09/02/2022

REGISTOS CIVIS - 51 & 52




(…)

no pátio o homenzinho de três anos descobre um tesouro
na praça poeirenta ao sol inclemente passa o funeral
pode o homenzinho de três anos contar quatro afinal
não há maneira de certificá-lo com indeclinável firmeza
qual das duas recordações primevas é primeira de facto?
qual das duas é mais pré-na-história do homenzinho?

no pátio o tesouro era algo com que brincar a cores
a lembrança é porém a cinza-e-branco, como nos sonhos
na praça poeirenta (terra-natal do Pai) o funeral é de homem
isso sim é certo, por alguma razão se demora na mente
calor inclemente, agonia da perpetuidade & cheiro a flores roxas
autoridade da cerimónia, gravidade do caos adulto

no pátio os tesouros pareciam brotar por geração-espontânea
como antanho se cria nascerem do lixo os ratos
caixas embarcadiças de ananás-dos-Açores juncavam o quintal
sob o pessegueiro a diligente viscosidade caracólica
éter & (é)ternidade fundiam-se então, parece, para isto:
versos de meio-século empós, vai-se a ver & para nada

do pátio firmou-se depois a ideia-de-aqui-Portugal
o pát(r)io-torrão, o nativo-cadinho, mãe-pai-berço etc.
pouco (nada) tardando, eis (que) na escola o homenzinho
fascínio inamovível das primeiras-letras, giz-ardósia
sortilégio inapreçável & impagável das sílabas-dinâmicas
& (ou mas) também os algarismos preci(o)sos como segredos

na praça poeirenta a lentidão absoluta do féretro fúnebre
as mulheres encapuzadas a negro, delas a titânica dureza
os homens baixos, lusitanos, mineralmente cristãos
mais nenhuma criança porém, só o homenzinho
o padre latindo-latinando um céu feito afinal de terra
dura terra que foi preciso esvurmar a ferros duros quais mulheres

na praça poeirenta ainda a lembrança se faz peremptória
talvez, quem sabe, contemporânea do feitiço lembrado ora
por ser de feitiço que aqui se trata, dúvida nenhuma
do pó nascem, como do lixo os ratos, homens, mulheres & homenzinhos
(& padres latinófonos, que também são gente)
mais de meio-século volvido, continua tudo sendo-(v)ir-se

na praça poeirenta estiola-se a primícia da verdura
já o homenzinho idade conta antes de saber contar
já o homenzinho lê o que vê antes de saber ler
já o homenzinho conta antes de saber calcular
já o homenzinho olha antes de saber ver
isto tem muito de que se lhe diga, haja quem ouça

da praça poeirenta firmou-se depois a ideia-de-aqui-Portugal
o fúnebre-sentido-de-recém-nascituro-depois-de-nascido
nunca mais o homenzinho desassociou funerais de festividades
por exemplo-primo, a de encontrar no pátio um tesouro
ou a de uma espécie de sopro ter movido estes cortinados
ou a de aquele cão ter ouvido, aqui, alguma coisa na China

no pátio ora poeirento morreu há muito o pessegueiro
uma resma de tijolos escaqueirados lhe sufoca a raiz
a pia-dos-patos só chovendo tem água
os patos foram criados, comidos & esquecidos
por horizonte, em silhueta, o monte prepara o sudoeste
homenzinhos há porém que à velhice escapam

o pátio não era afinal o Portugal todo, não era
(antes fosse, meu doce, antes fosse)
há mais Portugal no futuro imediato do volúvel presente
o homenzinho escora a livros os iminentes aludes
as eminentes virtudes & as estremecentes senectudes
a dúvida é só já quando, não se, quando? é que se não sabe

na praça poeirenta não sabe ainda o homenzinho muito mais
sabe que no pátio tem patos & em casa os Pais
as décadas primeiras arrulham mas as últimas crocitam
de pão-garantido a pão-por-ganhar, caraças, vai tanto
um deserto impõe-se entre pensar & consciência de pensar
passa, isso sim, voltando a passar, o pó-funeral-ao-sol

a praça poeirenta (1967? 1968?) vigora sem temor nem tremor
o ex-homenzinho já a revisitou, parece tudo na mesma
& no entanto há muito por ali se mudou de padre
(de padre, de mulheres, de cães, de pessegueiros, de ratos)
só de pó não, de sol não, de morto não, de Pai não
(isto se diz a si o ex-homenzinho tartamudeando sem sombra)

pátio & praça vigoram legislatura, do ex-homenzinho, até a memória-futura
uma terceira primo-lembrança pode acudir-lhe porém a concurso
: é a da manhã brumosa durante a que, em plena Portagem
(ali à boca da Ferreira Borges, onde eram a Singer & a Valentim de Carvalho):
& essa 3.ª-1.ª-lembrança é a da pergunta-a-ninguém, est’assim:
e-se-nada-fosse-seja-ou-viesse-a-ser?

e esta é a pergunta a que ex-homenzinhamente se não sabe responder

(…)




    e-se-nada-fosse-seja-ou-viesse-a-ser?

    Casal na esplanada que frequento: tem cadela chamada Maria.
    Profana democrática coisa: também nome de bolacha & da Mãe-de-Deus.

    Aos três ou quatro anos de nascido, achei no meu pátio um tesouro.
    Não sei que tesouro. Sei ter sido tesouro achar.

    Aos três ou quatro anos de nascido, assisto ao primeiro funeral.
    Com 57, perdi já entretanto Jorge, Pai, Mãe & Rui.

    Quanto à pergunta em itálica epígrafe, pois não sei.
    É a autoridade, aliás có(s)mica, da minha ignorância.

    Não é não saber – é não poder.
    O Cosmos não tem céu que veja, nós sim.

    O céu, por sua vez, não tem sul nem norte.
    Nós sim: nascer & morte.

   Morreu (dizem que ontem) Lauro António, n. 1942, cineasta. Era Português. Vi uma vez a adaptação que fez (para TV) do conto Week-End, de José Cardoso Pires. Fê-lo na Figueira da Foz: João Perry (que belíssima voz!) & Maria do Céu Guerra (que belíssima voz!) protagonizaram tal criação filmada.

    e-se-nada-fosse-seja-ou-viesse-a-ser?

    Novidades quanto ao próximo Governo, talvez dia 20 ou ss.
    Não me parece haver grande inquietação quanto a tal.

    O Mondego é, em extensão, o maior rio nascido em Portugal. Ou então não é, não sei, nunca o medi. Não meço o céu. Nem o que uniu o senhor meu Pai à senhora minha Mãe. Há coisas que não se dão à sabença. O átomo. A electricidade. A maçã cair da macieira. O esférico que gravita. O íman: magia da atracção. A claríssima inteligência de alguns verticais que por aqui rasgaram véus de entendimento. O céu que melancoliza a pessoa. O, mesmo embora, que euforiza a pessoa. (E nada disto vir do céu, mas da pessoa.)

    Não sei. Tenho (tão) pouco tempo-vivido depois daquilo do tesouro/pátio, do funeral/praça-poeirenta! Sou inacreditavelmente ex-nascituro! Mas pergunto-me: porra-porra-que-merda-é-esta-porra-toda? Como se acordasse do coma placento-amniótico, não sei, sei lá.

    Trissa no ar restrito a andorinha
    Não requer sabença de nossa origem
    Ela é oblíqua de a sós vertigem
    Respondona ela é sem perguntinha.

    Trissa não rarefeita a andorinha
    Do ovo nada é como nós todos
    Se nada de nada é ou de nascida
    Não lo sabemos todos pós-nascidos.



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Canzoada Assaltante