13. Pertensência
a) Quinta-feira, 14 de Novembro de 2019
Ainda alguma coisa há-de o Nada
dar.
Novembro ainda não mata, as horas
pensam.
Há que retratar, não que retractar.
Deixar-se ir indo, iludir o ficar.
Mínimos enredos a gosto se adensam.
A sopa ao lume enquanto os papéis
aguardam ordeiramente sua vez (&voz) no dia.
Estou a ser claro: a sopa na malga,
a malga na bandeja, a bandeja nos joelhos, a mão que desce ao lápis sobe agora
a colher: Língua, ali, boca aqui.
Há dias não vou velar vivas as
minhas pombas, tenho cuidado em casa das aves outras chamadas horas (horas pensam), os papéis são generosos
e, como disse Manuel António Pina, é “sozinho
e mal acompanhado” que certos papéis tratamos que nos tratam.
Quando trasladava da cozinha para a
sala o alimento (a sopa, a malga, a bandeja, os joelhos), veio-me que cada
um8a) é também o que não foi, não chegou a ser – e nunca será.
Esta vinda não me amargou. Ao menos, não demasiado. Não corresponder ao
que outros de nós esperam – pode que até seja uma espécie de triunfo: por não
termos esperado que nos esperassem.
(E nem esperado nem por outros
desesperado.)
É cada um sozinho – e está feito.
Esta sopa é minha, fi-la eu.
O mais é talhar a fundo & a
direito.
Não cumpre mormente quem prometeu.
Isto não é felizmente Lisboa. É só,
que tudo é, a minha Língua. O meu gato principia a cada instante. Só eu
ilusoriamente penso repetir.
Vale que não repito Lisboa.
Acabei-a adequadamente em um Dezembro que o meu gato não (a)venturou.
Glória humílima, ignorar – e viver
como se viver fosse do verbo ser.
Se alguma vez foste outra coisa que
além-apenas-espelho, podes ler-me: pois que em alto te sou também.
Vivaz é ainda o fervor
Ainda infantil da pertença
– Eu disse pertença, não disse
posse –
Capaz de residual amor
Vítima de nada nem algoz
Fixa tal bem na interior testa
No fim és presunto, levas um fato
A coisa boa é acabar-se a tosse
Delicadilínea mansusurpação
Vitalícialicio menoscabamento
Vácuogresco cardiossedimento
Plúvia te sej’a hélia solidão
Donzela finlandesa, rúnica, única
Há dela, quão bom, versão de
Garrett
Cristal & areia partilham a
cínica
Atomocomicidade cosmodislate.
Vejo sem ter de olhar o homem de
gabardine descendo a (a)v(en)ida, nem lento nem célere, só a ele pertence o ser
visto, posto que o nem olha quem o escrevive.
Se não é a barco que se dirige,
alguma água todavia ele (a)corre, tal sim, ir indo veio.
Existe. Partilho a terra que ele
caminha levitando água, por assim dizer, escrevejo.
(Faço-me casa até do que não
guardo, nem para al me serviria isso a que chamam poesia.)
Luiza, era uma vez em Sintra,
jubilando ao vento dela o cabelo muito lavado, íamos aos finos pastéis,
dava-se-nos forte o vento – e nem todo era exterior. Neto Jorge.
Mário, a encosta da serra que a ele
descia, dele eram os últimos cães que ’ind’avia vê lá tu que não raro nos
sobrava dinheiro, tu eras filho próspero afinal de decente próspero lojista.
Botas.
Elias, cavalheiro meu
defini’perene’tivo tive, não lhe abarquei a morte, já então me volvera foz de
pouquíssimos rios. Rodrigues Faro.
Marchar & murchar.
Cada um seja de si a
república-de-weimar que puder, de si guerra-das-rosas, no quanto se quiser
inauguração-do-canal-de-suez – mas soez não seja, nem se espinhe & deixe
queimar.
Bach, comoveu-me ’ind’agora o meu
gato, a quem a força do vento nas arestas dos telhados chamou à vidraça alta da
sala, fresca foz antiga lhe disse o nome antigo, o mesmo me faz a música de
João Sebastião, é só dar palavra idêntica ao díspar modo como nos chamam pelo
nome.
b) Sexta-feira, 15 de Novembro de 2019
i
Homem, terra, olival, colmeias
limpas no mapa por assim dizer lunar de algo que pode ser versejado atém em
prosa.
Quando décadas se esgueiraram pelo
ralo.
Homem, cidade, bruma, quartos
glaucos na rede por assim dizer insular de algo que está a ser escreversejado
aqui mesmo.
ii
Forrar & lacar
de mudez & ausência
quem nos for de d-existência.
(iii)
(O terceto exposto em ii
é-me de uma importância para lá da música. Expressa o que me vem, há coisa de
dez anos, conseguindo tomar forma de auto-mandamento. É-me libelo. E são três
versos justos, já agora.)
iv
Vamos cavando verdades,
engordando porquinhos,
levam-nos as vidinhas
ao curro das m-herdades.
(v)
(Se não fizesse isto, não restariam
monumentos
– como dizia o grande Herculano dos
papéis antigos –
de alguma passagem, moribundo
cruzeiro que todos
sulcamos.)
(vi)
(Pertensência – perten-ser-se.
Ninguém mais há. É a vida.)
vii
O Inverno anterior ao meu
nascimento é ainda recordado em Inglaterra.
Parece ter sido duro, agreste, sem
remorso nem condescendência. Ser muito pobre deve ter custado mais que de
costume. Eu habitava o único ventre da minha vida, nesse outrora. Vejo agora
filmagens dessa idade, que é já a minha também. Bela, mortífera idade. Do gelo,
naturalmente.
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