27/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 858 (I a III)



858

Terça-feira,
21 de Dezembro de 2021


I

É-me imperioso recorrer à imaginação
Face a uma realidade que me sobreveste
R-existo como posso à dissipação
Intentando escrever alguma coisa que preste.
Conheço os rostos desfeados pela escassez
Tisna-os a oxidação, o avesso horizonte
É provável a extinção, o irmo-nos de vez
Já fui bem menino correndo um monte.
Talvez ’inda volte, ali à Estação Velha,
A tomar o comboio rumo à Figueira
Mora-me lá um Tesouro, é a minha Filha
Pode ser que a reveja, dulce & fagueira.
Já folheei o jornal, não tem remédio o mundo
Vi da Necrologia os rostos esbatidos
Deus é impossível mas o Diabo, fecundo
Demora mas abate todos os nascidos.
Um gato mimado a varanda chora-voz
Os donos trabalham, deixam-no a sós
Ele era da selva, ora o seu domínio
É a prestações pagas ao condomínio.
Interditámos aos animais a plenitude
Criámos betão & um sistema de saúde
Não mais o mamute nem o amor feliz
Eu corria um monte quando era petiz.
Não, Maria, não te entenebreças
Faz por labiar quanto açúcar mereças
Não, José, não te rendas às massas
Que elas são de ordeiras previstas desgraças.
O formigueiro chinoca avassala o futuro
É a negação do sentido humano
Só se fala em vacinas, erige-se o muro
Entre cada ser, coisa do catano.
Depois de escrever, conversei com dois amigos
Foi ontem à noite, já assaz chovia
Por assim dizer, foi o meu ganho do dia
Cerradas janelas, cerrados postigos.
Vem à cafeína um operário-pintor
De roupa manchada do ofício & arte
Que o alimenta em bulício & vigor
Tenho uma sobrinha-neta Carolina Zuzarte.
Poucas vezes me chamaram a lar de lareira
Já aconteceu mas há muito que já não
Eu pus-me a jeito, é da bebedeira
Com a que desvio rumo & condição.
Adeus até nunca, ó Chico Morais
Adeus até sempre, ó Guilherme Pais
Vigora em mim certa arte perdida
Que morrendo tem nome, sendo este vida.

II

Conheci o rubro-d’oiro outonal em abandonada vinha
Era lá por Val’ Forno, descia-se a terra
O quartzo minava lâminas oblíquas de calcário
Era o meu faroeste, sendo eu feliz como um pária.
Giestava-se rociado o mato silvestre
O musgo orvalhava um bafo de anjos
Eu rimava com a vida, tudo era de saúde
E mesmo sem livros o mundo era legível.
Conheci depois o advento da minha vida escritória
Pus-me exercendo titubeantes sintaxes
Uma certa inocência, julgo não tê-la perdida
A culpa veio com o desejo, o diabo-de-saias.
O Jorge morreu em ’86/XX, esfumaram-se as cores
A paleta das coisas borrou outras mesclas
Somos de mãos semelhantes, tenho uma que escreve
A outra segura as lembranças, agarrada ao papel.
Gosto do que compuseram dois Portugueses
Um, Pedro Homem de Mello; outro, Fernando Lopes-Graça
É fortuna saber alguma coisa, para quê negá-lo?
E quando ao mesmo, Amadeo; & António Fragoso.
Já não peregrinarei qualquer Noruega terminal
Hei-de morrer por aqui, exaurido & lusitano
Sim, eu hei-de des-ser, coisa do catano
Que fará sem mim o mundo? Pois a mesma coisa-nenhuma.
Parece rumarmos todos ao Ano-2022-d.C.
Mas o jornal de amanhã negá-lo-á convictamente
Em Arganil, Pampilhosa, Pombal, morre gente
E a que não, come pão, ou não come, é conforme ou com-fome.
Recordo ter tido um carro branco, era o meu cavalo
E eu era o príncipe possível, tipo Walter-Scott-Ivanhoe
A minha Escócia de era então a Vila do Louriçal
Que fica ali resvés passado-futuro.
Não posso, não devo, nem quero levar isto a salões
A quem interessaria uma tão frugal poesia?
A ninguém. Somadas as despartes, a ninguém
Passo a Consoada com um gato, toma lá que é broa.
Nem sempre assim foi. Já houve gente em a minha vida
Resiste hoje como pode o pequeno-comércio
Ao luzeiro tonitruante dos hipermercados
Mas desde que haja bacalhau, novos-mundos-ao-mundo.
Quem me dera, Maria, ser rato-de-biblioteca.
Ter ratice, ter biblioteca
Ser, José, como os que são
Não só como os que mer(d)amente estão.
Conheci (ninguém mo tira) o Outono em minha primaveril idade
Destinou-se-me então a perseguição de linhas
Que digam flavo o que é fulvo
É-me imperioso recorrer à coloração.

III

De brônquios obstipados, um cavalheiro
Tosse ganâncias-ânsias respiradoras
Vejo-o arfando pus dos cavernames
Nada dou por ele já, que tosse coisa má.
Prédio amarelado-baba-de-camelo
Alberga certa senhora muito branca
Que eu não enjeitaria bárbara-escrava
Desejar é o Diabo-Começo-Acabo.
Esquinas-rosadas-tipo-borgesianas
Tomam também meus ângulos ledores
Padeço de atenção – & de estertores
Que me duram décadas & até semanas.
Ainda não aprendi a d-existir
Talvez uma monção me varra d’ água
Gosto da bebedeira-aérea das andorinhas
Gosto do vento-à-bruta, não d’estatísticas.
Torno universal a minha materAvó Cândida Leite
Ela existiu como um penedo promontório
Ante o oceano inverosímil do nascimento
E da descondição da mulher em 1903.
Sempre V. digo uma coisa:
Que estranho é escrever 1903 em 2021!
Como pode ser? Que é desfeito de Cândida Leite?
Sei-a inumada em terra-patrícia, lá onde o meu Jorge.
O meu Rui, não
Desfez-se na Amér(d)ica
Nem pele de tangerina cheira
A que foi o meu Irmão Rui.
Deu-me um relógio de horas fosforescentes
Comprado na ferrogare de Bordéus
Certa vez que retornou a casa
Solteiro & perdido de livros que nunca leu.
Contei recentemente a JoaKing Jorge Carvalho
Certo episódio epistolográfico meu com meu Rui
Gerámos ambos consentânea risota triste
Que triste achamos nossos Irmãos não lerem Pessoa.
Isto de ser um bêbado-de-qualidade
Tem pouco-nada-zero que se lhe diga:
A pessoa naufraga em ilusória liberdade
& não há caralho de pessoa sua amiga.
Rosáceas de templo, madrigais bucólicos
Muito Rodrigues Lobo & Inez de Castro & alcoólicos
Peneirando a mera impura sobrevivência
pois que nunca o nascer foi uma gaia-ciência.
Onde a cozinha granítica para que me não chamam já?
Onde o Natal exasperante dos cães-vadios?
Onde a Noruega? Onde os grandes frios?
Onde o Gil Vicente em ieramá?


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Canzoada Assaltante