorinhas ríspidas e rápidas,
fulgura já o centeio solar em medas de trigo-luz.
Sim, querida, que nos valha Jesus: tépidas
águas caminho sobre, caminho do quarto-casa.

Era uma vez em Coimbra, em Junho


© Tina Modotti
Escadas (México, 1925)




MARGINAL PASTOR DE ÁGUAS ou S’UM DIA EU FOR À LUA (fragmentos)

Coimbra, quarta-feira, 16 de Junho de 2010


Vivos chãos sobre chão de mortos.
A Cidade toda escrita: ruas, lápides.
Vesgos olhos, dentes tortos.
Vestais antivirgens, elfos, sílfides.

Sol brancamarelo em puro azul.
Ramagens frescas farfalhando.
Eu sou de uma terra anil
– e vou andando, e vou andando.

(…)

Campos estendo, os olhando, quais toalhas. Dei hoje ração reforçada às aves (um melro, três pardais) no relvado quase sob o viaduto do Norton de Matos: ao pão, uni arroz seco. Espero em vão ser remunerado de ter vivido. (…)
Recebo a graça alta: todo o azul. Verdejo entre árvores frescas, que atiram ao chão frescos mantos de sombra. Eu sou o homem na Cidade, como na canção. Porto uma população dentro. Serotonina e nostalgia me electrificam. Se calhar, sou feliz – e não o sei. Sei poucas coisas. Colhi ontem do rio o montante de solidão bucólica: pastor de águas serei, marginal.
(…)
Cordura, que não estultícia, pratico, vivente. Esta é a minha ora-vida. O olhar quieto, reflexivo, nas bombas de gasolina em frente. Uma revoada de páginas (próprias como alheias). Cidadão entre cidadãos. Inspector de nada, pronto para tudo porém. Ter ido ontem para haver sido, amanhã. Ensaboar o corpo solitário, dar-lhe de comer como a pássaros, ser, pelo corpo, pensado.

(…)

De tarde. Quem me dera ser um Vermeer palavroso capaz de perfilar em escrita este perfil: rapariga auxiliar de frutaria debruçada sobre as caixas multicolores em banca no passeio. Augusta humildade a enforma, pele e gestos, avental e liso cabelo apanhado atrás por fita azul-celeste. Mocassins baratos figuram dela os pés breves. Mãos de trabalho, porém: e viçosas de fadiga. Agora, coisa de há instantes, este acontecimento maravilhoso: em puro vigor, uma revoada de pombas. Nutridas, cor-de-chuva-de-Novembro ao pleno sol de Junho: maravilhosas.

(…)

Nem toda a dor passa, nem toda é passageira na viagem de cada um(a).

(…)

Tinta, papel, lápis, mão direita: nunca fui nem serei mais do que estas quatro coisas.

25/04/2011

ESTE DIA, À PASSAGEM - Coimbra, terça-feira, 15 de Junho de 2010



Que a vida não é estadia – é passagem. Que a vida não é estadia – é este dia. O dia que vivemos – pode ser o nosso primeiro como o derradeiro nosso. Grande parte do encanto dele reside nessa incerteza e em tal falta de certidão.

*

Fui esta manhã, quase de fugida, ao Louriçal. A Jessica tem exame de Português amanhã. É uma menina encantadora, os nervos afectivos (e afectuosa) à flor da pele – flor da flor. Gosto muito dela. Escreveu uma composição sobre a importância do Avô na vida dela. Fez exercícios de pontuação, hifenização, acrescentamento e supressão de sons (aférese, síncope, apócope; prótese, epêntese, paragoge – tenho de lhe ensinar a haplologia). Agora, a minha vida volta a ser Coimbra. Ei-la, luminosa e rosa, melhorada pela constância vívida do Rio, aérea de pontes, funda na altura do amor (como todos, insensato amor) que lhe tenho.

