27/02/2022

REGISTOS CIVIS - 78 & 79



Sécul’aico - 78

                      

 


Há muito laicizei o chamado coração.
Nenhuma deusa venero ou oráculo.
Não hesito entre taberna & tabernáculo.
Assim secularizo cálix em garrafão.

Só sobre mim exerço curatela.
Em celibato me debato sem nervo.
Em suma: impero sem ela (-por-ela).
(Estou bem, Lita, e bem me conservo.)


 



Uma mais branca palidez - 79

                      




Manhãs envelhecem afinal também, à semelhança de nossa imagem.
Assistimos em algum desconcerto ao carácter potestativo do Tempo.
Contestação nenhuma nos é possível a tal manancial.
Vale-nos, em número, o princípio (& o fim) da equidade.

Amanhã, pela matina, vou ao médico desencerar-me.
Como em fundo de cisterna ando malouvindo o exterior.
É moléstia ensimesmadora, fecha a pessoa em si-imo.
Matinar-me-ei com algum entusiasmo, por conseguinte.

    Enquanto o dia se chama hoje, no entanto, hei que aguentar. Digo-o assim porque posso. Tenho hora & meia para cumprir determinada tarefa formativa. Não é função árdua. Já hoje alimentei a passarada do telhado das garagens, lá em baixo nas traseiras do prédio.

Ajuramento quanto lavro em acta.
É cerimónia a sós, não importa ao mundo.
É, também, affidavit sem extraordinarice.
Assentamento de pueril teor, afinal.

Cita-se, primeiro; notifica-se, depois.
Em penal, arguido; em civil, réu.
Esporadicamente, a oposição concilia acordo.
Benefício & malefício trocam-se cartas.

    Escuto um senhor perorando memórias profissionais de seu trajecto. A qualidade da atenção que lhe presto, todavia, não é das melhores: incomoda-me o que se passa na concha auricular dextra – minha, naturalmente. Dou por mim desejando a manhã de amanhã, médico amigo, livrar-me deste zumbido claustrofobiante.

Vozes: partes processuais interagindo-se.
Sim, ocasionalmente fantasmas manifestam-se.
Fica tudo em acta para amnésia-futura.
Euforias & desesperos, areia tudo.

    Ainda é hoje. Vale-me ser já vinda a noite. Comer alguma coisa, adormecer cedo, acordar muito cedo, ir ao médico. O ouvido tem piorado. Faço por não ceder à impaciência. O silvo é constante na abóbada intracraniana. O Benfica está a perder, em casa, contra o Ajax. Morreu (só se soube hoje, ao que parece) no passado sábado, 19-do-2, Gary Brooker, voz dos Procol Harum, do clássico A Whiter Shade of Pale. Tinha 76 anos. Se amanhã tudo correr bem no doutor, a primeira coisa que farei no retorno a casa é reouvir a bela canção.






25/02/2022

REGISTOS CIVIS - 76


Eva - 76

 


    Sempre afinal me arruei deveras (cf. antepenúltima linha do registo imediatamente anterior). Fiz bem & fi-lo bem. Vim buscar a última pouca de sol da corrente segunda-feira (21-do-2). Quase surdo do lado direito. Desarmonia sensorial. Certa propensão para a lateralidade oposta. Já que bebo aguardente, como em A Canção de Lisboa (de 1933), deveria usar, como no mesmo filme, o funil auditivo – assim o receitou o pícnico Dr. Vasquinho (Santana) ao miraculado empregado do retiro-de-fados naquela maravilhosa película: “Aguardente? Ouvi perfeitamente!”.

    (Passa além-patamar uma grávida.
    Eva finalmente ilibada de pecado.)

    (A luz preenche a fachada do prédio de Belinha P.
    Hora do dia pré-morredoura, ainda frio nenhum.
    Notar & anotar não são (não são) p’ra qualquer um.
    Muito é o que olha, pouco é o que vê.)

    Um formoso casal petisca sua merenda em a esplanada do amplo patamar: ovos com presunto, pão-de-alho, queijo caprino, ampola de rosé. São gente para trintas & poucos mais. Ele, espadaúdo como um cabide de roupeiro alto, traja a castanho-escuro, botins negros, gravata violeta; ela, sã como a maçã mais louçã, usa dentes de uma natureza estelar: em luz como em lonjura, não é que tremam. Assisto à emparelhada existência sua/deles em quieta veneração. Venero deles a mocidade inimputável, a inocência insofismável, o aparato amável – e a inelutável transitoriedade. Quase ’ind’agora mesmo, estava eu aqui dizendo a meu compadre Zeferino (sim: aos quase 58, tenho & sustento ainda imagos, perdão, amigos-imaginários) do bonito que é ser-se amável, insofismável – e, sobre tudo o mais, inimputável. Não já o simples ser-se moço, mas estes três atributos.

    (– São dois cunhados aqui estabelecidos há uns quarenta anos bem aviados – diz o marido Etelvino à esposa Graciosa. – Pelo menos – diz ela, tirando o ábaco da carteira.)

    Trôpega mas grossamente urinando (hoje) contra a coitada de uma moita de ruela sem prédios, dei de/por mim considerando & sopesando a necessidade de não ceder à misantropia galas forais de visto-permanente – em vão: estou misantropo, bem que a Molière não ignore.
    Tenho em casa Torrente Ballester & Graham Greene. Ainda hoje (antes de hoje m’esmijaçar antimoitamente em escuro rincão desabitado) os sopesei & considerei. São ambos narradores de quilate-primeiro. Des-pensei-os depois: hei, quando hei, que livrar amarras lentes, sair à rua, ser como toda a gente faz por ser à mera menção de estar.

