16. Papelaria
a) Sexta-feira, 22 de Novembro de 2019
Pode ser esta a madrugada de 6 de
Junho de 1944, terça-feira?
Pode, se para então me dá. É de
inferior interesse o corrente instante: século XXI, dizem, milénio terceiro,
grunhem. Não era isto, não foi para isto que nisto me inscrevi. Está por
resolver o – ou pelo menos um –
sentido para tudo isto.
Ná. Madrugada de sexta-feira, 22 de
Novembro de 2019. Faz anos que rebentaram a cabeça ao JFK. Sonhei
denodadamente, despertei na praia-de-ninguém que é afinal a de toda a pobre
gente, cônscia ou não.
Voz de um homem chamado Jack Lieb,
ouço-a vibrando no ar da sala, a máquina televisora é nostálgica ela também, não
choramingas mas memorial, género estive-lá-sei-do-que-falo.
Bornemouth, Cherbourg. Santa Mãe
Igreja. Praias minadas, desgrenhadas de arame-farpado. Procrastinada a faina
piscatória. O feno, porém, é colhido à mesma. Não aqui.
Aqui, um homem chamado Tomás
Marcelo dá conta do que vê em si. Ao lado esquerdo do coração, a
mesinha-de-cabeceira: de tampo marmóreo, antiga, sólida, maciça, avoenga.
Objectos de Tomás, íntimos, à cabeceira: frasco com essência de geleia de
marmelo, botelha de água-mineral cujo gás se esvaiu, um postal a cores com
vista de Montmartre & data de Dimanche,
le 6-Juin-1982 assinado por uma francesita chamada Catherine Victoire
Prunier, pêlo-rasto do gato Bonifácio, um lápis verde. Pela casa, o país
acumulado da pessoa. Áreas de mais repetido tráfego. Papéis sem insolência, sem
puberdade, sem grande história de facto. Evidência & miopia. Aparato
teatral (para público nenhum) dos cortinados altos, na sala a que preside o
candelabro de quatro velas encarnadas. Fora, além-balconete, dissolução de toda
a cor por acção da invernia, a peremptória invernia a tempo vinda & victor.
Em compensação, um frasco de Orianne,
loção capilar de largo espectro de acção colorante. Ali, sobre o tampo,
marmóreo também, da cómoda herdada. Retrato a pastel da Avó Cidalina, flor
extinta no vórtice desse mesmo Verão em que conheceu a francesita Catherine. E
outro lápis verde, ali ao pé do aparelho de radiofonia, sobre a caderneta de
anotar cantatas & nomes incorpóreos.
Já o arquivista-bibliotecário Tiago
Doamel sai de casa, força o morcego chamado guarda-chuva a abrir as asas. O ar,
varado de água, é uma cortina endurecida, torna-se-lhe preciso devassar a
fronteira ad infinitum do próprio
existir-pensando-nisso. Talvez Tiago se dirija ao chá-&-bolos de alguma
baronesa sem ilusões heráldicas nem filho em colégio suíço, não sabemos.
Felizmente (sim, felizmente), está
é zona sem revolução quase. Dá para escutar o rangido do planeta em seu eixo
abstracto, sua telúrica ferida, sua descomunal soledade de zénite a nadir.
Antes, muito antes de qualquer 6-de-Junho, já os ventos alcateavam este
promontório, aqui onde erigiram estes caixotes de betão pasteurizado em série.
Generalidade distraída & minúcia cirúrgica – os nossos nomes varam a
oliveira de uma busca incessante mas disfarçada de descuido. Experiência,
catálogo, posse, pertença – mas menos & menos mais cada vez surpresa. Bom,
máscara-persona, enfim.
