29/12/2019

CADERNETA PRETA - 22




22. Nem Culpa nem Perdão
    


a) Segunda-feira, 2 de Dezembro de 2019


Antes um esquisso histórico do que um esquizo-histérico.


b) Terça-feira, 3 de Dezembro de 2019


Dois homens cujos corpos já não carburam mas que deixaram obra – Vítor Silva Tavares & Armando Silva Carvalho. Recupero-os de documentos filmados que a internet disponibiliza. Sombras lapidadas (duas datas, enfim), continuam luzes todavia.
Estes dois homens são (ainda são) diferentes da gentinha, dão de si vidas avessas à vidinha.
Com Vítor, nunca me encontrei. Com Armando, sim.
É hoje clara a manhã decembrina. Vou ao mundo em casa. Trato de coisas há muito adiadas. Não mais. Com vagar, disponho os tesouros. Os nomes, digo. O meu povo rumoroso. Jogam a bola pela página. Goleiam a poesia.

Camilo. Murça. Lourenço. Gomes.
Damas. Conceição. Campos. Pinho.
Ferreira. Branco. Prado. Manuel.
Nogueira. Bandeira. Laranjeira. Vitó.
Brandão. Braga. Bento (tanto o Manuel Galrinho como o António Duarte.) Nascimento.
Damasceno. Duarte (António também, mas ali da Ereira).
Guimarães, Seabra, Costeado, Abreu.

Homem envelhecido em saleta personalizada à medida do próprio corpo, unidade de (des)medida deste cada vez mais único mundo. O trivial: duas alas de livros, quatro retratos (não mais), uma pasta de desenhos, um boião meio de doces frutados, garrafa meia de absinto, cigarros, cortinados verdes.
Fora, a cinquenta metros do lado-além da senda, mulher envelhecida livrando-se de lixo no contentor. Acompanha-a o cão, mais velho ’inda do que ela. Parece que, na mocidade, foi mais fodelhona do que a monja de Beja.

O Gato.
O meu Gato.
O rosto do meu Gato.
O rosto do meu Gato é de três jóias.
Três jóias: uma por cada olho
– mais a do olhar.

O sono por vezes faz-se caro. Põe-se a haver menos corpo do que pessoa. Alguns trechos do dia soltam-se das páginas que lhes eram casa. Imagens fulgem sem ser por mal. Da cama, um gajo pode dominar o mundo sem ter de sujar as mãos nele.
A cabeça ressoa profundidade de céu, pirilampos estrelas faróis papoilas de cristal – o costume, enfim:
É-se a sós sem SOS.
E depois nada.
Ou como sempre: a atenção gagueja, a poesia reitera a sua intermitência natural, zonas frias do lençol fazem de estepes nevadas até os dentes.
Pode ser ocasião menos má para relacionar asteróides com clareiras, mortos da Grande Guerra com sobreviventes da Pequena, versos de Ruy Belo com títulos de transportes no tempo da terra da alegria, tardes nubladas com acordeões de pedintes, ruas com prontuários, Ivones com Serafins, casebres romenos com algarismos romanos, chatices conjugais com pés num lago, pinheiros de natal com palavras de plástico, despensas abarrotadas com panoramas da Etiópia, fotogramas do Dirk Bogarde com gôndolas no estaleiro, Carolina  Michaëlis de Vasconcellos com o Campo da Arregaça, mesuras de cortesia com legumes atirados ao lixo, moscas com transístores, iluministas com electricistas, esófagos com esfregonas, cristos da Rosa Ramalho com o escorbuto, cristos do Dali com o Forte Knox, albatrozes com o LSD, orgasmos com curriculum vitae, a própria Mãe com zonas reservadas de caça associativa, orfanatos com a Figueira da Foz de 1930, encontros literários com a Família Adams, nêsperas com ranchos folclóricos, caixas de bombons com tipas dinamarquesas, pianos verticais com a Batalha de Waterloo, máscaras antigás com más caras antigas, anorgasmia com gelo ao sol, Londres com anfiteatros anatómicos – e pardais com provérbios.
E depois, tudo. Mas só até de novo haver tanto de pessoa quanto de costume, perdão, de corpo.


c) Quarta-feira, 4 de Dezembro de 2019


Saul Trajano, entomólogo amador, autor de folhetos & catálogos daquilo a que os puristas chamam ainda Filosofia Natural. Admirável é, deste Trajano, o uso do Tempo. Perde-o, é certo, como todos nós – mas parece-nos que menos do que nós. De resto, dono de uma mercearia de bairro.

Continua a ser peremptória a autoridade dos detalhes na organização & no sustento das (ditas) grandes coisas. Certa ordem das palavras na frase mais sentenciosa. Serem castanhos e não pretos os sapatos com que se comparece ao enterro do sócio de há tantos anos. O defeito cultivado como virtude: geral ignorância, nos nossos dias elevada à ponte do navio.

Fumo de débil fogueira, evolamo-nos no ar já não grácil dos campos relegados a baldio: nem sequer pousio.