    Vocábulos de cão ladrando afora
    Ganidos de agonia ilegível
    Aumento do preço do combustível
    E adeus-à-nascença-vou-m’-embora.

    O não-pequeno mundo é pequeno
    Basta ler do Guareshi o Don Camilo
    Anémono não é o açuceno
    Nem a alegria se pesa ao quilo.

    Eva-76, este registo
    & o Wenceslau tão longe em Tokushima
    Jesus, vem Tu cá a baixo ver isto
    Não sei que inferno é por aí cima.

    Talvez a inocência te castigue
    Decerto aleitamentos tu falhaste
    À morte porém ninguém te obrigue
    Que, a defecar, o chão tu nunca erraste.

    Ele há coisas tão bem mais engraçadas
    Como bugia sebácea pela treva
    Alumiando trovas desvairadas
    Quem só nunca foi novo não se atreva.

    Eu já vi a bondade a dois metros
    Praticada sem pressa nem demora
    Já vi quem nunca ri, quem nunca chora
    Vejo-me como um desses obsoletos.

    Que em patamares pró-ante-mondeguinos
    Coimbram fartamente versos-nada
    Sexta-feira que vem, nesta esplanada
    Há descontos p’ra amendoins & finos.

    São dezanove anos bem contados
    Empós à alemã-nazi rendição
    Só a humanidade é desumana:
    Não rima consigo nem com o Cosmos.

    Vá você esfregar sua cozinha
    Não venha ser comigo comezinha
    Eu vou dizer tudo ao Zé Duarte
    Consig’ele se perdeu, não sei por q’arte.

    (Tenho um Amigo-Dr.-Otorrino
    Marquei p’ra 5.ª-F.ª uma lavagem
    Que à minha audição re-volva imagem
    & me resgate do ouvir-piscino.)





23/02/2022

REGISTOS CIVIS - 75

© DA.


Fora & dentro - 75

                      

 

    A gula dos tv-papagaios em fedor de guerra iminente.
    A desinformação-circo tornada norma-baba.
    Ror de facínoras alteados ao poder de nações irreparáveis.
    Petróleo & religião, lixo & religião, banca & religião. E religião.

    Da tragicomédia-taliban à tragifarsa russo-ucraniana.
    A vária África incapaz de se governar a si mesma.
    O vespeiro-asiático assolando em praga a plaga alheia.
    E no Portugalinho o me(r)diatismo farsola-ranho.

    As notas duplamente estrofadas supra decorrem de certa curta pausa que fiz à hora prandial. Estava o televisor sintonizado no telenoticiário. De que estação? Venha o demo & escolha. Segue-se todavia a tarde.

    Ei-la pois, digo, a tarde: trastejá-la-ei ainda de novos vocabulares aranzéis? Bem talvez. Será para muitos margoso, alagadiço fundo terreno – não assim para mim, que piscina é, marnel não.

    Sulcou-me o sono passado todo um cinema vivaço. Gente que reconheço de outros carnavais fez-se-me presente em grande aparato. Elementos do corrente quotidiano (meu, naturalmente) viram-se mesclados a/de subterrâneas constâncias (minhas & alheias). Não me incomodou, propriamente não. Prefiro (sempre) não saber que sonhei. Prefiro acordar, ao menos ilusoriamente, limpo de quimeras – sobretudo das mais fabulosas.

    O dia é por enquanto aqui dentro.
    Fora daqui, sujeitos são constituídos arguidos.
    Acontece muito, ao que consta dos falatórios.
    (Se for grave, então há sofrimento em marcha.)

    Cuidado com qualquer assomo estigmatizante.
    Cuidado, sim: arguido não é o mesmo que culpado.
    Mas aqui dentro vigora outra legislatura.
    E a solidão dela é regimental, por assim dizer.

    Identidade & residência, velhos labirintos.
    Em duas horas, posso arruar-me um pouco.
    Adentrando o fora, aforar-me-ei o âmago.
    Não muito tempo, que nunca é muito, ora o sei.



22/02/2022

REGISTOS CIVIS - 74


 

Esterlina – 74

                      

 

    Polvoroso caminho se me depara, à estiagem. Conheço a condição evanescente do particular. Retiro de um caderno-dormente dez linhas de quádrupla articulação:

    Amante. Distante. Mirante. Periclitante.
    Maneira. Beira. Cheiradeira. Feira.
    Pinheiro. Dinheiro. Dianteiro. Monteiro.
    Atribuição. Subscrição. Avaliação. Contenção.
    Sensível. Comestível. Combustível. Irascível.
    Saída. Movida. Parida. Malparida.
    Restinga. Pinga. Carlinga. Endominga.
    Presbitia. Entropia. Anomalia. Tia.
    Presciência. Existência. Urgência. Paciência.
    Gato. Rato. Pato. Donato.

    Disponho de assaz mais róis afins. Passa-se que afronto sempre a utopia de fazer, de cada caos, caso. Trata-se de exarar o mais & o mor possíveis. Como aqui:

    Penumbroso. Pardacento. Pérfido. Enxovalhado.
    Imponência hípica. Impertinência típica.
    Diáspora esporádica. Lunático hierático.
    Balandraus & cogulas (já falámos disto).
    Lamentosos, lutuosos trenos elegíacos.
    Pessoa bonza, fautora de sudários mentirosos.
    Ciclope com gravosa presbitia, coitado.
    Hissope de escurecida prata velha como o mundo.
    Certa contrição (histriónica porém).
    Devassidão dos monos dados a necedades.

