© Wim Wenders
10. Lobo & Corvo
a) Sábado, 9 de Novembro de 2019
Incursão. Passe do autocarro
renovado. Cabelo cortado. Bifana comida no Terreiro da Erva. Poalha-moinha
pluvial, céu glauco – beleza r-existente desta cidade em que Garrett moço
escolar & poeta militante. Nenhum barulho para nada – há sossego, o rebanho
anda em fervor acéfalo pelos hipercentros. No Jardim da Manga, levo dois
beijitos da minha prima Candita. Cândida como a minha materAvó Cândida, Bisavó
dela. Instante brevíssimo mas gratificante: sangue-do-meu-sangue etc.
Na bus-paragem, duas senhoras de
cabelo nevado sem tinta nem laca. Confiro-lhes as mãos: dedos de unhas não
infernizadas, perdão, não envernizadas. De idades septuagenárias, perdão,
deidades septuagenárias – pois que mais belas agora, nestes hojes da
morte-não-assim-já-tão-remota. Limpas como este papel antes do meu lápis, tinta
por vezes. Sacramento sem degola de cordeiro, vinho loução, pão à chuva, duas
vidas.
Vou em modo miguel-paladino. Vou pela
neve que Coimbra pode: ela é, no real, aguadilha; nesta caderneta, é neve. Levo
as reses das minhas lembranças à pouca-erva do meu destino. Tino, menino, tino…
O sonho acontece quando se dorme.
O projecto acontece quando se
acorda.
A música não é para adormecer.
A música manda despertar.
O papel de música é menos do que o
papel do músico.
O músico projecta.
Já sonhou mas deixou disso.
Suspendeu o sonho para oferecer o
despertar.
Do ouvinte, espera-se mais do que a
paciência ou a generosidade.
O músico quer ouvir dizer de alguém
o que o ouvinte já ouviu em si mesmo.
O papel de música, neste sentido,
acordo no ouvinte aquilo que já não é sonho.
Por assim dizer, suspende-o: fá-lo
levitar, por assim dizer.
Sonha-se a dormir.
Projecta-se de ouvidos abertos.
Bemol & sustenido são & não
são a mesma coisa.
O músico é & não é outra
pessoa.
O ouvinte, neste sentido sustenido,
é & não é bemol.
Nem mole.
O ouvinte é o sonho projectado em
suspensão: espera que comece, não sabe acabar.
Há anos de mais para aqui os
contarmos um por um, o compositor conseguiu a paz de cada dia.
Entregou a partitura ao operário
instrumental.
Alguém varreu o palco, alguém
alinhou a plateia.
O ouvinte entrou por direito
próprio no local do crime.
Crime é não ouvir.
É não saber que a música torna
amanhã os anos a mais, os sonhos a menos.
Formigas na neve: as notas no
pentagrama: as andorinhas nos cabos eléctricos.
Alta tensão.
Alta atenção.
A música é a metáfora mais alta do
pensamento.
A tensão sobe ao alto.
O sonho desce à terra, torna-se
nosso irmão na cadeira ao lado.
Era uma vez a voz.
O sonho pende.
O projecto apreende.
Era a voz uma vez.
Uma voz.
Um. Dois. Nós. Três.
*
Escrevo hoje uma carta à primeira
das minhas Filhas. É a minha voz em tinta, lápis por vezes:
Ânfora-cânfora, ó perfume ondulado!
Ó cegarrega, olha o meu
andar-de-lado!´
Escrevo hoje uma carta à seguinte
& derradeira das minhas Filhas. É a minha voz em lápis, tinta por vezes:
Livre lebre, ó corredora d’açúcar
são!
Minha rica entrega, olha a minha
perdição!
*
Vãos ossos – que em vão ouço.
Meus Pai & Mãe, húmus da
contrafacção.
Co’ a cervejita quer o senhor
tremoço?
E vai manteiga, sim ou não, no seu
pão?
A Nina faz de gato, cão & casa:
ter Nina é alfim fazer sentido.
A Nina faz-se à luz, a luz dá-se
asa:
feita a Nina, o destino é cumprido.