Nutro papéis em regime cartorial,
em dieta conservatória, papelaria resistente, r-existente, renitente – e
estranha a tudo que & a todo que não-é. O que falta? Cria-se, ou recria-se,
ou instaura-se, ou homizia-se-lhe o vácuo. Dois artigos que tais:
Entre duas cidades devindas
irrisórias ao meu coração, foi quando chovia tormenta deus-dada, eu tinha
automóvel então & ainda, não recordo que ou quem me chamava aonde, não
importa, eu ia-indo, era talvez por trabalho remunerado, que ainda & então
eu tinha, à beira da estrada aquela figura menos humana que cinemática
assombrando o instante, fiz dessa epifania uma crónica de tempo parentético,
que vi publicada algures, (já) não importa – mas sim, importa & conta, no
tal cartório íntimo;
Três dias com o meu Velhote
além-Tempo, era naquela quinta que a decadência já permeava tão
intraporosamente, sim, essa trindade de dias –não mera pègada na areia mas
areia ela mesma & toda. E o Velhote ainda & para sempre.
[Os dois anteriores papéis – ou
parágrafos, ou artigos, vá lá – são-me, por assim dizer, como ter ido/ir ainda
ao casamento, celebrado em 1904, de Elaine, filha do conde & da condessa
Greffulhe, com o duque Armand de Guiche, cerimónia a que um Marcel P. pode ter
ido (também, como eu fui).]
Um comediógrafo Joe Orton, acho
que de Leicester, figura trágica, mais uma. Foi assassinado pela bichona seu amante,
que se suicidou logo de seguida, isto tudo, talvez, em Agosto de 1967.
Kenneth Williams, outro que acabou
menos bem. Abril de 1988 etc. Williams conheceu Orton. Lá estão ambos, Mishima
bem os entende.
Orton não escolheu o seu
modo-de-ir (ou modo-de-desusar), todavia. Williams & Mishima, sim. Pouco
podemos abarcar de modelos assim. Fiamos nosso tecido mesmo: inútil &
inconsutilmente.
Da janel’alta da sala, miro o dia
dos outros no país local a que (ainda) chamo meu. À falta de gente oponho a própria
sombra fragmentada. É quanto me basta. Não finjo, nisto. Não minto, com isto.
À força cega & surda (mas não
muda) do actual oponho o mais polido desdém. É o Nô, por assim dizer, que posso & quero & mando.
Kawabata & Yourcenar leram
Mishima a fundo. Não me custaria ler a fundo do actor Kenneth Williams, que não
sei se foram publicados sequer. As peças de Joe Orton parecem-me menos
inquilinas da minha senhoria atenção, todavia. Lamento, não posso ler tudo,
quem me dera.
Vale o sossego a si mesmo. Vegetar
é que não. Ovelhar-se carneiramente é que não.
O Idioma articula a Mente em
Acção. Não deserta nem deserda o Solitário. Tesouro portátil, ambulatória
Fortuna. Sim.
Dois homens andam lendo casas.
Preparam obras. É lendo que se começa a prepará-las. Às obras, digo.
Vou remendando por dentro certos
panos da minha vida. não há-de ser fácil topar de fora a costura.
Vencer a relutância? Ignorando-a.