    Muita protérvia sem graça por aí grassa. Tenho insulado-me sem grande lamentação. (Alguma, sim – mas não grande por aí além.) Por isso:

    Alvião. Aluvião. Aríete. Cantochão.
    Furna. Níveo. Cerúleo. Virente.
    Taful. Crassa. Opípara. Frioleira.
    Alcouce (de putedo retinto, ai).
    Orchata. Tisana. Facundo. Fecundo.
    Tropo. Farelório. Tripúdio. Palanquim.
    Escrófula. Estroma. Hórrida. Pútrida.
    Hidropisia. Anasarca. Cotovia. Anarca.
    Fâmulo. Lacaio. Vil. Civil.
    Cínica. Clínica. Sofisma. Cisma.

    Deram as dez da manhã (21-do-2). Ficam-me soltas algumas palavras que, como todas, esperam dar-se em luz à leitura: arpéu, por exemplo. Fateixa. Mais: espórtula. E óbolo. Festa de himeneu. Bisbórria (salafrário). Cornaca. Zarcão & espadagão.

    (Já estou como, a 28 de Maio de 2015, quinta-feira, disse a minha prima Esterlina: Libra!)




21/02/2022

REGISTOS CIVIS - 73

Camilo Castelo Branco

(1825-1890)


Acrimónia – 73


 



    Ando, por estes dias, de pavilhão-auricular direito encerado a ponto de semi-surdez lateral. Em vão venho escarafunchando a cavidade: emplastrou-se-me o cubículo auditor, ouço como se em imo de aquário me (ou)visse peixe, desses tropicais que primam pela estupidez multicolor. É transe incómodo. Por ser eu um dentre o milhão (upa-upa!) de portugueses sem médico-de-família, já considerei a hipótese de, mesmo não-tenente de viatura própria, me ir a uma lavagem de carros, dessas automatizadas, a escovar o orelhame à força de escumas fortes. Não está fora de questão. Em consequência desta cerosa obnubilação sensorial, mais bem continuo ouvindo (d)a esquerda – por assim dizer & se bem me entendeis. O problema (a sê-lo) é a minha esquerda não ser (de) esguelha nem esquerdelha. Não me acho poluto de modismos político-cu-rectos. Não acho piada a gajos andarem de saia (não sendo escoceses), rabo-de-cavalo, brincos ou arganéis nas ventas. Não acho graça a fedelhas comentadeiras de futebol em vez de recepcionistas de solicitadores ou amásias de dentistas. O que acho ou desacho, todavia, não sustém a irreparável transumância, perdão, dinâmica, da carneirada, perdão, sociedade.
    Outros motes me dão voltas. Em conversa com um Amigo, ouço (do lado esquerdo) que, usando ele o substantivo acrimónia em reunião profissional (“Sinto de vós certa acrimónia…”), o silêncio dos outros lhe apenas respondeu. Não era que ignorassem o que seja sentir – mas sim o que fosse acrimónia. Gargalhei gostosamente ao relato. Especialmente injusto (& inglório) para tal Amigo foi o ignaro equívoco de sua restrita assembleia: pois que em verdade V. digo que tal meu Confrade prima pela clareza absoluta em quanto diz, profere, locuciona, prelecciona – e até, quando caso disso, rosna.
    Acrimónia não é (não será), enfim, palavra de quotidiano mercadejar. Também o não é inópia – por manifesta escassez de lexical esvurmanço, hélas! Por mim, e desde já os primos anos de escolaridade, deveria o magistério sujeitar (ou subditar) a azorrague, cilício, chibata, látego & pau-de-marmeleiro as criancinhas infançonas, a-Bem-da-Nação & no sentido da munificência vocabular.
    Em Português de Portugal, não-há-pai para Camilo Castelo Branco. Ele sim, ele só, ele-segundo-de-ninguém. Queiram os meus Leitores ser, antes, ledores dele: A Queda dum Anjo, vá, ide por ’í. Pastareis, perdão, pasmareis ante a singular (perfunctória nunca) acuidade de seu idiomatismo. O alfarrábio dele é sempre fresco. Corre sempre novo quando recorre antigo – noviço, nunca. Lábia de astro, seu astrolábio.
    Vinha isto a propósito de sei-quê: em canhenho recuperado às (f)urnas de meus caixotes, reentrei em posse de vocábulos lapijados por necessidade. Um deles: mormaço. Outro deles: vinolento. Sinto a manhã ganha (so to speak) com tal repescagem. O vinolento veio da leitura de Guerra Junqueiro. Tal-qual: balandraus & cogula (de monge).
    Far-Vos-ei porém voltar a esta assuntação em, havendo-a, próxima ocasião.



18/02/2022

REGISTOS CIVIS - 72

 

© Mário Botas




Ou se calhar nem por isso – 72

                      


 

Os dias virão, Lídia Laura Bárbara Dinamene,
em que mais não seremos: ou seremos a menos.
Tal nada nos importe, no mesmo nada consistiremos.
Unidos nos veremos a milénios de areia sem uma gota d’água.

Nada temamos senão o alheio sofrimento inocente.
Recordo-te, Dinamene Bárbara Laura Lídia,
aquele casal à entrada da velhíssima igreja:
casavam-se naquele domingo se calhar por amor.

Aqui ainda te estou, suave Lídia, doce Laura,
sou por ti ainda, macia Bárbara, rósea Dinamene.
Inventar-te tive de, pois que a mais al não (re)conheço.
Em boa-hora o fiz, agora que nisso penso & considero.