Vejo-me sem Filhas no sábado que s’alastra
tarde adentro. Sem Filhas presentes, digo, sem meu regresso a casa delas, que
só por elas seria Casa. Foi que me irremediei de vida: o circo não abre, está o
urso constipado. Deito-me na cama que me (des)fiz. Linhas-bus? A 5 até à
Portagem. A coiso até mais ver. Ou cegar.
Ou chegar.
A pessoa que tira do papel a música
atira ao ar o que dele tirou. Aí se suspende o sonho. Esse tempo não é passível
de compasso. Clave é chave. Fechadura é abertura. Porta aberta, o ouvinte é
projecto. E então: sou-som. Sonho.
Ou então: Vou. Não em vão. Ponho.
Ou ainda: Sou o que ouço.
As pessoas moedam raspadinhas para
a fortuna instantânea.
b) Domingo, 10 de Novembro de 2019
Decerto somos todos trágicos.
Somos comédia todos decerto.
Perto, mais perto, a boa velha
morte.
E, mãe dela, a nascença não-pedida,
perdida sim & só, ai isso sim.
Deu-me hoje para Vítor Baptista
& para João Miguel Fernandes
Jorge,
aquilo do Actus Tragicus, sim.
O Amora recebe hoje o
Pinhalnovense,
aos 80’51’’ os visitantes vencem
por 0-1,
Félix Mourinho treinou os da casa,
o decadente VB (“O Maior”) era do plantel.
Penso ter sido neste mesmo terreno
que se estreou pelo Benfica
o grande sueco Stromberg,
que depois brilhou na italiana
Atalanta.
Domingo é quanto país posso
estou vivo neste quarto com o meu Gato,
é branco como a neve puríssima, o
puríssimo,
puríssimos seus olhos perplexos,
meu Companheiro.
Sou trágico por querer imortal o
meu Gato,
doce é dele o sono, transparente
sua sombra,
só hoje o matriculo neste livro
mas vamos ambos muitíssimo a tempo.
Mãos de mulher antiga em linho
novo,
depois desci travando a subir, usei
muitas coisas em Terminação do Anjo,
não estou tão sozinho como diz o
noticiário.
Eólicos anónimos são meus ventos,
fiz ontem rir Gabriel, o
quási-cego,
coimbra é o meu Estádio Olímpico,
promontório bio’necro’lógico in’fini’cial.
Na praceta de T., perdi a rosa,
a rosa amarela que mulher alvejava,
a felicidade era talvez certa,
talvez certa em-caso-de, mas não,
pronto.
O Pinhalnovense venceu n’Amora,
partida que finjo imortalizar em
verso,
quando eu em Lisboa já Leonor era,
era o que este níveo Gato veio ser.
Eu ainda não peço senão anoitecer,
noite-ser com dignidade ampla,
arribar-me à morte limpo de
memória,
um trapo finalmente lavado na
gaveta.
À mercearia subia com a senhora
Mãe,
nessa era que idade se fez rígida.
Cheirava o mundo a tudo-alguém
do merecido & esperado &
quê?
Amplexo-sexo deu já quão tinha a
dar,
não era muito, era já vulgar
ginástica.
Nunca quis mais que casa-horta
– e a janela da mulher ser a minha
porta.
Tortuosa é a ínvia senda, ó
oratura!
Em Elvas, a noite foi-me mais
preta.
Nunca mais lá volto, quero que se
dane
o eu-ter-sido-em-Elvas-Évora-Praia.
Lobo & corvo, o coração
é genitivo, pertence-se
em exclusa posse,
estima bem que os brasis se fodam.
Estou homem-em-cela mas é bela
a volta urbana, Choupal lá ’baixo.
Califórnias & austrálias ardam
longe,
q’sou do país-gaiteiro, o da
Língua.
Em cidade, domingo é o pior dia.
É mais vivo o absinto, perdão, o absurdo
de nascer.
Em aldeia, porém, não: a horta
cresce.
A fome-lobo é de outro nome-corvo.
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