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Romanos – 53
I
Laura Maciel Drago Píndaro diz ao empregado-de-mesa que quer chá-preto, o seu interlocutor, que é Albertino Francisco Teles Saraiva, diz whisky ao mesmo. Estão na esplanada do Café Santa Cruz. Ao contrário do que precisamos, não chove: antes sim a rosa áurea do Sol fulge flava sobre campo azul chamado Céu. Laura & Albertino foram já casados entre si. Ficaram mais ou menos amigos, tirante os primeiros anos sequentes à separação formal. Encontram-se de quando em vez para chá & whisky & algumas variações dialogais. É o caso de hoje-sábado-cinco-do-dois.
De longe em longe, algum dobre brônzeo ressoa hora em mosteiro perdido. Pode ser. Laura, que não quis biscoitos para o chá, recorda a Albertina a figura de uma mulher estúpida de quem tanto ela-Laura como ele-Albertino foram colegas na sala-de-professores do Liceu D.ª Maria. Albertino ri-se, bragadamente embora – sim, era estúpida como um trapo atirado à fogueira. Nem Laura nem Albertino têm de momento amizades conjugais. Laura ficou com o apartamento que, sem filhos, foi de ambos. Albertino ocupa uma salão com casa-de-banho & lareira no sopé do Tovim.
Conversam sem horizonte nem expectativa. Laura está incomodada com a perspectiva de uma consulta de psiquiatria marcada para daqui a um mês. Albertino tem cálculos biliares: pedradas vindas de dentro.
II
Mestre-Sol-de-Todos-Pai não fulgura só em o Egipto Antigo: também esta Coimbra-Século-XXI dele é esbraseada. Em compensação, voa sem asas um zéfiro frígido, titilado a invisível (gelo) ou sincelo. É começada a tarde, já os Conimbricenses de algumas posses almoçaram. (Os demais, ninguém sabe se ou quer saber o que.)
III
“Éramos, ao todo, o Tangas, o Mangas, o Mirandelas, o Cagacibelas, o Abreu, o Outro & Eu.” – isto me respondeu Idílio António Severino Cação quando o demandei a propósito de certa ocorrência não notariada pela polícia. Quedei-me cabalmente informado – coisa tão rara, suponho eu, na minha vida quão na V.ª.
(...)
VI
Rita diz:
– O meu pai era caçador mas a morte caçou-o.
E eu não digo coisa muito diferente em quanto & enquanto escrevo.)
Próprios – 54
Fernando, ontem, e João, hoje, voltam a prestar depoimentos. Fernando, sobre livros; João, sobre filmes. Já ambos morreram – mas há registos que alguém de vez em quando ressuscita dos arquivos.
As imagens seguintes dão substância móvel ao rebanho social. Não há grandes referências, predominando a fluidez. Certo cinzentismo também.
Fernando & João foram do tempo destas pessoas que não constam (individualizadas) de livros ou filmes.
À cidade sucede-se o deserto em forma de planície. Restolho de palha erodida de sol, raros homens, tisnados todos, funcionando obliquamente no horizonte.
Finitude garantida. Ainda assim, livros & filmes resistem um pouco mais, ainda. É sempre um pouco estranho vê-los, a Fernando como a João, de novo respirando, articulando seu silabário pensado. João fuma consecutivamente. Fernando está de casaco de malha, desses de trazer por casa.
Depois, um Victor. Também este ido já. E um Mário. Idem. O País tem obras de gente que teve. Continua País. Os indivíduos são arredados como escolhos, enxotados como moscas. Nem todos, porém. Alguns levam a ribeira a sua azenha. Depois, morrem também.
Amiúde, figuras do rincão português afloram à ideia do passante destas linhas subscritor. Álvaro, Afonso, Luís, Jaime, Raul, António. Alguns exilados. Furor gráfico, agitação esconsa. Explicação contextual de estátuas. Um Vasco, um Eduardo, um José, um Carlos, um Fernando (outro, não o das primeiras linhas de hoje), um Humberto. Os registos/arquivos fervilham, redivivos por instantes decerto inglórios.
Nisto, naturalmente se mesclam as dimensões: conspiração, intentona, ressurgimento, reformação & reformulação – revolução, só muitos anos volvidos. Vento forte nos choupos de beira-água. Torna-se precária a destrinça de anos/décadas. Os contrastes exultam de rigidez. E aqui dentro (na ideia) a sensação do demasiado-tarde. Certa noção fugidia: a de Grei. Outra: Cooperativismo. Essencial: Educação/Instrução/Formação.
Joel, António (José), Hernâni, Fidelino, Vítor (Manuel), Alexandre. Gente que é aprazível aprisionar em carneira encarnada letrada a ouro. Em este Inverno, umas poucas vezes lampejam tais nomes. Algum pontual desassombro. Algum raro petardo esfacelando alguma rara calçada. O século XX, hoje tão antigo quão o XII da formação da nacionalidade, ainda remexe desperdícios, ainda alvoroça arquivos, ainda interroga em voz-alta.
Mais fundamente, Herculano, Antero, Oliveira Martins, Sérgio – a bem de uma nação poucas vezes maiúscula deveras. Certo desejo de elevação, certa hombridade talvez inata.
Uma horda desgarrada de empregados-de-escritório.
O contraste é a meteorologia rutilante, bêbeda de ouro.
Noctívagos mal dão conta desta orgia natural.
Madrugadores perdem menos, se contas forem feitas.
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