Em logros vivi já, não mais, algo sempre se aprende.
Por mais remota semelhe, a ideia de morte não é inverosímil.
Diariamente o jornal a reitera em turvas fotos tipo-passe.
Ao mesmo tempo, crianças jubilam de vivos bibes os jardins-escolas.

Aqui, dizem, houveram amores Inez & Pedro trágicos,
por aqui, contam, se assenhoreou a Rainha dita Santa.
Ainda o lôgo é formoso, capital de áurea luz,
frescas águas, choupos viçosos, nascimento de meus Pais.

Antes isso do que andar de unhas com esterco,
de carão equívoco, a melindrados penates,
antes isso, ó maviosa Lídia Laura,
isso antes, ó cordial Bárbara Dinamene.

Resta (al)quebrada em mim alguma coisa inominável,
ou por enquanto não nomeada ainda,
ou entretanto inefável, indizível, opressa,
íntima, dérmica, glandular, o raio-que-a-parta.

Talvez não de todo, Lídia, por aí vigores benfazejamente.
Não sei. Sei muito que conheço pouco. Não sei.
Nada me falhou que me houvera sido prometido.
E em palavras apenas te dou música por ambiente.

Há década & meia (a passar de), convivi com estropiados.
Era em instituição clínica de muita antiguidade.
Ora, aqui há dias, revi gente daquela muito afim.
Doeu-me mais o ser esta tão nova, tão sem-retorno.

Talvez eu te nomeie, Bárbara, compositamente.
Talvez, Dinamene, sejas mescla de outra gente
que eu horizontalizei a preceito quando moço.
Se sim, aqui subliminarmente te duvido, Laura Lídia.

Certa vez de incerto outrora, vi uma estátua maravilhosa:
movia-se, respirava, era como tu mas carnal (& carnívora).
Foi na fila para a Secretaria-Geral da Universidade de Coimbra.
Época de matrículas não-informatizáveis, século & milénio passados.

Vinha de verde-claro, boca vermelha como um grito ou um murro,
pele perfeita, solar como os domingos da infância,
sapatos azul-noite, rítmica a ponto de pendular.
Cacei-me mirando-a como se eu Pedro, Inez ela.

Não era Inez nada. Petrificado eu sim, ante tal desconchavo.
Eu teria talvez 22 anos, ela mui talvez mil.
Esperava-a na rua um fedelho imberbe, capotável, insalubre.
Ele porém a tinha em mãos, eu não. Ainda a não tenho.

Uma coisa, Lídia, te garantir posso, a que procedo:
ninguém escapa. Não é crível o argumento avesso.
Tenho tocado mortos que por aí vivos se mostram.
Nem todos demonstram lucidez quanto a tal.

Também por tal procedo a odes no conjuntivo.
Na praia foi que li aquele drama de senhoras do Pessoa.
Fiquei assaz arrebatado, julguei compreender, que tonto sou.
Vejo-o por vezes em radiografia, sonhando ou coiso.

Nesse tempo, a uma-da-tarde não era esta-d’agora-hoje.
Fumava eu então cigarro nenhum, nem café bebia nos cafés.
Tocando-me toda a possibilidade, nada me parecia impossível.
Convocaram-me então para a tropa, adquiri virtudes novas.

Ainda te não inventara, bárbara Bárbara, nem em ti pensara.
Ia a bailes, tocava no conjunto, via do palco quem bailava.
Há bem 27 anos que o não faço, se contas não erro.
Nostalgia? Não gosto disso. Gasto mas não gosto.

Se, fora de conjuntivas odes, me visses por aí de autocarro,
minha Lídia puríssima, por aí de autocarro coimbrando-me,
a enxuto pré-senil verias, que as não digo por meio-troco:
ex-menino, ex-rapaz, ex-quase-tudo a começar por ex-nascido.

Artistas-arquitectos da Europa se achegaram a este sul.
Lavraram pedra que hoje remanesce orgulhosa.
A Igreja os remunerava, assim se usava então.
Tantos séculos-máquinas volvidos, nem imitá-los sabem.

Tenho, Laura, lido conscienciosamente o meu Duby.
Tu sabes: catedrais, o Ano Mil, todo aquele susto pétreo.
Vogo nessa leitura como um justo: nem pareço envelhecer.
Se deveras envelheço, é, como em O Pai Tirano, “contrariado”.

Há muito me pus renegando, Dinamene,
quem de porvir-pretérito por igual me renegara.
Acamei demasiadas camas & damas sem lençóis profilácticos,
não cuidei de companhia: luz-da-manhã-que-me-despertasse.

Mal fiz, mal me acho. Ou não tão bem quando previsto.
Saio à rua anónima (mas de que sei o nome).
Procuro algumas Lídia, Laura, Bárbara, Dinamene:
nem uma entre nada-zero, cortaram os telefonemas.

(Aqui sozinho-entre-rapazes, confio pouco em poemas:
mormente nos meus como nos maus, esses que a mármore não chegam.)
(Confio na minha morte, aí onde só nome-duas-datas,
aí onde, já nada sendo, serei ainda.)

17/02/2022

REGISTOS CIVIS - 70 & 71

© Amadeo de Souza-Cardoso


Mesmidão – 70

                      


Podeis (e se calhar deveis) opor a meus Amados Mortos
Vossos mesmos Amados por igual mesmidão Mortos também.
Pretendo tão-só universalizar, em Vós, a particularidade minha,
que acinte/afrontosa não há-de ser ante V.ª mágoa.



não sei donde nós viemos ou vamos enquanto gente.


redigiu Candide, que do Terramoto/Lx./1755 dá parte.