*

Vejo uma mulher jovem. Tão feminina, caramba, tão feminina. Açucarada geometria lhe enforma as ancas de viola. Boa tez de recebedora solar, lábio carmim, toda alabastro de nervuras, mãos longas quase – mas quase só – de mais. Calça feltro, andando como se sobre papel japonês. Telemóvel igual a um que tive em outra das minhas tantas vidas. Olhos grandes, olhos ruminantes, negros, envernizados a água. Ela pensa. Vê-se ela pensar. Blusa de linho branco, que lhe assenta azul como uma nuvem no céu de Junho. Criatura de uma limpidez que faz bem olhar. Vinte e muito poucos anos – como as minhas filhas, não tarda nada.

*

Teleporta-se-me o pensamento até bandas do Picoto. Picoto é nome de monte – quanta montanha que a minha mocidade pôde. Tenho de voltar a pedestrá-lo antes que os patos-bravos, desprovidos de qualquer urbanidade, o urbanizem. Território emocional, totalmente território emocional. Os Amigos-para-sempre exploraram-no comigo. No planalto coroado pelo marco geodésico, futebolou-se muito. Jogou-se muito à bandeira, subiu-se muito papagaio de papel-de-seda, meia cana e cola artesanal de farinha em água. Que importância terá isto? Nenhuma e toda. O Américo enterrou nele o cão chamado Dourado. Nele medíamos, ao cotejo, as peles das piças. Éramos meninos todos, toda a gente era a meninice toda. Calçávamos botas de borracha, envergávamos capas de plástico sem nada escrito, pescoçávamos colarinhos de popelina ao norte de camisolas à poveiro. Os invernos não eram, então, uma algia d’alma. Eram tão-só a falta de andorinhas. Todos os pais eram vivos e robustos todos. As mães todas, todas eram sopeiras caridosas que por vezes nos esbofeteavam em transes do mais puro amor. Sou da Pedrulha, sim – mas é provável que, mais ainda, seja do Picoto.

*

Se retornares ao país devastado da minha vida
(esta noite, por exemplo),
toma comigo um café-creme, de baunilha
uma bolacha, um hausto finiprimaveril.
Tenho de noites, sabes, mais de mil.
Manhãs me não têm faltado, excepto
a de vires de noite.
E eu de lume ’canço sinais,
como o António d’Alfama,
até no duro gelo.
Perlada de frio suor, a minha espinha
é a deste homem que sou em corpo,
escrito sobre tudo o mais, à guisa
de melhor destino.
E assim sem ti me tem sido desde menino.

*

Passo perto de estendais com roupa a enxugar. Cada camisa me acode uma crucificação. É tudo forma sem corpo – como vidas (despro)vidas de sentido. Não achas isso, João Saraiva Pinto? Não vês assim, Joaquim Jorge Carvalho? Não é mesmo tal, Rui Antunes Correia? Só pode ser, não é, Fernando? Penso que passo sempre, perto de quase tudo – mas nunca entro. (Isto, à excepção de alguns feminis convívios edulcorados dos meus vintes/trintas.) As mães penduram as intimidades na cord’arame: a trivial cueca, a meia calcânea, a ceroula rude, o desmantelado soutien cor-de-ir-à-loja. Os bairros são todos a preto-e-branco, excepto nos estendais: grita lacre camisa axadrezada de azul; plasma índigo a calça tipo-levi’s; emana sabão esfregado a peúga roxa; e é toda uma aquarela pobre que meus não ricos olhos deslumbra.
Sei que vou por aqui: Coimbra, quintais e estendais e vendavais de renda limitada. No fim do Outono de 2001, a par do meu Amigo Tiago Fernandes, pintei o Bairro de Celas-a-Velha, fácil labirinto de casinhotos murados que o nunca por de mais cuspido e vituperado Estado Novo mandou construir na sequência da destruição da velha Alta por causa da Universidade. Pintámos os muros a branco e as grades a grená. Denunciei, com óptima consequência, a uma televisão populista o caso da Estrela. Antiga pastora, vivia reclusa na casinha que lhe coube. O chulo de um sobrinho (ou afilhado, ou a puta-que-o-pariu) alimentava-a a café chilro e a fatias de pão velho. Trancava-a. Fazia da casa dela armazém das grades do café-assa-frangos que ali explora. A solidão e o doutor Alzheimer maluqueceram a Estrela. Estrela Barros. Velhíssima, disse-me assim:

– Estou à espera que o meu pai volte, hoje está-se a demorar, o meu pai, o meu Pai.

