22. Nem Culpa nem Perdão
a) Segunda-feira, 2 de Dezembro de 2019
Antes um esquisso histórico do que
um esquizo-histérico.
b) Terça-feira, 3 de Dezembro de 2019
Dois homens cujos corpos já não
carburam mas que deixaram obra – Vítor Silva Tavares & Armando Silva
Carvalho. Recupero-os de documentos filmados que a internet disponibiliza. Sombras lapidadas (duas datas, enfim),
continuam luzes todavia.
Estes dois homens são (ainda são)
diferentes da gentinha, dão de si
vidas avessas à vidinha.
Com Vítor, nunca me encontrei. Com
Armando, sim.
É hoje clara a manhã decembrina.
Vou ao mundo em casa. Trato de coisas há muito adiadas. Não mais. Com vagar,
disponho os tesouros. Os nomes, digo. O meu povo rumoroso. Jogam a bola pela
página. Goleiam a poesia.
Camilo. Murça. Lourenço. Gomes.
Damas. Conceição. Campos. Pinho.
Ferreira. Branco. Prado. Manuel.
Nogueira. Bandeira. Laranjeira.
Vitó.
Brandão. Braga. Bento (tanto o
Manuel Galrinho como o António Duarte.) Nascimento.
Damasceno. Duarte (António também,
mas ali da Ereira).
Guimarães, Seabra, Costeado, Abreu.
Homem envelhecido em saleta
personalizada à medida do próprio corpo, unidade de (des)medida deste cada vez
mais único mundo. O trivial: duas alas de livros, quatro retratos (não mais),
uma pasta de desenhos, um boião meio de doces frutados, garrafa meia de
absinto, cigarros, cortinados verdes.
Fora, a cinquenta metros do
lado-além da senda, mulher envelhecida livrando-se de lixo no contentor.
Acompanha-a o cão, mais velho ’inda do que ela. Parece que, na mocidade, foi
mais fodelhona do que a monja de Beja.
O Gato.
O meu Gato.
O rosto do meu Gato.
O rosto do meu Gato é de três
jóias.
Três jóias: uma por cada olho
– mais a do olhar.
O sono por vezes faz-se caro.
Põe-se a haver menos corpo do que pessoa. Alguns trechos do dia soltam-se das
páginas que lhes eram casa. Imagens fulgem sem ser por mal. Da cama, um gajo
pode dominar o mundo sem ter de sujar as mãos nele.
A cabeça ressoa profundidade de
céu, pirilampos estrelas faróis papoilas de cristal – o costume, enfim:
É-se a sós sem SOS.
E depois nada.
Ou como sempre: a atenção gagueja,
a poesia reitera a sua intermitência natural, zonas frias do lençol fazem de
estepes nevadas até os dentes.
Pode ser ocasião menos má para
relacionar asteróides com clareiras, mortos da Grande Guerra com sobreviventes
da Pequena, versos de Ruy Belo com títulos de transportes no tempo da terra da
alegria, tardes nubladas com acordeões de pedintes, ruas com prontuários,
Ivones com Serafins, casebres romenos com algarismos romanos, chatices
conjugais com pés num lago, pinheiros de natal com palavras de plástico,
despensas abarrotadas com panoramas da Etiópia, fotogramas do Dirk Bogarde com
gôndolas no estaleiro, Carolina
Michaëlis de Vasconcellos com o Campo da Arregaça, mesuras de cortesia
com legumes atirados ao lixo, moscas com transístores, iluministas com
electricistas, esófagos com esfregonas, cristos da Rosa Ramalho com o
escorbuto, cristos do Dali com o Forte Knox, albatrozes com o LSD, orgasmos com
curriculum vitae, a própria Mãe com zonas reservadas de caça associativa,
orfanatos com a Figueira da Foz de 1930, encontros literários com a Família
Adams, nêsperas com ranchos folclóricos, caixas de bombons com tipas
dinamarquesas, pianos verticais com a Batalha de Waterloo, máscaras antigás com
más caras antigas, anorgasmia com gelo ao sol, Londres com anfiteatros
anatómicos – e pardais com provérbios.
E depois, tudo. Mas só até de novo
haver tanto de pessoa quanto de costume, perdão, de corpo.
c) Quarta-feira, 4 de Dezembro de 2019
Saul Trajano, entomólogo amador,
autor de folhetos & catálogos daquilo a que os puristas chamam ainda Filosofia Natural. Admirável é, deste
Trajano, o uso do Tempo. Perde-o, é certo, como todos nós – mas parece-nos que
menos do que nós. De resto, dono de uma mercearia de bairro.
Continua a ser peremptória a
autoridade dos detalhes na organização & no sustento das (ditas) grandes
coisas. Certa ordem das palavras na frase mais sentenciosa. Serem castanhos e
não pretos os sapatos com que se comparece ao enterro do sócio de há tantos
anos. O defeito cultivado como virtude: geral ignorância, nos nossos dias
elevada à ponte do navio.
Fumo de débil fogueira, evolamo-nos
no ar já não grácil dos campos relegados a baldio: nem sequer pousio.