               


    Desertos cronológicos impõem-se a espaços na mente. Há que devassá-los sem quebra. Acontece a toda a gente. Ninguém anda por aí a inventar a pólvora. A individualidade, sim, existe – mas ele há coisas transversais à condição humana.

Somem-se sem retorno as euforias frívolas.
A reiteração do já-vivido volve-se recorrente.
Isto é de grande naturalidade, instala-se espontaneamente.
E a contemplação ganha foros de tribuna permanente.

Colado a nós, o nome institúi-se pessoa-própria.
É a nossa marca, sombra fugidia embora.
É o que portamos nos tais desertos, carga sensível.
E não sermos tal nome é-nos impossível.

    Segunda-Feira-Catorze-do-Dois. Em trânsito sentado vou andando quieto. Escuto a prelecção proferida por uma senhora a propósito de matéria documentável. A manhã acontece de luz indecisa.

Livros com ar de pessoas esperando.
São entidades da casa, alternativas dimensões dela.
Valem também como universos-paralelos, digamos.
Aquele: Pedro & Inez nele; aqueloutro: R. em Duino.

Permitem que nos não sintamos tão finitos.
Oferecem portais-do-tempo-espaço perfeitamente acessíveis.
Alimentam instantaneidades ubíquas, por assim dizer.
Migalhas diamantinas como o Sol fragmentado em água.

    Segunda-feira, pois. Em curso, a tal prelecção da tal senhora. Estruturas arquivísticas. Métodos preferíveis de classificação. Destruição segura de documentos. Remessas & partilhas instrumentais. Conservação física. Acessos.

Sinais de vida: como fanais ardendo na noite do entendimento.
Outros sinais: aqueles mais pressagos, ominosos, funestos.
Alguém que algo duradouro nos transmitiu.
Alguém tão de nós diverso que nem idioma é possível.

Constâncias primevas da constituição pessoal.
Aquilo que nos tira de parecermos outros.
Aquilo que nos salva de sermos outros.
Custo: solidão garantida para o resto da vida.

    Segunda-feira de um ano oblíquo, por assim dizer. Em curso, probabilidade de incerteza(s) candente(s). Pouquíssima gente ao alcance de qualquer das mãos. Os efeitos de escolhas pretéritas alinham-se ora em montra transparente: espelho.

Invejáveis pessoas, essas capazes de habitar tão-só o presente.
Com elas, não logram bulir nem o ido nem o por-vir.
Agem no imediato, não erram o chão quando defecam.
E não as toca qualquer sentido trágico – nem có(s)mico.

Nem morte súbita as sobressalta, por julgarem-na alheia.
Como os marinheiros de Ulisses, de tímpanos rolhados a cera grossa.
Lídimas são no trato do dinheiro, das courelas, leiras, belgas, olgas.
Os funerais & os baptizados parecem-lhes de conforme teor.



16/02/2022

REGISTOS CIVIS - 65 a 68

© DA.


Landes & viandas mirandas – 65

                     

 

    Lago turquesa entre ribas verdenegras. Natureza por enquanto poupada. Não longe, todavia, duas centrais de produção eléctrica a carvão. Em diverso panorama (em diverso ano também), edifício amarelo-canário-alimentado-a-limão de janelas verdescuras. Uma horta. Profusão de gatos semivadios. Laranjeiras potentes, carregadas de filhas. Derredor, mansões devolutas (clãs extintos). Cultivos geométricos. Alguma pecuária.

    Dor imponente. Sensibilidade riscada à unha-garra. Impotência perante o desconcerto de alguém muito estimado. Mas ao mesmo tempo: ante a peremptoriedade da extinção, resignação sem romantismo. Frio nenhum no Fevereiro corrente (neonoite de Dez-do-Dois-Quinta-Feira). Um par de adultos conversa sobre a reparação de um autoclismo (casa de D.ª Teresa): com descontos & tudo, trinta & quatro euros.

    Era em Paris. Alimentavam-se a ostras & champanhe. Talvez o caviar tenha chegado com os ballets-russos-&-os-pássaros-de-fogo-&-as-sagrações-da-primavera-&-o-bodo-ao-Maiakovsky. Era antes da afroarabização global. Proust era vivo por um fio, Wilde extinguira-se em particularíssimo holocausto. A repescagem possível? Duas fotografias de vez em quando, aqui & ali algum verso menos infeliz, com que aliás rima Paris.

    Registe-se que Coimbra em muito difere do imediatamente exposto supra. A poesia de aqui, há que sonegá-la aos colégios. Digo: aos pretensos (& pretensiosos) cânones. Não temos vida-literária, temos só vida – o que, ante a morte fazendo contas, nem é assim tão pouco. Antigamente, havia ainda no Gil Vicente uns ciclos Tati, Hitchcock, Kurosawa, Bergman. Acho eu que havia. Mas, se houve, foi já dia.

    As quatro-estações da idade nada querem saber do caos climático real. Estou em meu pré-inverno. Não estou para fazer o/a great-american-novel-à-portuguesa. Circunstâncias (circos, instâncias) & vicissitudes (vícios, atitudes), tudo concorre a uma mordomia que não há porque não é. Já me custou mais, digo, a lucidez de ser a sós que se tem voz.

