10/01/2008

Três Coisas para Hoje


Três coisas para hoje: Os Sítios (tarde de 9 de Janeiro de 2008), Um Dia (noite de 7 ibidem) e uma prosa de Março de 2007, agora incluída na série A Noite em Breve. Tudo Caramulo, naturalmente, incluindo a fotografia, obtida na manhã de Um Dia.


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1. Os Sítios

Os sítios a que as botas me levam o coração e o nome recebem também a visita de cães dados ao peripatetismo, de homens de capacete sem motorizada e do pólen da chuva com que a tristeza insemina – de mim, dos cães e dos capacetes – os nomes e os corações.

Passam táxis vazios: nem condutores levam. A humidade empapa pelo chão milhares de cartas por abrir. Contêm folhas de árvores, mas não nos é dado lê-las, posto que foram remetidas a quem já cá não está por quem nunca aqui esteve.

Tempos houve em que vi gente. Era nas feiras populares. O mar cedia de noite aos carrosséis. Fritava-se milho e carne de porco. Bonecos de peluche roufenhavam maravilhas comerciais a gramofones de sorteio-de-cegos. Era no tempo em que os ciganos ainda não queriam parecer-se com o lado pior de nós. Um cálice de licor de ginja não era ainda o último recurso. Recordo-me recordando tudo isto durante o instante mesmo em que o via – e me via, anos depois, visto e havido.

Suponho que outros sítios haja onde hotéis vigorem as coruscações cosmopolitas que atraem os amantes com pressa e os senhorios com todo o tempo do mundo. Por aqui não há nada disso. Quem não quiser dormir ao relento, que empilhe toros e pedras em algum baldio não requisitado por usucapião. Aqui não temos amantes. Temos, quando muito, pessoas que já amaram – e por isso aqui estão agora, suponho.

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2. Um Dia

Foi um dia do terceiro milénio, esteve sempre nevoeiro.
Alguns homens derivaram na sombra do dia, uns a pé,
outros à janela como telas suspensas do tempo.
Tive tempo, eu, para ver isso tudo: homens e
nevoeiro num dia do milénio, dia sete do ano oito.

Recolho frases e compassos da boca dos homens na névoa.
As árvores dispõem os limites do tabuleiro.
Nem sempre me ocorre ser particípio futuro:
vivo algodões sobre que nenhuma jóia iodada.
Mas recebo colecções e usuras: e negoceio-as a sós.

Conheço o ouro, conheço a merda. Uma senhora doente
dos cornos contou-me coisas de um namorado antigo,
da actual medicação, não se queixa da comida do Lar,
queixa-se de nada se puder fumar e pôr moedas
no telefone a moedas do canto do café, a azul.

Continuo a achar tudo muito belo e muito januário.
O nevoeiro rebenta por baixo como uma bufa de nuvens,
as árvores armam-se em sérias como virgens de pau,
no espelho-de-água os peixes petrificados congelam
natações imaginárias, é preciso crer que nadam.

Também é preciso crer que nada acontece na vida,
oitenta e tal anos a fio, entre jardins e cabras,
são quarenta anos, são catorze, são mais ou menos
dias, depois milénios, então um dia sem sol
lunifica tudo, é preciso ter calma, à janela.

Acontece-me muito ser feliz nos particípios.
Ondulo, mineral, pela caligrafia da pessoa que me
calhou: esta, segunda-feira, sete do oito. Ainda
vai chover na noite nova, as nuvens levantam a saia,
dizem que há muitos anos era outror’ assim, não sei.

Foi um dia, há moedas azuis, nunca lhe atendem a chamada.
Foi um dia, esteve sempre
– etc.


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DOUTROS CADERNOS – II
Caramulo, 24, 25 e 26 de Março de 2007


