19/12/2019

CADERNETA PRETA - 17






17. Horas Menos Más


a) Sábado, 23 de Novembro de 2019


i

Em outro hoje-dia o sol batia
na chapa abandonada p’lo terraço.
O que o cantor cantava, eu não sabia,
mais tarde o soube em outro tempo-espaço.
Tempestiva poeira nos exila,
do comboio-mercante nos despedimos
o ter perdido a casa à má-fila
& o mais no fundo cais a que subimos.
Jorge Mondego de nós foi bem antes,
chegando não deu novas de chegado,
antes se fechou em copas distantes
& por escrito é ele já só lembrado.
Do exército-de-salvação nos livre
o bom-deus pobrezinho Ele também.
Nem gato somos nós, quanto mais tigre,
demais os mais aléns ficam aquém.
Sábado, linhas urbanas, noite já,
não chega a ser fria a condição.
Vai d’empurra-carrinho o papá;
a mamã, de telelé-conversação.
(Carreta de ciganos em gritaria
contra o resto do mundo, coitadinhos.
Passa-se isto na Rua da Sofia,
desmaiou um rapaz que é coxo dos bracinhos.)
Tudo dá ilusão de ser verdade,
mentira só a sofre quem na quer.
Anda-se bem a sós pela cidade,
em má companhia ande quem quiser.
Ao curro se recolhe o burguês gado
pastar televisão da mais pindérica.
Rica palha-merda! Muit’òbrigado!
Thank you and god bless a merd’américa!
Estreita mente não vê a maravilha
por onde a maravilha mais perpassa.
Por cima, o velame; em baixo, a quilha:
barcarola de fado, vai-não-passa.

ii

Eu saí hoje um pouco, era já noite,
de manhã o não previra, aconteceu.
Caminhos (m)olhados à luz d’azeite
ecoaram os passos que o corpo deu.
Frias fantasmagorias, lampiões,
mulheres-da-noite-a-dias por dois tostões,
ceias tristonhas de saladas-frias.
P’la ladeira antiga da Combatentes,
nem alma pespontava à passagem.
Em calma desandava a imagem
d’almas outras à morte renitentes.
Na busparagem de S. José pensei
em reler o bom Durrell & o bom Musil.
Veio-me tal de repente, já nem sei
por que vil carga-d’água d’águas-mil.
Cosmogonia não hei mas já tive,
vivo alguma-coisit’-antigamente.
Pod’ria eu ser ora diferente?
Quer’ondes onde estar, não ond’estive.
A pau & a vau se passa o almegue,
a vida de cada um lhe seja via.
Poesia? Anti-torga-anti-alegre,
pau-carunchoso, ó Santa-Maria!
Agora sim, está frio, vai mirrando
a natura andarilha p’la noitinha.
É minha ’inda (& linda) esta linha,
a qual é d’ir vivendo & rimando.
Sozinho, é-se menos homem que pessoa,
agónico animal pró-esquecimento.
O Tempo já raro traz ’ma coisa boa,
é de natura o coice ao jumento.
Vingando vou a meus ontens sem remédio,
vincando anteontens mais felizes.
Cicatrizes bocejo já de tédio,
’gor ’ora pachorra pa’ cicatrizes!

iii

A olhos ora vi de natureza
botânica-floral à maravilha.
Retinas que retive em beleza
– mas sem indiscrição mais peralvilha.
E falsamente mansos pareciam
tais caçadores a céu não encoberto.
Perto, por sem medo, não s’escondiam
– mas longe como a água no deserto.
Vínhamos no autocarro 24
os quatro olhos cá deste poema.
Em todo o caso, foi breve teatro
– longa-metragem porém tal cinema.
Símiles deles vi: Maio d’84.
Lume, o mesmo. Exact’o mesmo gelo.
Faziam o morrer deles par’cer belo.
Sacan’olhos, aqui no 24.
Já passou. Já passaram. Já lá vão.
Pós-meados de Novembro, fez-se V’rão.
Ó V’rão d’antigamente não tão fóssil!
Ó ’nha vida que eras tão mais fácil!´
Lindos olhos. Perigosos. Distraídos.
Reflexos mar-d’além aquém sumidos.
Tão naturais como tão sem preparo.
Dois voos de carvão no céu mais claro.
Apeei-me ali à Jaime Cortesão
(que foi Brotero & ex-Sidónio Pais).
Já não é uma qualquer prevaricação
que bailação me manda de carnavais.
Por modos já não vejo pelos vistos:
esqueci-me d’apontar d’ela a idade,
d’oitenta a quarent’anos benquistos
pela grei menos cega da cidade.
Lembro talvez olhos doutro retrato,
d’tempo em que não era nem nascido.
Como não for nem seja, não retracto
ver & ter visto – mas não ter sido vido.