    À Rua-Primeva-Fundamental? Sim, posso descrever-Vo-la:

Ali Alice se disse enamorada
de Germano, belíssimo mancebo.
Ali foi que eu, à luz de sebo,
li pisco a Odisseia & a Ilíada.

Ali foi que foi-se a Armandinha
que de cavaquinho era tão mestra.
Ali foi que eu, uma certa sesta,
sesteei co’ Anabela Ligeirinha.

Derredor, pessegueiros quintalavam
guaritas de vivendas mais-ou-menos.
Ali éramos todos tão pequenos,
que o Sol & a Lua altos nos miravam.

 

R., R. – 66

                      


No que me rebelo, me revelo.
Ou como dizem os nórdicos: Ei Blot Til Lyst.
Umas quantas (mas poucas) sempre vou conhecendo.
Algumas (mas poucas) merecem-me até sonetos.

Do que valho, resvalo.
Entre o que penso & o que escrevo, há intervalo.
Vivi ontem uma noite em, por assim dizer, consumação.
O Sol de hoje bate egipciamente em o nosso deserto.

Descreio na eternidade da alma & até da alma mesma.
Creio na rede neuronal, na noz cerebral, tangível, maravilhosa.
Creio na ambivalência couve/rosa.
Creio em Vós também – mas é separados que seguimos.

Preciso de sapatos novos, estes estão desconjuntando-se.
De pés, não mudo – nem de caminho.
Não sem certa glória me obstino andando.
No que me rebelo me vou revelando.

 

Esparguete – 67


 



Referi hoje Mercè Rodoreda a uma senhora de minha conversação.
Julgo tê-la, à conversada senhora, interessado titularmente.
Em conversa, cada um/a revela de si a una condição.
(Onde digo una, digo singular – mas multiplamente.)

Com certa onicofagia me tenho ainda assim desenrascado.
(Não, não me envernizo, só me infernizo.)
De resto, disponho de tudo o que é preciso.
(Tirante talvez algum bolo, algum trocado.)

Bárbara Moraes de Lopo Guimaraens
casou-se com magnata dono de milhões-vinténs.
Poesia? É como uma plantação de esparguete:
só nela se metendo sabe que/quem nela se mete.



 

Proverbial – 68

                      




“Não há fome que não dê em fartura”
– fartura de fome, mormente.


 

15/02/2022

REGISTOS CIVIS - 64


Mais reticências entreparentéticas – 64

 



(…)



Fazendo vou por ter ainda alguns dias
alguns dias capazes de boa laboração
quando recorro à terceira-pessoa, faço-o sem ilusionismo
ferro, magnésio, carbono, farinha, tudo nos comunga
não me sinto excepção nem regra, por norma não
tenho tomado a medicamentação, o organismo dura

a revolução mundial, levo-a a cabo sem pressa
mudo de sítio os lápis, vou à marquise, espero que chova
a vicissitude pessoal, dou-lhe alimento de pé na cozinha
devolvo os lápis ao sítio, saio da marquise, oro por chuva
a 7 de Março próximo é dada a sentença ao Ricardo Salgado
ao contrário de mim, ele alega esquecimento

esta manhã (ora acabada), agi concertadamente
em mim foram contemporâneos o presente & o pretérito
fiz de Gilberto Valdez Bom-Dia Senhoromem
alimentei (manhã muito cedo) as aves da primeira-hora
não cometi a vaidade de chamar modesta à própria opinião
dei-me a prognoses ligeirinhas, que não levianas

pensei um pouco na tragédia pessoal de Oscar Wilde
não risquei conclusões, lamentei-o como lamento Alan Turing
& a execução de Sócrates & Albert Speer não ter sido enforcado
pensei também & ainda em animais a que pertenci
(mulheres, alguns deles)
& quase fui feliz dactilografando páginas sem porvir

assoma ora o período vesperal, na cozinha o caldo ferve
longe, o mundo próximo barafusta insonoramente
o que por aí vai de luz, de destinos, de contravenções
sinto-me por vezes tipo porteira de prédio francês nos 50/XX
aqui em meu cubículo, lamparina, caldo, pantufas, senhora-de-lourdes
& o transístor baixinho surdindo danças-de-salão

(…)


14/02/2022

REGISTOS CIVIS - 55 a 60



Ora hora – 55


 

Da bruma superfluvial, progressiva configuração de laranjeiras.
Chapinham faluas quase quietas, rumorosas elas quase.
Na ínsua, a casota das ferramentas dorme ainda qual pessoa.
E a alta rosa-dos-ventos quase range às primícias de luz.

Tudo é em gravura sensível só a autoapaziguados.
Campeia por aqui memória nenhuma, sobretudo futura.
Sem madrugador, existe ou inexiste a supra-gravura?
Por nada eu perderia tal oportunidade, despertando cedo.

Não há que conversar – nem com quem.
Há a probabilidade directa (& dilecta) do dia novo.
Natura & obra humana irmanam-se a favor.
Humana – de quem? Livro infinito, tal resposta.

Despertando cedo, cedo me erguendo, chego lume ao lar.
Deixei preparados, de véspera, os apetrechos do desjejum.
Sim, já no mundo pissitam as primeiras aves.
E um traço de ouro frecha já os alcantis azuis.

Não é, felizmente, domingo – a manhã quer-se útil.
Depois de saciado, lavados os apetrechos, saltada à vila.
Compras miúdas, correios, café com Henrique, retorno.
Retornar manhã ainda – e antes das onze horas dadas.