Suméria, Anatólia, Creta, Corfu,
Cornwell com casa em Cornwall, Odessa, Tebas, Alexandria, Bética, Navarra,
Anchorage, Tasmânia, Pico, Corvo, Spa, Caramulo, Edom, Cartago, Gaza, Tarrafal,
Cork, Etrúria, Minos, Rodes, Nolo, Montana, Pisa, Renânia, Peniche. Não falta
onde cair morto. A ninguém.
João Gaio Ferida, meio-irmão de
Cláudio Nestor Tibério – de pais diferentes. Mãe deles: Lívia Antónia Sila.
Vivenda tripla os alberga. Gaio preferiu a cave. Nestor, o piso superior. A
mãe, no térreo. Frequentam-se pouco. Eles & ela lá sabem.
Nos semáforos da rotunda fluvial
(três faixas, lado norte), pede esmola Sejano Teixeira, que por nem sempre
esperar pelo vermelho ’inda um dia destes se faz espatifar por algum inocente.
A história dele só diverge de tantas outras pelo nome individual que lhe dá
cromo nesta caderneta. O mais é trivial: idade, 45; altura, 1.65m; cabelo, por
lavar; olhos, indeléveis; perna direita avariada na rótula. Acérrimo devoto,
militante até, de Isabel de Aragão & Coimbra, Santa & rainha. Mas com
uma das moedas que lhe dão pagará não a Isabel mas a Caronte.
Calígula parece ter sido bom cromo,
ele também. Ovídio & Horácio, todavia, continuam ganhando o dia, não o
psicotiranopata, filho de Germanicus & Agrippina. Venenos & gumes.
Esgotos & figos. O espelho não lograva reflectir dele o rosto. E sim, bebia
sangue.
Longes oferecem seus casarios
brancos,
jóias simples no veludo
verde-cinza.
Da fábrica extinta sobe ainda a
chaminé,
o céu a tem mais que nós,
desapossados.
d) Quinta-feira, 5 de Dezembro de 2019
Remexendo papéis & pastas no
intuito do reordenamento da residência, esta corrente, na terra: múltiplas
dimensões acorrem como ocorrem. Uma das caixas adquire instantânea importância
– a que acolhe os rasganços, as terminais rejeições. Entra mais ar, e do
fresco, neste cubículo, nestes aposentos cuja demora ao menos ilude sensatez. O
que se segue – está já na boca do que fica.
Um punhado de fotografias exuma
mortos ainda amáveis. Outro maço, então crianças hoje com filhos crescidos mais
do que elas. Roda-viva, implacável.
Contratos, facturas, recibos,
pétalas, frases truncadas – e muitos, muitos nomes, profusão deles. Muito sítio
também que não Coimbra. Algum (não pouco, lamento – que não pouco lamento9
tempo estragado.
Uma coisa: não aparecem sobras
medicamentosas. Cinzeiros sim, artísticos & baratos. Felicidade: esquecidos
lápis, prontos eles todos para novas demandas em prol da palavra-justa. Sapatos
que passos não voltaram a dar. Louça pintada, da mais simples. Manuais de
instruções para máquinas por inventar.
É o meu saque, minha autopilhagem.
Cumpre rasgar como salvar. Deixar ir como resgatar. É gloriosa a manhã, pois.
É agradável ter feito o que tinha
de & e queria ser feito. É gloriosa a noite, pois.
(Até do chão apanho
as migalhas dos anos,
quanto mais do ar,
olha-m’este.)
Velhos mas por estrear: cadernos
que resgatei das caixas de que exumei papéis da minha vida. Velhos mas por
estrear: nós todos, que carago.
e) Sexta-feira, 6 de Dezembro de 2019
Ter
rosto em vida implica saber olhar a morte na cara.
Acima vão em itálico palavras que
reencontrei num fragmento. É de há poucos anos, nem sei já se o usei ou não
noutro (con)texto. Não importa: revive aqui.
Pela frente (& pela fronte, já
agora, aproveitando o fragmento supra), o dia nem promete nem interdita – seja
o que (não) for. No cubículo da livralhada, maná de objectos por reordenar.
Sapatos, cartas, roupa, louça, o diabo. Falta-me uma boa estante, tão depressa
não a haverei.
Pratico as minhas razões-motrizes
sem as descer a espécie de auto-religião, dou-lhes substância
papel-lápis-tinta-por vezes, pombas testemunham este inócuo viático, caixotes
papelónicos não me falta em que aposentar (dar aposento & pensionar) tanta
tralha palavrosa.
Não vou felizmente a tempo da barca
da contrição. Nem culpa nem perdão. Como disse, nada de auto-religião.
Fermentos, ferimentos.
Pedantes, pedintes.
Momentos, monumentos.
Como dantes Abrantes & Avintes.
Clarões do vivido encontram sempre
maneira de fulminar isto a que chamamos presente, a cursiva duração quotidiana
– que, por cursiva, não tem de ser itálica.
(Menos & menos até zero:
refiro-me aos medíocres.)
Ainda o corpo vai dando de si
quanto o remunera o que (o) toca.
Fá-lo sem euforia nem frenesi,
nem telefanica nem telefonoca.
Exclamações mudas & oblíquas:
ao balcão, os bebedores.
Havendo moedas q.b., há que seguir
no comboio da Figueira, andar por lá peregrinando sem estardalhaços
latrino-líricos, colher os versos sim senhor mas sem ondas, que as tem sem
conto o velho mar à praia dadas.
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