A mocidade era de uma violência exaltante. Assim era, mesmo entre as madeiras da antiga Biblioteca Municipal, onde existia para consulta a colecção completa d’A Águia de Teixeira de Pascoaes. Eram de uma exaltante violência: a minha mocidade e a do o mundo. Eu tinha força: o ar era nutritivo. Depois, subi as muitas escadarias até à sala da Biblioteca Geral da universidade, onde era requisitável o volume de Pierre Nordon que trata, com profusão de pormenores, da vida e da obra de Sir Arthur Conan Doyle. Os dias pareciam-me cúbicos, vítreos, protectores. Talvez mesmo – perfeitos. O meu pássaro não era ainda a morte, ou o álcool, ou, sequer, a vida. Era a gramática.
Os pássaros viviam, os coelhos viviam, os outros leitores mexiam-se como se fossem de papel – e eram. A vida, trocada pela gramática e pela hermenêutica, consistia em momentos de chá e em horas não decadentes. Em casa, a M. lidava com os panos, os alumínios, os detergentes, paroquiando uma domesticidade a que se voltava para prolongar a biblioteca.
As palavras já eram, então, imagens. As vogais eram a cores, ao contrário das consoantes. O e sempre foi verde. O i, vermelho. O a, preto. O o, amarelo. O u, azul. As vogais latejavam dentro dos olhos, tomadas de uma pulsação autónoma. As palavras obtidas durante o dia convocavam-se a si mesmas à noite, fervilhavam no quintal dos gatos, fremiam entre desgrenhadas roseiras e maciços canaviais, rompiam riscos no muro, trepavam pela roupa pendurada a secar. A M. aparecia e desaparecia na mente, umas vezes nova e marmórea, outras vezes antiga e muito magra.
Fechar os olhos para ver como o luar marfinava as pedras, calcariava os dentes, lambia de prata as oliveiras a que os ciganos roubavam azeitonas depois de terem dado caça aos ouriços do monte. As litografias ilustravam o mundo de Jules Verne. Algumas lajes eram diagonais. Naves extraterrestres, disfarçadas de jazigos, casulavam infinitas conspirações interplanetárias. A chuva escorria pelas lajes até sossegar numa poça dourada pelo fundo de quartzo onde os girinos espermatozoidavam com fúria. Além do carreiro, a quinta dos cavalos existia alta, chaparrálica, bonanzeira, mansónica, fascinante e improvável. A flora local era de uma escassez ascética e orgulhosa. Espargos e violetas perfumavam a vinha abandonada e corrida por cães andrajosos – por mim também. O sol caía e sangrava além da figueira velha, cuja fruta, de tão doce, fazia desesperar as abelhas. Entre figueira e sol, a linha do comboio vivia de suicídios rurais tão regulares como as estações do ano. Ali se matavam os alcoólicos encornados cujo desespero era furtivo e tenaz como a inteligência dos ratos. Tornou-se inesquecível a carcaça escarlate de um deles: as costelas, o vácuo do ventre, um pé com sapato e sem perna. Não mais o eventual I.J. foi abandonado pela visão desse ex-homem abatido pela linha, nem mais o abandonou, nunca mais, a apreensão perante um comboio, mesmo que parado no estaleiro.
Fósseis marinhos, a quarenta quilómetros do mar, salgavam o pé macio dos cedros e comprovavam a loucura total dos elementos e da História. Os silos de rações cheiravam a farinha de cartão. O homem da taberna criava porcos entre tábuas nas traseiras da venda, visíveis do monte: bonecos róseos de toucinho e olhinhos maus. O mais era o campo aberto, extensão sem confins que urdia incansavelmente uma população de melões, batatas, laranjas, choupos e homens curvados. Tinham erguido choupanas no campo. Guardavam lá dentro as alfaias e os corpos, quando as colheitas e a fobia dos roubos lhes impunham que ali dormissem, os homens e as mulheres e os rapazes de uma agricultura hoje extinta como uma fogueira à chuva. Tudo haveria de ser escrito, depois.
A II Guerra Mundial acontecia para sempre em dezoito volumes. Era amável, detestar a pusilanimidade do Chamberlain, o passinho de dança do Adolf à saída da carruagem com a capitulação francesa nas garras, a honra sem honra do Pétain, o umbigo do de Gaulle, os óculos à Lennon do Himmler, as muitas taras do Hoover, a raposice do Rommel, a divindade míope do Imperador, a banha obscena do Duce e a sanha sanguinária do Estaline. O repouso chegava com Roger Ackroyd e com O Homem do Fato Castanho, Lord Edgware, a velhota Marple e o ovóide Poirot. Também o portugalinho de Júlio Dinis sossegava a incandescente febre mental que evaporava a chuva em torno da cabeça. Já não havia escapatória possível para mim: depois de Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Altino do Tojal e Ferreira de Castro, o mundo concreto volvera-se-me definitivamente um problema dos outros, incluindo os anjos. Mas como a morte não cravara ainda as estacas da sua tenda neste areal, a vida era tudo o que me restava para ler.
