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Pessoa(s) – 45
Pessoa sentada em sítio público, assento de pedra, pombas, tramitação de peões por as circunstâncias do local, manhã meada. Não foram concluídas as obras de que tem sido objecto o prédio cor-de-rosa (armazéns). A pessoa sentada: José Maria ou Maria José. Peões que passam em todos os sentidos: Josés & Marias & Marias & Josés.
A pessoa sentada come amendoins de um saco de papel. Sabemos pouco dela: por raramente nos conhecermos a nós mesmos – quão mais a outros. Por modos, não é alérgica a amendoins. A abelhas ou gatos, desconhecemos.
Sim, os Outros: vulgares, fascinantes, imponderáveis, de múltipla singularidade.
Acaba-se a manhã, começou Fevereiro por/com/em ela. José-Maria-Maria-José acabou os amendoins, atira ao contentor certo o saco de papel, desentorpece as pernas, disfarça um bocejo, afivela a máscara, entra na Loja do Cidadão.
O mundo almoça. Nesta zona, proliferam as casas-de-pasto consagradas pelas décadas. Sobrevivem as que conseguem ir levando o barco a mais-ou-menos-bom-porto.
Enquanto José-Maria-Maria-José trata da sua burocracia pessoal, cá fora Manuel-Maria-Maria-Manuel considera a gravosa questão relativa a onde almoçar. Decide-se pelo MijaCão: sopa, bifana no pão, tinto traçado a gasosa. Os outros comensais imitam-no sem plágio nem esforço. É a sobrevivência em processo. É a manada pastando. Iscas, bacalhau frito, orelha, omelete, petinga, jaquinzinho, queijo-fresco.
Demais gente (decerto de mais) patinha em estado de precariedade material. Ali, o homem que oferece plastificação de documentos (num tempo de certificados digitais). Além mais, o acordeonista cego (numa era de smartphones autistas). Este elenco quebranta o coração aos menos indiferentes de entre nós.
A tudo alheio, o Sol-Pai-de-Todos explode em ubíqua surdina: geral ouro, quilate dos pobres. Aí vai Miriam Genoveva Café Tancredo. Leva pressa: vai ser entrevistada para emprego em limpezas.
Deficiências, obscuridades, agências, sucursais, filiais, delegações, representações, admissões, rejeições, petições, fraudes, funções, arrumações. Tudo em dinâmica. Em fulgor tudo. Como pode a pessoa eximir-se à catadupa de arrebanhantes epopeias pequenitas? (A esta pergunta, evidentemente retórica, tente-se retórica – espúria portanto – resposta em versos, sim? Sim.)
Não cedas a patrono leviano.
Oráculos não busques (se não for por turismo).
Vêm fumar ao sol os internados.
Gravitam orlas de feira os desvalidos.
De sapatilhas velhas, calças rôtas, o Carlos-Maria-Maria-Carlos.
Jovens passam em altas gargalhadas.
Velhitos talham capelas-imperfeitas.
Por umas poucas moedas, alguma serenidade.
(Em caso de notas, até felicidade.)
É belo que os versos a nada obriguem.
Sim, é belo sim, que os versos obriguem a nada, bem antes pelo contrário talvez-assim-assim. Esquemas visam prejudicar o próximo (ainda que distante) – mas a poesia (mesmo a màzita) não, coitada. Já José-Maria-M.-J. saiu da Loja do Cidadão. Batem altas & pluríssonas as três-da-tarde. Correram-lhe bem as coisas burocráticas, a ponto de as trazer resolvidas a todas. E agora? Velha questão.
Agora penso em ti, pretérita & imperfeita.
Há muito resolvi porém demandar(-me) longe.
Deram ora as três repercutidas a bronze.
Menos mal vive quem mais bem s’ajeita.
Antes sem ti em mãos do que contigo à perna.
Aqueridinhar em vão é vã toleima.
Quem brinca com o gelo, também se queima.
Antes sem ti do que fechada a taberna.
Gaivota empalhada na mais alta prateleira.
Relógio-de-parede pelo bisavô legado.
Caixilhos da janela a verde-marinho.
Banheira oxidada sem retorno.
Penso agora nos homens que te visitaram.
Que gardénia levaram a que lapela?
Quantos deles veramente te amaram
ou desejaram só a-ti-ela-por-ela?
Talvez hoje bem te governes sem mor cuidado.
(Oxalá que sim, enfim, mal te não quero.)
Eu já só ao autocarro é que espero.
(Milagres não, que sou ateu vacinado.)
Já me não adoçam rebuçados salariais.
Já me não amargam desventuras da libido.
Eu isto vou levando sem cruzes especiais.
Pior do que morrer é não ter vivido.
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