Já humanos tripulam as faluas, ligeiras estas vão.
Já piscam redondos incêndios, as laranjas, nas laranjeiras.
Soergueu-se a bruma, diáfana rutila já a cristalaria.
No alpendre, à mesa ali posta, é ora hora de escreviver.


 

Sine Dubio – 56

                      



    Passei hoje algum tempo sopesando o princípio (& as limitações) da livre apreciação de prosa, perdão, prova + o fugidio in dubio pro reo. Entretiveram-me exemplificações práticas tendentes ao esclarecimento dos pressupostos teoréticos. Não perdi esse tempo, pois que algo aprendi & algo retive. Duas horas foram esse algum tempo.
    De seguida, variei no sentido da banheira (duche forte & rápido), caneca de chá com fatia de bolo, penates à rua.
    Faz um tempo escandalosamente aprazível. Total, o azul celeste (o chamado cerúleo) impera sem obstáculo. Está até calor, dobradas porém já as cinco da tarde februária. Somos mais & mais, cada vez mais, em meteorologia, norte-de-áfrica do que sul-de-europa.
    Se não como sempre mas pelo menos desde há muito, o remédio está na leitura. (O meu remédio, digo. Pela alheia remediação, não falo.) Tenho fila formada de tomos a-ler. O tempo, precioso sempre, não é negociável. Assim eu o pudera, al não fizera: digo, ler.
    Milénios de papéis impressos impõem-me desejo & efemeridade. Ainda assim, dou-me bastas vezes ao luxo capcioso da releitura (Pessoa, Proust, Joyce, Sófocles). Tenho andado com Maugham ao colo. Apetecem-me Yourcenar & Montalbán. Tenho o meu Cornford. Em breve (re)terei, de novo, a Rodoreda (Mercè) & o Sitwell (Osbert). Digo isto sem dúvida nem íntima nem alguma.



Guaritas – 57

 


Em diversa acepção, guaritas há na ideia ultraquotidiana,
remanescências de uma disposição sensível a camadas,
estratos de algo entre o entendimento puro & a confusão simples,
qualquer coisa entre o sentido & o além-corpo plano.

Um estanco de mercearias aberto ao tráfico de compradores.
vigência supervolante das pombas adaptadas à urbe,
cuidados básicos a ter para com a regulação do metabolismo-basal,
diversa predisposição de cada idade ante semelhante obstáculo.

Ao cabo de uns tantos anos, cedências (& cadências) amestram resignação,
nenhuma fúria mas serenidade ante a erógena estesia,
chega uma pessoa a rir-se não ante mas do próprio espelho,
nem histórias de navalhadas ou raptos incendeiam a libido.

Campeões do comércio, ases da indústria, espertalhões da literatura,
flibusteiros dos entrepostos, corsários da aviação, pandorgas da província,
nefelibatas da passa, secretários da (im)puridade, especialistas de tudo,
sábios de nada, bebedores de proximidade, catedráticos de futebol:

em Democracia, podemos todos ladrar, pois antes isso, antes assim,
antes em Democracia do que em hediondo totalitarismo anti-pessoa,
prefiramo-nos rodeados de idiotas a de energúmenos-mastins,
mesmo quando nos repugne (& se nos repugna!) o global apimbalhamento.

Cause-nos indiferença quem não faz a diferença,
mesmo – ou sobretudo – em o simples trato ocasional
(não confundir com o tracto intestinal),
só indiferença – sequer desprezo – tal ninguém nos mereça.

Posto isto nas devidas calmas, alguma paz mereçamos,
por exemplo hoje, Segunda-Sete-do-Dois, em finitarde,
é extrema a doçura calórica dos elementos expostos,
trabalhei pouquíssimo mas bem, ninguém me abespinha.

Retrógradas trapalhadas me não desunham já ganâncias,
miro com certa sobranceria mísera misérias pretéritas inconsúteis,
tenho por ganhas quantas noções relativas a coisas inúteis,
de que alimento lonjuras, nutro desertos & engordo distâncias.



Calendário – 58


 

Junho de 1978, jantamos no anexo arroz-de-ervilhas-com-vaca.
Julho de 1987, chove copiosamente no Gerez frondoso.
Maio de 1967, cresce a silveira, frondosa também, além-muro.
Abril de 1999, sou cativo de meu mesmo erro voluntário.

Conversei com Fernando P., era descida em manto a noite solene.
Fora do estabelecimento, cerzia o frio seu sincelo não-maligno.
Estava perto José S., que nunca fala muito nem de mais.
Voltei a pé para casa, há anos que não tenho carro próprio.

Um dos perigos de aprender é a percepção mais segura da banalidade.
Um dos preços de saber mais é a identificação da venalidade.
Fevereiro de 2022, janto fora de qualquer possibilidade de anexão.
Março de 2022, não sei, ninguém sabe.




Lorvão – 59




Lorvão, sobe-se a custo, moinhos respiram altos lá.
Lorvão, dispensário de loucos & alcoólicos & deprimidos.
Nem assim tantos são os anos de interregno.
Nem pensar nisso pode já destruir o que se não construiu.

 



Choupo – 60

                      

 

Pulmonar diagrama, este choupo
de beira-vala é bonito deveras.
Nado há não-sei-quantas primaveras,
trivializa meu humano pouco.

Não sei como é em as Vossas cidades.
Na minha assim é, sempre tem sido.
Acontecer aqui é ter nascido
por força de diversas veleidades.

(A conta de ser aqui é ter nascido
por amor de outras duas vontades.)


12/02/2022

REGISTOS CIVIS - 53 (incompleto) & 54 (todo)

© DA.