Telefonei para o tal canal. Vieram. Telefonei para a PSP. Também veio. Lixei o esquema ao filho-da-puta. Ainda hoje me sorrio disso. Levaram-na para um lar decente, mas suponho que não encarceraram o parasita na casa mesma das duplas grades: as de cerveja como as do cativeiro da Estrela.

*

Centelha de ar fresco em um dos flancos do eu-corpo. À passagem, que nunca à estadia, a centelha d’ar. Revoa em torno a formiga-de-asa: pópulo-coimbra. Carritos, senhoras infiéis ao sacro mapatridemónio, criancinhas-bibes, laranjas públicas – e a RTP Memória outra-vez-outra-vez-outra-vez-outra-vez Júlio-Nicolau-Isidro-Breyner. Eu nunca fui a Praga. Irei jamais, o mais provavelmente. Oslo já foi Cristiânia. Independência da Noruega, 1905. Olha a Rua Afonso Duarte, poeta que Carlos de Oliveira venerou. Olha esta indecisão: nem sol, nem água. Barrolamacenta melancolia tempestiva, jura de cordas d’água nas persianas, langor dos divórcios, filhos deitados à voragem-lixeira dos cursos técnico-profissionais. Centelha de ar fresco etc. Tal é a vida que, indo, (le)vamos.

21/04/2011

Ideário de Coimbra - 178 - fim do livro. (Agradeço a V. companhia ledora ao longo da produção (e) de nove meses. A vida continua. Este blog também.)


© Gertrude Käsebier (1852–1934)
Blessed Art Thou among Women (1899 )



 FINAL



Adões, segunda-feira, 7 de Março de 2011


A Mãe morreu-nos quando passava meia hora da meia-noite de 3 de Março de 2011: trinta e nove anos exactos sobre a morte do pai dela, o meu avô Carlos dos Santos.
A Família e os Amigos fizeram-se regaço para que a Mãe fosse ao colo dormir com o meu Pai. É a mesma, a campa – de modo que, pelo meio-dia do dia 4, sexta-feira, toda aquela cerimónia de investidura final me pareceu o que de facto era e foi – o segundo e derradeiro casamento deles. A Amélia trouxe-me da Figueira uma caixa de queijadas e de pastéis de Tentúgal, oferenda que nunca esquecerei.
No final, depois de almoço, a minha Leonor quis revisitar a casa dos Avós, a oficina do meu Velho. E quis passear comigo um pouco pelo Monte do Picoto. Assim fizemos. Durante, disse-lhe que a transmissão estava completada. Ela compreendeu de imediato o que eu lhe queria dizer. Disse-lhe depois que a amava completamente. E ela respondeu-me que me amava completamente. E que

– Estar contigo é a minha missão.

Este episódio salvou-me (d)o dia.
Agora, o Ideário de Coimbra acaba aqui.



Daniel Abrunheiro
31 de Maio de 2010
7 de Março de 2011

20/04/2011

Ideário de Coimbra – entradas 176 – (fragmentos da penúltima entrada do livro) – e – 171 (fragmentos também)




176. E SE OS VIADUTOS INCANDESCEM A NEGRO SOBRE AS ÁGUAS DA PASSAGEM?

Coimbra, terça-feira, 1 de Março de 2011

Estive aqui uns versos, insensata equalização da minha vida. Não sei nem que nem como vou fazer dela, da minha vida. Talvez mais uns versos.

(…)

Esperamos todos a neve.
Ela virá, ela será.
Locomotivas sem passageiros troam
em nossos corações-plataformas.

Comemos ovos, ervas, dedadas de cal.
Imaginamos arábias douradas, andaluzias
nunca porém confirmadas
pela passagem dos dias.

(…)

Ao sol em anil: o eu-corpo. Passagem vespertina das vidas, digo, pessoas em paragens de transportes: gado melancólico portando comoventes sacos com fruta, algumas moedas, pentes, corta-unhas. Isto em Coimbra, durante a vida, um fim de tard’ia.