Suméria, Anatólia, Creta, Corfu, Cornwell com casa em Cornwall, Odessa, Tebas, Alexandria, Bética, Navarra, Anchorage, Tasmânia, Pico, Corvo, Spa, Caramulo, Edom, Cartago, Gaza, Tarrafal, Cork, Etrúria, Minos, Rodes, Nolo, Montana, Pisa, Renânia, Peniche. Não falta onde cair morto. A ninguém.

João Gaio Ferida, meio-irmão de Cláudio Nestor Tibério – de pais diferentes. Mãe deles: Lívia Antónia Sila. Vivenda tripla os alberga. Gaio preferiu a cave. Nestor, o piso superior. A mãe, no térreo. Frequentam-se pouco. Eles & ela lá sabem.

Nos semáforos da rotunda fluvial (três faixas, lado norte), pede esmola Sejano Teixeira, que por nem sempre esperar pelo vermelho ’inda um dia destes se faz espatifar por algum inocente. A história dele só diverge de tantas outras pelo nome individual que lhe dá cromo nesta caderneta. O mais é trivial: idade, 45; altura, 1.65m; cabelo, por lavar; olhos, indeléveis; perna direita avariada na rótula. Acérrimo devoto, militante até, de Isabel de Aragão & Coimbra, Santa & rainha. Mas com uma das moedas que lhe dão pagará não a Isabel mas a Caronte.

Calígula parece ter sido bom cromo, ele também. Ovídio & Horácio, todavia, continuam ganhando o dia, não o psicotiranopata, filho de Germanicus & Agrippina. Venenos & gumes. Esgotos & figos. O espelho não lograva reflectir dele o rosto. E sim, bebia sangue.

Longes oferecem seus casarios brancos,
jóias simples no veludo verde-cinza.
Da fábrica extinta sobe ainda a chaminé,
o céu a tem mais que nós, desapossados.


d) Quinta-feira, 5 de Dezembro de 2019


Remexendo papéis & pastas no intuito do reordenamento da residência, esta corrente, na terra: múltiplas dimensões acorrem como ocorrem. Uma das caixas adquire instantânea importância – a que acolhe os rasganços, as terminais rejeições. Entra mais ar, e do fresco, neste cubículo, nestes aposentos cuja demora ao menos ilude sensatez. O que se segue – está já na boca do que fica.
Um punhado de fotografias exuma mortos ainda amáveis. Outro maço, então crianças hoje com filhos crescidos mais do que elas. Roda-viva, implacável.
Contratos, facturas, recibos, pétalas, frases truncadas – e muitos, muitos nomes, profusão deles. Muito sítio também que não Coimbra. Algum (não pouco, lamento – que não pouco lamento9 tempo estragado.
Uma coisa: não aparecem sobras medicamentosas. Cinzeiros sim, artísticos & baratos. Felicidade: esquecidos lápis, prontos eles todos para novas demandas em prol da palavra-justa. Sapatos que passos não voltaram a dar. Louça pintada, da mais simples. Manuais de instruções para máquinas por inventar.
É o meu saque, minha autopilhagem. Cumpre rasgar como salvar. Deixar ir como resgatar. É gloriosa a manhã, pois.
É agradável ter feito o que tinha de & e queria ser feito. É gloriosa a noite, pois.

(Até do chão apanho
as migalhas dos anos,
quanto mais do ar,
olha-m’este.)

Velhos mas por estrear: cadernos que resgatei das caixas de que exumei papéis da minha vida. Velhos mas por estrear: nós todos, que carago.



e) Sexta-feira, 6 de Dezembro de 2019


Ter rosto em vida implica saber olhar a morte na cara.

Acima vão em itálico palavras que reencontrei num fragmento. É de há poucos anos, nem sei já se o usei ou não noutro (con)texto. Não importa: revive aqui.

Pela frente (& pela fronte, já agora, aproveitando o fragmento supra), o dia nem promete nem interdita – seja o que (não) for. No cubículo da livralhada, maná de objectos por reordenar. Sapatos, cartas, roupa, louça, o diabo. Falta-me uma boa estante, tão depressa não a haverei.

Pratico as minhas razões-motrizes sem as descer a espécie de auto-religião, dou-lhes substância papel-lápis-tinta-por vezes, pombas testemunham este inócuo viático, caixotes papelónicos não me falta em que aposentar (dar aposento & pensionar) tanta tralha palavrosa.
Não vou felizmente a tempo da barca da contrição. Nem culpa nem perdão. Como disse, nada de auto-religião.

Fermentos, ferimentos.
Pedantes, pedintes.
Momentos, monumentos.
Como dantes Abrantes & Avintes.

Clarões do vivido encontram sempre maneira de fulminar isto a que chamamos presente, a cursiva duração quotidiana – que, por cursiva, não tem de ser itálica.

(Menos & menos até zero: refiro-me aos medíocres.)

Ainda o corpo vai dando de si
quanto o remunera o que (o) toca.
Fá-lo sem euforia nem frenesi,
nem telefanica nem telefonoca.

Exclamações mudas & oblíquas: ao balcão, os bebedores.

Havendo moedas q.b., há que seguir no comboio da Figueira, andar por lá peregrinando sem estardalhaços latrino-líricos, colher os versos sim senhor mas sem ondas, que as tem sem conto o velho mar à praia dadas.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante