30/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 859

© DA.

859

Sexta-feira,
24 de Dezembro de 2021


Nomes foram enumerados em rol de fala
Conversava-se à mesa já pós-prandial
O céu desceu degraus, é lívida a tarde
Pouco trânsito nas vias, geral aquietação
A carreta do gás-em-botija ainda ronda
Derradeiras iguarias são compradas a contado
Escapatória, não há – sabeis do que falo.

Ontem (qual afinal de tantos ontens todavia?)
Ontem a palavra dada por honra era honorável
Hoje (e só há este, e pouquíssimo dura)
Hoje há que aceitar a desirmandade dela
Eu vou por linhas de minha exclusiva caligrafia
Minha hermenêutica, minha a sós filologia
Agora hei só que aguentar, pagando em espécie.

Um rapaz que sei jeitoso em electrotecnia
Veio comer um pastel-de-feijão, traz uma revista
Vejo-o sempre sozinho, deve habitar águas-furtadas
Tem aquele olhar endurecido das pessoas ditas práticas
Suponho-o imune a lirismos, a rimas-de-palmatória
A revista é naturalmente para engenheiros & engenhosos
Conhece entranhas eléctricas, talvez goste do que conhece.

Falo-Vos a partir de uma instantaneidade precária
Desatou ora a chover, os do boletim previram bem
Espero uma aberta há décadas, que aliás me não dou
O desígnio pertence-me ’inda, mas já emudeço
A autoridade das causas-efeitos é de força
A roupa de cama faz de placenta-possível
O resto é ir purgando, obter o alimento, ser no dia.

É escusado reiterar-Vos que os tais nomes enumerados
À mesa entre vivos, tipo há hora & meia
Eram os de que foram titulares certos já-partidos
Sobre migalhas & copos meados foram enumerados
É Natal, a Bondade anda à solta como a Lebre
Morrões de poalha pluvial obscurecem a vontade
Isto de não ter lareira custa o seu bocadito.

Rui referiu António, Joaquim feriu Jorge
Eu laço as meadas, sorri paraliticamente
Seria outra coisa à lareira, em diverso lar
Pressa nenhuma uso ora em estas linhas
Correr quando se desce não me parece
Assisado ou sensato ou de miolo o mínimo
Sabeis V. bem do que falo & a que me refiro.

Celebrava-se a mesa próxima certa promessa
Promessa-de-compra-e-venda-escriturada
A vendedora da imobiliária pareceu-me feliz
A senhora compradora pareceu-me resignada
O Natal é uma época-de-caça demarcada
Jesus vende tê-dois como Senhor mais nenhum
Alá pode ser grande mas por aqui não se safa.

Seccionaram finamente o tenro bolo-rei
Vinho-do-porto não havia, teve de ser licor-beirão
Fumar, só lá fora, a lei é a lei, não há abébias
Quem mais bem conta uma história era-é-&-será Joaquim
Ambos nos movemos na incerteza, ele um pouco menos
Mas-nada-há-nem-é-como-realmente, valh’a-verdade
No retorno vi um baldio que as lebres conhecem.

Sobram-me alguns dos livros, espero futuros alguns
Também o Natal passa, a caloraça é que não
Leio vaticínios climáticos para anos impossíveis
Estarei decentemente morto, enxuto & esquecido
Este é o primeiro Natal sem António Osório vivo
Não conteis comigo para grandes janeiras
Pertenço já mais a um bocejo escancaradíssimo.

Que conhecemos de a quem chamamos conhecidos?
Quão vero é o que nos expomos a quem nos impomos?
Quantas voltas dá a Lua ao sono de quem não acorda?
E consoará sozinho o electrotécnico do pastel-de-feijão?
Deixo estas questões à V.ª superior consideração
Sei madura a árvore, caduca a folha.

Mesclam-se-me-nos-Vos os tempos, nada mais natural
O da inocência é fósforo, o da culpa é cinza
Demasiados anos hemos dado ao supérfluo
De menos são quantos demos ao essencial
Esta senhora-além redime-se ora a Água & Vento
E eu nada hei a dizer-lhe que não em verso
Cada um vai a matraquilhos com a meia-coroa que tem.

Chamavam pataco ou cruzado à moeda de quatro-tostões?
Armando-Curto, Né-111, Jaime-Bolâmbola, Fernando-Tareco
Nomes que não enumerei hoje à liça pré-natalícia
Como V. disse já, mais emudeço agora
Águas quebram do ar a serenidade respiratória
Intentam as pessoas livrar-se como lebres
Eu é que de livros me não livrar quero.

Só V. digo: se ouvirdes Beethoven, escutai
Algum homem ali anda a sós consigo só
Mesmo que de extensos naipes se enriqueça a orquestra
A voz é uma só – & a sós tremendaterrivelmente ela é
Bacalhau, faz-se de mil maneiras – mas só de uma se come
Estou contigo, perdão, conVosco na aberta possível
De ano para ano tenho notado um ano a menos.



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