(...)

Uma ninharia de ratos, as ideias.
A declinação da saúde no latim do corpo.
O torso envolto de seda: a febre.
Os pés lá ao fundo sozinho da cama.

As mulheres ao fundo sozinho da História,
a economia delas, os segundos-andares
em cidades sem bibliotecas nem depois.
Eu apesar delas na névoa matricial.

Sou de películas dadas a secar a vermelho.
Sou da poesia e de mais ninguém.

Inclina-se, suave, uma cabeleira-canavial:
e tanto me basta para ser eufórico e lento.

Só que o dia virá em que de novo
terei os pés vestidos de areia de ouro
molhada de sal, terei, de novo, um dia.
Não sei se terei, mas digo que terei.

(...)


Digo que terei. Frequento em morenidão
as casas-de-pasto: cavalinhas, filetes,
homens utentes da solidão, estiletes,
que fundo penetram no coração.

Olha: tornei-me um homem tipo-Arregaça,
não me escusaram os livros de tal.
A Arregaça fica em Coimbra, Portugal,
e dali não sai. Sou aquele que, por graça,

também (ainda) não. Sigo que serei.

(…)

A criança é psicoamniótica na calda maternal.
Sim, o feto é completamente astronauta.
Os relâmpagos de infância são cosmovisões.
A velhice outona os gestos, doura-os, encastoa-os.

Leitos secos que as pedras cobrem de ferro.
Tangerineiras urdindo verdes cabeleiras.
Os amigos da criança quase cinquentenários.
Os filhos deles repetindo equívocos.

A minha poesia nunca foi sobre mim, querida.
Sou apenas o veio-de-transmissão das leis
motoras. Preside à minha insuficiência a vida.
Acho mais piada a ornitorrincos, porém.

Saio, manhã muito cedo, do leito.
Atiro-me à rua, faço-me sombra entre sombras.
As coisas nem acontecem: são coisas apenas,
lances que alguém diz a alguém que não ouve

e faz o favor de esquecer. A criança é.

(…)

A altura do mar é toda olímpica: uma pessoa
torna-se índica e pacífica a tal altura.
Sim, eu já fui a Lisboa.
Não, não tenho cura.

A lenha d’aldeia pinta oitocentismos.
Uma pessoa chega a casa e enxuga-se.
Sim, eu sofro sismos.
Mas a pessoa cura-se.


171. RATO DEIXADO POR CONTA PRÓPRIA

Coimbra, segunda-feira, 21 de Fevereiro de 2011

Existo. Uma pessoa existe. Como adentro o sono de uma ave, uma pessoa existe-me. Não sei que seja feito do esplendor de outr’horas. E quando as coisas mundiais se parecem com sentimentos? Ai queres exemplos?
Uma tampa de saneamento igual ao desespero;
um chapéu de cigano como um enfarte;
um morango tal um coração sem rola;
os políticos quais fanecas enfarinhadas e fritas;
a tua boca: lâmpada rubra.
Viste? Então,
existe.

(…)

Agora mesmo: para sempre, desde nunca.

(…)

Um dia grisalho, em Coimbra. As árvores escurecidas, delas os ramos emaranhando esquemas eléctricos contra o fundo alto de lousa-grés do céu.
A beleza triste das mulheres. A triste beleza dos homens. A nota azul de um prédio. Eu deveria ter escrito cartas ao meu Pai enquanto era tempo. Digo: poemas. Ele sabia quão grisalho haveria (e houve) de ser o futuro. Pássaros debicam miudezas no relvado ao pés das tileiras. Táxis abordam a circulação venosa dos destinatários (que ele há vários). Uma parede tatuada instiga-me a votar no BE, mas eu só faço pé-de-alferes à lentidão da metafísica. Eu ando aqui para me enganar nos outros. Sabes, a violência do nada. Sabes, o ouro de uma cordura. Uma mulher doente, atapetada de azul, tosse à passagem-de-nível da extinta da Linha da Lousã. Um cavalheiro, vermelho como um insulto, acarreta colesterol, chapéu-de-chuva e uma embalagem de amoníaco. Se chover, como farei? Há momentos (em) que não sei. O vórtice cósmico é quantas vezes cómico só? Uma mulher de unhas compridas a ler o Diário de Coimbra. Um rapaz vestido de mau cabedal e de olhar quadrado como uma teimosia. Eu vejo. Não: eu escrevejo. Era isto. Agora vou ao Zé Carlos do Viaduto, a gente depois fala.