Profusão de janelas melhora a
claridade,
uma senhora ensina piano à
infância,
outra é espírito-mediúnica no
terceiro-andar,
cada criatura faz pela vida
vivamente,
vestida de couro negro vai a
púbere,
o homem empurra carvão & lenha
na carreta,
um dia lhe farão o mesmo a ele
jacente,
do adro da catedral ao cais são
nove minutos,
hoje vieram as barcas do carvão,
há lenha nova, vinho-doce, muita
fruta,
barricas de arenque, louça
encarnada,
não anda por aqui gente enfatuada,
moscas friorentas partilham
cortinas de tule,
no vão do sapateiro surdina a
telefonia,
cujos refrões afinado ele assobia,
o certo é estar toda a gente viva,
algo como estar tudo começando
ora,
acabaram hoje de erguer a
catedral,
dizem que domingo há bispo &
amêndoas,
é bom provar na rua o fato novo,
por corda & balde içam
cerveja,
no andaime festejam os caiadores,
ainda não nasci mas deixemos isso,
o certo é os outros todos andarem
vivos,
lavaram as íngremes escadarias da
sé,
descê-las é por ora mais precário,
o carvoeiro é vivo & traz-nos
calor,
fina chita estampada adoça
raparigas,
ó doces costureirinhas da amargura
pobrinhas & aéreas quais
andorinhas,
cuneiformes são os rostos das
avós,
bibes azuis saracoteiam o jardim
público,
a louca-mansa do segundo-andar
sorri,~
à janela sorri mansaloucamente
como feita de porcelana
inquebrável,
dia de ver vir o carvoeiro é de
festa para ela,
não preciso de nascer para sabê-la
doce,
o carteiro não sabe o meu nome,
eu sei o nome do carteiro, é
Fernando,
um dia o entregarão a ele jacente,
por enquanto posso não permiti-lo,
parece-me insensato interditá-los
por enquanto,
a professora demora-se à porta da
farmácia,
diz-se ser certo ela namorar o
boticário,
da linha serrana vem chegando a
automotora,
nela vem o capitoso queijo da
cabrinha mansa,
o maquinista é primeiro-vogal do
ateneu,
na venda a lata de bolachas é
ouro-azul,
tulhas de leguminosas secas ao
litro,
bacalhau amareleja ao ar salgado,
chega de bicicleta o jardineiro da
câmara,
tremula seu bocadito pois vem
copito,
dele não vem mal ao mundo pois
apascenta rosas,
sol & chuva houve hoje em dia
singular,
a senhora do piano é Filomena,
a senhora dos espíritos é Cidália,
é Jesualdo o carvoeiro,
é Sertório o sapateiro,
o bispo é Dom Anacleto,
os caiadores são Toino &
Manel-Zé,
a mansa louc’andorinha é Gracinha,
sabemos já ser Fernando o
carteiro,
é Adozinda a professora
& Guilhermino o boticário,
é Joaquim o ferroviário,
é Charéu o jardineiro,
chapinham no cais não já as
barcas,
que é sombra tudo,
a começar por nascer.
Um homem que foi Paul Scofield,
ei-lo pela senda florestada, o cão com ele em absoluta harmonia. É gravura não
submissa a relógio. Quem voltar a esta página, volta-se com eles no bico do
lápis, tinta por vezes.
(1985 foi o último bom ano
completo. Nada posso opor a isso. Tal evidência é-me de uma força parente das
do ar, do fogo, da água & da terra. Nada inventei. Não é exclusivo meu. Só
o número varia no rodízio anuário. Não é criação minha. Cada pessoa etc.)
Caixeiro-viajante de louças
decorativas, panos-de-cor, cutelarias de cozinha & oficinais, brinquedos
eléctricos – o senhor Teodoro Delfim Freitas Júnior, 45 anos, secreto cultor de
História Peninsular & amador de fagote. A vida nem lhe sorri nem o
atormenta. Prolongado noivo-em-stand-by de uma herdeira contrariada pelo pai,
Elamantina do Rosário Inglez de Villarigues, que espera a morte do tirano sem
soluço nem, para já, solução. Mas é de sólida saúde & rígidas viandas o
conde de Villarigues, nono na linhagem iniciada por um remo(r)to bigodudo
hanseático, dizem-que, pelo nome desconfio de que não. Teodoro viaja de
comboio. Aboleta-se em pensões vilãs, não há província que não tenha
revisitado. Vai vivendo com a relativa indiferença dos animais, validando o
instante em que se instala à mesa para a sopa, o pão, a posta de peixe, o
doce-d’ovos. E um pouquíssimo de vinho no fim dos sólidos. Chega então o 1986
dele – mas, para conta-lo, precisaria eu de outro lápis. Ou tinteiro.
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