14/02/2022

REGISTOS CIVIS - 55 a 60



Ora hora – 55


 

Da bruma superfluvial, progressiva configuração de laranjeiras.
Chapinham faluas quase quietas, rumorosas elas quase.
Na ínsua, a casota das ferramentas dorme ainda qual pessoa.
E a alta rosa-dos-ventos quase range às primícias de luz.

Tudo é em gravura sensível só a autoapaziguados.
Campeia por aqui memória nenhuma, sobretudo futura.
Sem madrugador, existe ou inexiste a supra-gravura?
Por nada eu perderia tal oportunidade, despertando cedo.

Não há que conversar – nem com quem.
Há a probabilidade directa (& dilecta) do dia novo.
Natura & obra humana irmanam-se a favor.
Humana – de quem? Livro infinito, tal resposta.

Despertando cedo, cedo me erguendo, chego lume ao lar.
Deixei preparados, de véspera, os apetrechos do desjejum.
Sim, já no mundo pissitam as primeiras aves.
E um traço de ouro frecha já os alcantis azuis.

Não é, felizmente, domingo – a manhã quer-se útil.
Depois de saciado, lavados os apetrechos, saltada à vila.
Compras miúdas, correios, café com Henrique, retorno.
Retornar manhã ainda – e antes das onze horas dadas.

Já humanos tripulam as faluas, ligeiras estas vão.
Já piscam redondos incêndios, as laranjas, nas laranjeiras.
Soergueu-se a bruma, diáfana rutila já a cristalaria.
No alpendre, à mesa ali posta, é ora hora de escreviver.


 

Sine Dubio – 56

                      



    Passei hoje algum tempo sopesando o princípio (& as limitações) da livre apreciação de prosa, perdão, prova + o fugidio in dubio pro reo. Entretiveram-me exemplificações práticas tendentes ao esclarecimento dos pressupostos teoréticos. Não perdi esse tempo, pois que algo aprendi & algo retive. Duas horas foram esse algum tempo.
    De seguida, variei no sentido da banheira (duche forte & rápido), caneca de chá com fatia de bolo, penates à rua.
    Faz um tempo escandalosamente aprazível. Total, o azul celeste (o chamado cerúleo) impera sem obstáculo. Está até calor, dobradas porém já as cinco da tarde februária. Somos mais & mais, cada vez mais, em meteorologia, norte-de-áfrica do que sul-de-europa.
    Se não como sempre mas pelo menos desde há muito, o remédio está na leitura. (O meu remédio, digo. Pela alheia remediação, não falo.) Tenho fila formada de tomos a-ler. O tempo, precioso sempre, não é negociável. Assim eu o pudera, al não fizera: digo, ler.
    Milénios de papéis impressos impõem-me desejo & efemeridade. Ainda assim, dou-me bastas vezes ao luxo capcioso da releitura (Pessoa, Proust, Joyce, Sófocles). Tenho andado com Maugham ao colo. Apetecem-me Yourcenar & Montalbán. Tenho o meu Cornford. Em breve (re)terei, de novo, a Rodoreda (Mercè) & o Sitwell (Osbert). Digo isto sem dúvida nem íntima nem alguma.



Guaritas – 57

 


Em diversa acepção, guaritas há na ideia ultraquotidiana,
remanescências de uma disposição sensível a camadas,
estratos de algo entre o entendimento puro & a confusão simples,
qualquer coisa entre o sentido & o além-corpo plano.

Um estanco de mercearias aberto ao tráfico de compradores.
vigência supervolante das pombas adaptadas à urbe,
cuidados básicos a ter para com a regulação do metabolismo-basal,
diversa predisposição de cada idade ante semelhante obstáculo.

Ao cabo de uns tantos anos, cedências (& cadências) amestram resignação,
nenhuma fúria mas serenidade ante a erógena estesia,
chega uma pessoa a rir-se não ante mas do próprio espelho,
nem histórias de navalhadas ou raptos incendeiam a libido.

Campeões do comércio, ases da indústria, espertalhões da literatura,
flibusteiros dos entrepostos, corsários da aviação, pandorgas da província,
nefelibatas da passa, secretários da (im)puridade, especialistas de tudo,
sábios de nada, bebedores de proximidade, catedráticos de futebol:

em Democracia, podemos todos ladrar, pois antes isso, antes assim,
antes em Democracia do que em hediondo totalitarismo anti-pessoa,
prefiramo-nos rodeados de idiotas a de energúmenos-mastins,
mesmo quando nos repugne (& se nos repugna!) o global apimbalhamento.

Cause-nos indiferença quem não faz a diferença,
mesmo – ou sobretudo – em o simples trato ocasional
(não confundir com o tracto intestinal),
só indiferença – sequer desprezo – tal ninguém nos mereça.

Posto isto nas devidas calmas, alguma paz mereçamos,
por exemplo hoje, Segunda-Sete-do-Dois, em finitarde,
é extrema a doçura calórica dos elementos expostos,
trabalhei pouquíssimo mas bem, ninguém me abespinha.

Retrógradas trapalhadas me não desunham já ganâncias,
miro com certa sobranceria mísera misérias pretéritas inconsúteis,
tenho por ganhas quantas noções relativas a coisas inúteis,
de que alimento lonjuras, nutro desertos & engordo distâncias.



Calendário – 58


 

Junho de 1978, jantamos no anexo arroz-de-ervilhas-com-vaca.
Julho de 1987, chove copiosamente no Gerez frondoso.
Maio de 1967, cresce a silveira, frondosa também, além-muro.
Abril de 1999, sou cativo de meu mesmo erro voluntário.

Conversei com Fernando P., era descida em manto a noite solene.
Fora do estabelecimento, cerzia o frio seu sincelo não-maligno.
Estava perto José S., que nunca fala muito nem de mais.
Voltei a pé para casa, há anos que não tenho carro próprio.

Um dos perigos de aprender é a percepção mais segura da banalidade.
Um dos preços de saber mais é a identificação da venalidade.
Fevereiro de 2022, janto fora de qualquer possibilidade de anexão.
Março de 2022, não sei, ninguém sabe.




Lorvão – 59




Lorvão, sobe-se a custo, moinhos respiram altos lá.
Lorvão, dispensário de loucos & alcoólicos & deprimidos.
Nem assim tantos são os anos de interregno.
Nem pensar nisso pode já destruir o que se não construiu.

 



Choupo – 60

                      

 

Pulmonar diagrama, este choupo
de beira-vala é bonito deveras.
Nado há não-sei-quantas primaveras,
trivializa meu humano pouco.

Não sei como é em as Vossas cidades.
Na minha assim é, sempre tem sido.
Acontecer aqui é ter nascido
por força de diversas veleidades.

(A conta de ser aqui é ter nascido
por amor de outras duas vontades.)


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Canzoada Assaltante