(…)

Sábado passado, estive, quê?, duas horas com a minha Leonor. É a minha filha mais cedo nascida. Atendeu o telemóvel, certo instante. Disse ela, à passagem:

– Estou com o meu Pai.

E eu sei que ela disse aquilo com maiúscula.
E eu fui feliz como um rato deixado por conta própria numa fábrica de queijos.
Fui, fui.

(…)

A minha boca é o meu olhar:
vejo com a Língua.

(…)

Amei-a ao contrário das pessoas.
Os animais sentinelavam a casa,
a memória também,
como também os fantasmas.
É uma questão respiratória:
quanto mais amas, mais asmas.

(…)

É estranho: sempre que penso numa mulher, é na minha Mãe que penso. Não tem nada a ver com Viena de Áustria, Doutor Freud. Tem a ver com o Amor. Uma pessoa existe. Como é que é? Como veio? Uma mulher, um homem etc. Leite, ovo. Vinho em night-club. Velas. Encadeamento. Encadernação. A poesia possível etc. Uma pessoa nasce. Eu não. Eu renasço. Tenho a Mãe doente. Mas agora vamos imaginar que penso noutra mulher. Vamos imagiquê? Imagiquem?

19/04/2011

Ideário de Coimbra - 164 (I) - UM TEXTO DE 16 DE DEZEMBRO DE 2010


Amedeo Modigliani  (1884-1920)
Retrato de Leopold Zborowski (1916)