Quando as gónadas me treparam às meninges, não foi sem esforço que consegui aliar o António Sérgio e o Carl Grimberg à consideração furtiva das bochechas nalgais das raparigas e das casadas. Desconfiava, então, de uma evidência perpétua: o abismo que elas apartavam, mesmo que nelas, ocasionalmente, tenho sido possível cravar a raiz. Mas nada disso obstou mortalmente à prioridade da, por assim dizer, gliptognosia que resultava dos livros. Jurar e cumprir uma biblioteca particular – só isso podia ser. O que não podia ser, nem seria, era a eventualidade de um amor mais duradouro do que o dos livros. Eu não tinha filhas, então: nada sabia de nada. Thomas Bernhard (1931-1989), muitos anos depois, trouxe razão e sossego e exílio – e ele não teve filhos.
No anteverão de 1978, uma noite houve que não acabou ainda. Em casa, havia arroz de frango com ervilhas. A M. fez também salada de alface. Ela tinha saído para comprar um litro de refrigerante. O pão gretava-se de fresco como uma avó púbere. Três à mesa – ou quantos quisesse, pois que bastava, no fresco do pátio, as vozes das letras. A conversa embalava um sossego de tal modo profundo, que hoje só é possível atribuí-lo à insídia do amor. Ela doseava as rações com aquela magnanimidade hierárquica e hierática das fundadoras de cidades. O P. falava com entusiasmo e veneração da pintura cerâmica de Jorge Colaço. O filho de ambos comia com um apetite são e loução, integral, inquebrantável, musical. Ele depois devolveu-se à terra. Comia-se no anexo da cozinha, a porta aberta importava do pátio o forno morno de Maio e atenção gástrica dos gatos. Lá andavam, no pátio, entre gatos e sujeitas elas também à sufocação das rosas, as palavras do dia, as lidas e as escritas, as tentadas e as invasivas.
Depois começaram os nomes e a porra dos versos. Eram as histórias – as emanações. Chegava do fundo dos outros o que se me volveu próprio: e mentiroso: e sinceríssimo. A anatomia e a tuberculose dos tios, assumi-as como peregrino de santos dados à hemoptise.
Muitos livros concorriam entretanto para que a escrita futura acontecesse contra tanta leitura. Tanto leite, tanta altura, tantos sucessivos mortos matando o Verão, o vento morno nas pernas que sobravam dos calções. Eu fui-me dizendo a necessidade de ouvir por fora para ver por dentro. Por exemplo: tangerineiras adoçavam as águas ribeiras que, música, havia no trajecto do funeral do pai do meu amigo. Anos frente, volvidos, autocarros e decisão de escrever para sempre. Na cova da hora nocturna, a esperança era de uma violência que exaltava. Mulheres casadas saíam aos pátios, nesse único Verão, a renovar roupas de pendura. Metiam os braços gordos e sexuais nas covas das alças. Gelatinavam as mamas nutridas – e eu via-as. Gatos pergaminhavam a duração do tempo. O senhorio, velho como um catálogo fascista, dourava a tarde a partir da varanda e para o mundo como um papa local. Eu atendia.
Não podia fazer de outra maneira – nunca pude. Cada dia tornou-se como cada livro – um resgate pago com a vida. Perante as publicações pornográficas, por exemplo, sentia sempre, não sem fascínio, que aquilo tudo (os homens grossos, as raparigas esquartejadas de rosto chicoteado pelo esperma, as cores orgânicas, a madrepérola das vulvas, a cegueira das glandes, a ficção do desejo) era a perfeita antiliteratura, posto que esvaziava de qualquer possibilidade vital as personagens: evacuava delas a memória, digo, não a minha de mim.
Hoje, alimento estes roseirais com a indiscutível elegância de todo o gajo que se apaga como a um risco de lápis. Quando for o dia sem mês e sem ano, que o reconheça eu como igual a todos os que, violento, exaltado, já vivi.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito, muito bom!
Voltar ao passado como quem ressuscita da cegueira.

Anónimo disse...

«Tanto leite, tanta altura, tantos sucessivos mortos matando o Verão, o vento morno nas pernas que sobravam dos calções.»

A morte,mais do que a atenção, é que é o santo país do conhecimento (Pace Echevarría).

Muito bonito, Daniel Abrunheiro!

Canzoada Assaltante