Romanos – 53 




I



    Laura Maciel Drago Píndaro diz ao empregado-de-mesa que quer chá-preto, o seu interlocutor, que é Albertino Francisco Teles Saraiva, diz whisky ao mesmo. Estão na esplanada do Café Santa Cruz. Ao contrário do que precisamos, não chove: antes sim a rosa áurea do Sol fulge flava sobre campo azul chamado Céu. Laura & Albertino foram já casados entre si. Ficaram mais ou menos amigos, tirante os primeiros anos sequentes à separação formal. Encontram-se de quando em vez para chá & whisky & algumas variações dialogais. É o caso de hoje-sábado-cinco-do-dois.
    De longe em longe, algum dobre brônzeo ressoa hora em mosteiro perdido. Pode ser. Laura, que não quis biscoitos para o chá, recorda a Albertina a figura de uma mulher estúpida de quem tanto ela-Laura como ele-Albertino foram colegas na sala-de-professores do Liceu D.ª Maria. Albertino ri-se, bragadamente embora – sim, era estúpida como um trapo atirado à fogueira. Nem Laura nem Albertino têm de momento amizades conjugais. Laura ficou com o apartamento que, sem filhos, foi de ambos. Albertino ocupa uma salão com casa-de-banho & lareira no sopé do Tovim.
    Conversam sem horizonte nem expectativa. Laura está incomodada com a perspectiva de uma consulta de psiquiatria marcada para daqui a um mês. Albertino tem cálculos biliares: pedradas vindas de dentro.



II



    Mestre-Sol-de-Todos-Pai não fulgura só em o Egipto Antigo: também esta Coimbra-Século-XXI dele é esbraseada. Em compensação, voa sem asas um zéfiro frígido, titilado a invisível (gelo) ou sincelo. É começada a tarde, já os Conimbricenses de algumas posses almoçaram. (Os demais, ninguém sabe se ou quer saber o que.)



III



    “Éramos, ao todo, o Tangas, o Mangas, o Mirandelas, o Cagacibelas, o Abreu, o Outro & Eu.” – isto me respondeu Idílio António Severino Cação quando o demandei a propósito de certa ocorrência não notariada pela polícia. Quedei-me cabalmente informado – coisa tão rara, suponho eu, na minha vida quão na V.ª.



(...)




VI



        Rita diz:
        – O meu pai era caçador mas a morte caçou-o.
        E eu não digo coisa muito diferente em quanto & enquanto escrevo.)


 

Próprios – 54




    Fernando, ontem, e João, hoje, voltam a prestar depoimentos. Fernando, sobre livros; João, sobre filmes. Já ambos morreram – mas há registos que alguém de vez em quando ressuscita dos arquivos.
    As imagens seguintes dão substância móvel ao rebanho social. Não há grandes referências, predominando a fluidez. Certo cinzentismo também.
    Fernando & João foram do tempo destas pessoas que não constam (individualizadas) de livros ou filmes.
    À cidade sucede-se o deserto em forma de planície. Restolho de palha erodida de sol, raros homens, tisnados todos, funcionando obliquamente no horizonte.
    Finitude garantida. Ainda assim, livros & filmes resistem um pouco mais, ainda. É sempre um pouco estranho vê-los, a Fernando como a João, de novo respirando, articulando seu silabário pensado. João fuma consecutivamente. Fernando está de casaco de malha, desses de trazer por casa.
    Depois, um Victor. Também este ido já. E um Mário. Idem. O País tem obras de gente que teve. Continua País. Os indivíduos são arredados como escolhos, enxotados como moscas. Nem todos, porém. Alguns levam a ribeira a sua azenha. Depois, morrem também.
    Amiúde, figuras do rincão português afloram à ideia do passante destas linhas subscritor. Álvaro, Afonso, Luís, Jaime, Raul, António. Alguns exilados. Furor gráfico, agitação esconsa. Explicação contextual de estátuas. Um Vasco, um Eduardo, um José, um Carlos, um Fernando (outro, não o das primeiras linhas de hoje), um Humberto. Os registos/arquivos fervilham, redivivos por instantes decerto inglórios.
    Nisto, naturalmente se mesclam as dimensões: conspiração, intentona, ressurgimento, reformação & reformulação – revolução, só muitos anos volvidos. Vento forte nos choupos de beira-água. Torna-se precária a destrinça de anos/décadas. Os contrastes exultam de rigidez. E aqui dentro (na ideia) a sensação do demasiado-tarde. Certa noção fugidia: a de Grei. Outra: Cooperativismo. Essencial: Educação/Instrução/Formação.
    Joel, António (José), Hernâni, Fidelino, Vítor (Manuel), Alexandre. Gente que é aprazível aprisionar em carneira encarnada letrada a ouro. Em este Inverno, umas poucas vezes lampejam tais nomes. Algum pontual desassombro. Algum raro petardo esfacelando alguma rara calçada. O século XX, hoje tão antigo quão o XII da formação da nacionalidade, ainda remexe desperdícios, ainda alvoroça arquivos, ainda interroga em voz-alta.
    Mais fundamente, Herculano, Antero, Oliveira Martins, Sérgio – a bem de uma nação poucas vezes maiúscula deveras. Certo desejo de elevação, certa hombridade talvez inata.
    Uma horda desgarrada de empregados-de-escritório.
    O contraste é a meteorologia rutilante, bêbeda de ouro.
    Noctívagos mal dão conta desta orgia natural.
    Madrugadores perdem menos, se contas forem feitas.

Canzoada Assaltante