Coimbra, quinta-feira, 16 de Dezembro de 2010

Era ridículo, agora já não tanto, mas era ridículo o que eu era e o que eu pensava. Outras pessoas podem andar toda a manhã com um fragmento musical na cabeça, mas eu não, eu andava todo o dia com, por exemplo, as palavras (anémona) e (begónia) na mente – para nada e por causa de nada, só porque sim e para nada. Cultivava em silêncio os meus sentimentos como uma mãe-de-família pensa noutra coisa quando irmana peúgas ou pana filetes de peixe branco. Já não me acontece tanto, não já tanto. Arranjei um emprego, mudei de quarto e de bairro, almoço numa casa-de-pasto abençoada pela esterilidade filosófica, bebo o meu vinho e como o meu pão – e leio muito menos, o que me resulta no melhoramento da pele e dos sacolejões da tristeza. Ainda me acontece pensar um objecto com um verso – e então é inevitável a palavra (coloratura), por exemplo, ou então a palavra (visco). Uma mulher chamada Lúcia, testemunha ocular de um crime de sangue, chora no televisor, o que me distrai deste trabalho. Depois regresso à órbita (poeira, astro) e olho as coisas que há no mundo, sobretudo pessoas, as pessoas-coisas, que são minhas irmãs, os corpos velocistas dos pássaros, a paleta dos jardins, o estádio de futebol, os cristais das montras, os espelhos-de-água, os sentimentos que alguém nutre contra o apodrecimento voraz da democracia, os cães castanhos que nos olham com olhos de mãe (peúgas, filetes). Devo ser um coração pasteurizado, por assim dizer. A maior parte das vezes chamam-me (Você), o que é um bom nome, um bom neutro, um excelente modo de ninguém. O trabalho vai-se fazendo, caixas conservam coisas, mecanismos articulam funções necessárias à sociedade, o Natal sucede ao Verão, viajantes largam docas a caminho dos respectivos sóis-poentes – e a beleza é, em geral, de uma inutilidade invencível. A questão das prostitutas é outra coisa. Frequento-as, por assim dizer, (em jasmim). Aceito-lhes o nome artístico (Cindy, Ruth, Soraya, Minnie, Rachel), uma vez por mês dá doze amores de aluguer por ano – e eu tenho já alguns anos-calendários a benefício de inventário e a golpe de misericórdia, Marguerite. Já o quarto, o quarto tem serviço de cozinha e logradouro de banheiro. Dá para ser abelha consciente da colmeia: quadriláteros eléctricos na noite da cidade. Quem quiser, que me acredite: é aos domingos que acordo e saio mais cedo: a solidão é (urbi et orbi) totalmente. As palmeiras importadas zunem o seu verde diferente. Num relvado, alguém vomitou feijão e sangue. A felicidade quase me sopesa o coração. Antigamente, nem tanto. Eu era mais torre-de-Anto antigamente, o que, aliás, não deixa de ser nobre. Sexo, comida, agasalhos têxteis e provas de vela fluvial vieram acudindo-me ao borboto da respiração, mas tenho disfarçado bem. Alguma coisa vem mudando no meu corpo, sinto isso quase confusamente, um pouco como se da monarquia da infância e da república da vintena de anos eu tivesse passado a uma espécie de confederação melanco(ó)liça. E quando assisto ao aparato de uma morena de botas de couro preto altas, assisto à palavra (jarro), mas digo (porcelana). Há um juiz aposentado em um dos meus pontos fixos do meu percurso (bebedouro). Ele é o tomador de café-com-leite e de bolos patas-de-veado. Dizem-no viúvo, mas não lhe noto qualquer contrariedade na emoção. Reforça-se de bombazina contra a geada de viver. Eu assisto, e depois um ano passa (Natal, Verão). Os sapatos duram-me épocas. O teatro local é fraquito, os circos revezam-se em trânsito de tigres ferrugentos, a misericórdia oficial gasta santas casas, nas farmácias os homens-caixeiros envelhecem depressadepressivamente, é um horror pensar no que por aí vai de cancros e de orfanatos, vale-me que nem penso nisso por aí além. Dantes, pensava mais, acho eu. Também me ocorre recordar casas pejadas de humidade como mulheres grávidas ou apenas excitadas. Isso era ridículo, claro, mas não é perdão que peço, nem literatura – não peço nada nem espero seja o que for. Setembro dourará os frutos, o anil fluvial educará rio no verde-azul de sempre, as meninas (campainhas, compêndios) escolarizam as terças-feiras de Novembro, quando eu não tinha ’inda vindo para ser apenas este – ou isto. Nem a minha Mãe pode fazer já o que for contra o facto de eu ter lido. Pessoas de outros países frequentam os hotéis da nossa pátria, incorrem em vilegiaturas museológicas, interessam-se pelo que aqui se fez de pintura, artesanato, hidroelectricidade, basquetebol (xisto). Crânios femininos amazoniados pela quimioterapia enlençam-se de chita (Festival RTP da Canção), nos autocarros os sobreviventes fingem não reparar no humor cronométrico das metástases, eu agora já nem ligo tanto, sou mais a favor de outras causas perdidas como o casamento homossexual e a taxação abusiva do recibo-verde. E esta é quanta verdade posso apor, ou opor, à invencibilidade da tristeza, essa areia (vidro) da praia do nascimento. Nas revistas de papel mais caro, rejubilo com os perfumes franceses e a publicidade aos relógios, deve ser tão bonito trabalhar com bons fotógrafos e com editores sérios e paneleiros. Mas eu não tenho nada a ver com isso, não sou romântico nem acredito no amor, nem em Deus, nem no Deus de Amor, que é uma terra perto de Leiria e que se lê com acento grave no A. E uma quinta-feira, noite adiantada já, abandono-me a nada e a ninguém no café do bairro que fecha mais tarde – e outros como eu (homens que ficaram sós sem apurar porquê, por distracção talvez) entram e saem, fumam, debicam empadas de galinha (mas é frango, não galinha verdadeira) e cálices de uma mistela poderosa qualquer (bílis). Eu quase não leio, consigo aguentar-me no quase, faço por não pensar coisas ridículas (ventura, esmeril), vou adiando o retorno ao quarto, à cama, à brutalidade (vilipêndio, estigma) da solidão. Conto as moedas que me restam, às onze e quarenta (vinte e três e quarenta) tenho ainda para mais três doses de qualquer coisa pela qual a humanidade trocou o fogo. E depois não me é possível continuar aqui, pago e saio e mudo de bairro, nisto a meia-noite regela as ruas que ambulo, por onde raros carros tripulados por mais e mais homens sós, cada vez mais sós, como se isso fosse possível ou legal. Desactivaram a linha do comboio suburbano, sigo por ela como quem adentra uma metáfora da existência, lixos envelhecem o chão, a isto nem se pode chamar tristeza, talvez (pusilânime) ou (exangue). E nisto descubro um café com nome de santo católico. É um em que se pode fumar, a iluminação não é grande coisa mas pode-se fumar. É um bebedouro povoado de cidadãos apreensivos. A televisão arde para ninguém, há som-ambiente que adensa a névoa dos cigarros e dos pensamentos com que esta gente se ocupa e preenche para nada e para ninguém. E a sexta-feira entra, confirmando o teor de ontem de todo o amanhã. Uma rapariga, cuja cabeleira ressuma azeite cosmético, levanta-se do canto, dirige-se à máquina do tabaco, abastece-se, regressa ao lugar abrindo o maço, que é azul-escuro como uma nódoa ou um hematoma conjugal. Nomes de cidades estrangeiras aparecem no televisor, logram por instantes iludir o meu mundo (restrição, aspereza). Outro dia (qualquer, exuberância) na calha da azenha licorosa do Tempo (portanto resignação, valência). Cumpro as horas, não evito por vezes uma emoção penitenciária. Sei que estou a entregar o meu corpo ao Tempo. Sob uma larga nespereira, dois homens conversam. Eu estive para dizer (efabulam) – mas não sou já tão ridículo, tão douradamente mesquinho. Falam de dinheiro (ouço-os bem daqui), da saúde das respectivas mulheres, de cães venatórios, de perdizes, de Lisbo’antigamente. E na antemão de um almoço mais surge-me pensar (E se eu tivesse tido filhos feitos por amor?) – e então a tristeza bate-me na cara como um trapo (um pássaro) molhado. Conheço uma mulher positiva como um relógio. Ela urde pratadas de bacalhau com a ilusória negligência quotidiana dos analistas laboratoriais. Ela emana humanidade. Na serventia da cozinha de que disponho, conservas fazem de biblioteca: grão, feijão, pickles, cavalas, salsichas, sardinha atomatada com picante, brinquedos alimentícios da solidão. As minhas divorciadas são anticorpos. E a virgindade só é relevante para o segundo que chega em terceiro. Estas coisas duradouras na cabeça douradora, dor a dor. Um casal raquitizado, seis décadas de solidariedade alimentar, certa troca de humores, incerta fusão de linfas, cada um dos dois filho de pais idênticos. E uma noite de domingo desperto a horas altas – ou fundas – e sinto que a morte é muito mais física do que metafísica, tinha cobertores a mais, uma cachoeira de sangue refluiu-me os dentros do corpo de baixo para cima, das coxas para a cara, durante não sei quanto tempo não respirei, depois respirei fundo para oxigenar quanto coração podia. (E, como azulejos únicos numa parede rebocada, as palavras Cão, assim em maiúscula, e tirocínio.) Ou então – mas é depois – um tempo como que feito de gesso, gesso aplicado à forma da cabeça que sente mais do que pensa (hectolitro). E, nisto, a Pensão Brasília em plena Praça do Conquistador – ou a, aliás mais reles, bem mais reles, Pensão Madrid da idem dos Navegadores. Esse (um) tempo que me liberta de qualquer responsabilidade, de qualquer tempo e qualquer peso. A memória como gesso – e como explicar isto às crianças (a vós) de oitenta anos? Mas é que às crianças de oito anos pode, por igual ou semelhante ou idêntica identidade, acontecer a vontade de morrer ao surgimento do lento-vento do entardenoitecer, a mim aconteceu-me, só posso crer por supor que (a voz) também.

18/04/2011

Ideário de Coimbra – 162. MUS(EU) – fragmentos vários

Coimbra, segunda-feira, 7 de Fevereiro de 2011

Com as horas e os anos, volve-se o eu museu. Uma abrasiva voragem toma conta do estaleiro pessoal. Fagia do tempo fluvial, sono tão da morte propedêutico, êutico, eu, tu, tu a ti, tic, tic, tic, tac.

(…)

Não me sinto só entre sós.
Sinto-me, só.

(…)

Laranjas e limões citrinam a circulação do sangue, é tão bonito assistir ao fervor esmaltado dos eucaliptos, Portugal é uma coisa vegetal entre pedras e águas, as mulheres rebrilham de botas púbicas, as gerações instauram-se como estádios, tornam-se adverbiais as alternativas a isto & isto mesmo, não é fácil sofrer a evidência mortal (e mortífera) das casas encerradas para sempre, se madrigais madrugais entre e ao cabo de outras coisas mais.

(…)

O senhor João Ara S. lendo o jornal desportivo, os olhos dele de cor azul-atónito. Sapatilhas de menino em pés de homem, os dele, ele-homem. A escassez de recursos, a biquita, a barba por raspar, o pêlo na venta e o tufo na orelha. O cigarro pobríssimo no duplo estilete labial. A camisola azul-bebé envolvendo o ventre nutrido a calduns de banha de porco. Calças de dormir-com-elas-vestidas por falta de mulher no pré-fabricado. A mãe dele morta há dezassete anos fazendo-se sílex na terra argilosa da lá-santa-terrinha. Eu a olhar para o senhor João Ara S. como quem se mira ao espelho.
A senhora Magda Lena T. de nádegas-em-cera, dela as tangerinas peitorais murchando-ando-ando. Entanto, certa macieira-nefertiti em as faces, cujo carmim vale por toda uma natural cosmética, dado o afluxo de sangue-rosa à pele-pétala. Ela lendo uma revista cor-de-rosa. É de orelhitas de coelho-miniatura. Olhos castanhos, daquele castanho-mocidade-fascista. Nascida na Alta demolida, residente agora em Celas-as-Velhas. Sozinha como um cão (ou um pianista). Eu a olhar para a senhora Magda Lena T., querendo tão-só acasalá-la com o senhor João Ara S.

(…)

A alma – quase um funcionário me parece ela.

(…)

A senhora da banca de fruta: roliça-couve, de mamilos-medalhões-de-vitela, rins-que-chiam-como-ratas-úricas, grossos pés-de-faiança-venosa. E cravo de seu jardim. Algum homem a terá amado decentemente? Pergunto-mo. A esta mulher de Coimbra, algum homem terá aleitado em cordura? É que às vezes as pessoas mais merecem gardénias do que vénias ou ténias. Às vezes, as pessoas são ofuscantes como tardes-de-eternidade-egípcia.

(…)

Recordo tardes obliteradas de outros fevereiros. Eu era moço, a vida estava marcada para o dia seguinte. Hoje tornou-se ontem, esse anil.

(…)

Pessoas que entram e ainda desejam, proferindo-a (e preferindo-a), a boa-tarde a quem esteja e está: gosto de assistir-responder a tal. É uma espécie de fé, a educação. Digo: o civismo da cortesia. A delicadeza por ela-mesma. Uma espécie de doutrina, digo. Fez isto este homem. Éramos quatro no estabelecimento: o casal proprietário, o juiz reformado e o quase-poeta Daniel Abrunheiro. Uma lambidela de açúcar tocou-me a língua (e a Língua) quando, adentrando-se o senhor, disse:

– Boa-tarde!

Estou aqui a opuscular sobre esse recebimento, esse honorário emolumento, essa gratificação, esse solário salário. Uma junta de pessoas. Um cacho de frases (anémona de versos). Recebo retratos antigos sobre cómodas de bordados. Assimilo o bolor-mofo das despensas onde os novos ratos e os alumínios antigos. Em frente, o salão do Bingo espera a noite. A Noite é pontífice sempre. Não é, Jorge?

(…)

Sou um homem português entre laranjeiras idem.
O meu tempo foi-me dado por meus pais.
Habito o invernáculo pluvioso onde residem
soluços e tosses & suspiros e ais.

Canzoada Assaltante