iv

Não arrumes os papéis, que vais ver
não vais ver mas os papéis ’inda vão ser
motivo d’algo que fidalgo não quer crer,
não t’arrumes que tu nem papéis vais ser.
Fala agora com quem conta – mas aponta
quem te fala & não cala & quer ouvir.
Diz ao gato: – Queres saber? E s’ele sair,
sai também, não cuides da morte certa.
Fecha-s’a janela. Mas a porta, aberta,
deixa miasmas putrescer
qual Paris do Jim Morrison
quando o Jim cá vier viver.
S’ele não vem, não vem, está vindo.
Vivo é uma maneira de dizer:
ou de ser dito, ou bem ou mal, q’lindo
é estar vivo-em-lido, p’r’assim dizer.



b) Domingo, 24 de Novembro de 2019



Da janel’alta da sala, mirando a nocturnidade definitiva do em breve ex-domingo. Risca a azul o negro: mais uma ambulância a caminho das Urgências. Uiva como alma-danada. Ao princípio, era aflitivo. Habituei-me. Até a dor se deixa rotinar. Disso sei, sei o que digo.

Num quarto-casa de prédio urbano, só pela imaginação domesticada cheiro o mar, o grande mar de Conrad & Stevenson. Ou de Vasco da Gama, vá lá. Não acho contradição. A montanha nevada sobe o horizonte dos olhos melados de sono, comigo deitado no catre. A morte, só ela, me/nos/Vos libertará de tais jogos-de-escondidas com a insuficiência prática do dia-a-dia subúrbio-coiso-&-tal. Um remédio: chá-de-camomila & M.R. James. Outro remédio: chá-de-frutos-vermelhos & Italo Calvino. Até que se melem os olhos, o corpo se distenda, o catre ranja um pouco, não muito, Novembro uiva fora qual ambulância palaciana.

Horas boas que recordo sem esforço (e quase sem artifício:)

Sábado de manhã, na Biblioteca Municipal, estudo de um capítulo de gramática francesa (relativo à sintaxe da concordância do particípio passado) seguido de uma brochura didáctica dedicada à cosmogonia grega; saindo por volta do meio-dia, chuva persistente, álgida, provinda de um firmamento mercurial; almoço no Mijacão: bifana no pão, sardinhas fritas noutro papo-seco, dois terços de vinho com um de gasosa em copo médio; café no Santa Cruz depois de comprar cigarros Dunhill e o número de véspera do Daily Telegraph; à tarde, cinema no Avenida (The Whisperers ou The Misfits?); no Mandarim, chá & leitura de Portuguex, de Armando Silva Carvalho; autocarro (então) da linha n.º 2 para casa (A Casa), jantar com os velhotes (arroz-de-frango, sopa-de-agrião, leite-creme); bica nocturna no Lobito, poker de dados com o senhor Augusto & o Carlos Mercier; casa, cama, alguns sonetos da Arcádia, sono sem peias nem agravos.
Ou então:
Ao cabo de jornada laboral particularmente trabalhosa, o entardenoitecer primaveril era melhor do que vem nos folhetos das juntas de turismo; a mulher daquela altura saíra do banho uns cinco minutos depois de eu entrar em casa; canja acabada de fazer perfumava a hora nova; o gato daquela altura, que era o Manitas e eu resgatara de um caixote do lixo ao pé da casa do Helder L., esperava que eu lhe servisse o fígado da galinha sacrificada em meu prazenteiro holocausto; jantámos os três, o trio viu depois a edição-vídeo de Once Upon a Time in America, após o que os três dormimos na mesma cama, o Manitas entre as duas cabeças humanas.
Oito anos separam as duas jornadas acima paragrafadas. Desde a última delas, três décadas arderam sem grandes alegrias nem estardalhaços de monta.

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Canzoada Assaltante