17. Horas Menos Más
a) Sábado, 23 de Novembro de 2019
i
Em outro hoje-dia o sol batia
na chapa abandonada p’lo terraço.
O que o cantor cantava, eu não
sabia,
mais tarde o soube em outro
tempo-espaço.
Tempestiva poeira nos exila,
do comboio-mercante nos despedimos
o ter perdido a casa à má-fila
& o mais no fundo cais a que
subimos.
Jorge Mondego de nós foi bem antes,
chegando não deu novas de chegado,
antes se fechou em copas distantes
& por escrito é ele já só
lembrado.
Do exército-de-salvação nos livre
o bom-deus pobrezinho Ele também.
Nem gato somos nós, quanto mais
tigre,
demais os mais aléns ficam aquém.
Sábado, linhas urbanas, noite já,
não chega a ser fria a condição.
Vai d’empurra-carrinho o papá;
a mamã, de telelé-conversação.
(Carreta de ciganos em gritaria
contra o resto do mundo,
coitadinhos.
Passa-se isto na Rua da Sofia,
desmaiou um rapaz que é coxo dos
bracinhos.)
Tudo dá ilusão de ser verdade,
mentira só a sofre quem na quer.
Anda-se bem a sós pela cidade,
em má companhia ande quem quiser.
Ao curro se recolhe o burguês gado
pastar televisão da mais pindérica.
Rica palha-merda! Muit’òbrigado!
Thank you and god bless a
merd’américa!
Estreita mente não vê a maravilha
por onde a maravilha mais perpassa.
Por cima, o velame; em baixo, a quilha:
barcarola de fado, vai-não-passa.
ii
Eu saí hoje um pouco, era já noite,
de manhã o não previra, aconteceu.
Caminhos (m)olhados à luz d’azeite
ecoaram os passos que o corpo deu.
Frias fantasmagorias, lampiões,
mulheres-da-noite-a-dias por dois tostões,
ceias tristonhas de saladas-frias.
P’la ladeira antiga da Combatentes,
nem alma pespontava à passagem.
Em calma desandava a imagem
d’almas outras à morte renitentes.
Na
busparagem de S. José pensei
em
reler o bom Durrell & o bom Musil.
Veio-me
tal de repente, já nem sei
por
que vil carga-d’água d’águas-mil.
Cosmogonia
não hei mas já tive,
vivo
alguma-coisit’-antigamente.
Pod’ria
eu ser ora diferente?
Quer’ondes onde estar, não ond’estive.
A
pau & a vau se passa o almegue,
a
vida de cada um lhe seja via.
Poesia?
Anti-torga-anti-alegre,
pau-carunchoso,
ó Santa-Maria!
Agora
sim, está frio, vai mirrando
a
natura andarilha p’la noitinha.
É
minha ’inda (& linda) esta linha,
a
qual é d’ir vivendo & rimando.
Sozinho,
é-se menos homem que pessoa,
agónico
animal pró-esquecimento.
O
Tempo já raro traz ’ma coisa boa,
é
de natura o coice ao jumento.
Vingando
vou a meus ontens sem remédio,
vincando
anteontens mais felizes.
Cicatrizes
bocejo já de tédio,
’gor
’ora pachorra pa’ cicatrizes!
iii
A olhos ora vi de natureza
botânica-floral à maravilha.
Retinas que retive em beleza
– mas sem indiscrição mais
peralvilha.
E falsamente mansos pareciam
tais caçadores a céu não encoberto.
Perto, por sem medo, não
s’escondiam
– mas longe como a água no deserto.
Vínhamos no autocarro 24
os quatro olhos cá deste poema.
Em todo o caso, foi breve teatro
– longa-metragem porém tal cinema.
Símiles deles vi: Maio d’84.
Lume, o mesmo. Exact’o mesmo gelo.
Faziam o morrer deles par’cer belo.
Sacan’olhos, aqui no 24.
Já passou. Já passaram. Já lá vão.
Pós-meados de Novembro, fez-se
V’rão.
Ó V’rão d’antigamente não tão
fóssil!
Ó ’nha vida que eras tão mais
fácil!´
Lindos olhos. Perigosos.
Distraídos.
Reflexos mar-d’além aquém sumidos.
Tão naturais como tão sem preparo.
Dois voos de carvão no céu mais
claro.
Apeei-me ali à Jaime Cortesão
(que foi Brotero & ex-Sidónio
Pais).
Já não é uma qualquer prevaricação
que bailação me manda de carnavais.
Por modos já não vejo pelos vistos:
esqueci-me d’apontar d’ela a idade,
d’oitenta a quarent’anos benquistos
pela grei menos cega da cidade.
Lembro talvez olhos doutro retrato,
d’tempo em que não era nem nascido.
Como não for nem seja, não retracto
ver & ter visto – mas não ter
sido vido.
iv
Não arrumes os papéis, que vais ver
não vais ver mas os papéis ’inda
vão ser
motivo d’algo que fidalgo não quer
crer,
não t’arrumes que tu nem papéis
vais ser.
Fala agora com quem conta – mas
aponta
quem te fala & não cala &
quer ouvir.
Diz ao gato: – Queres saber? E s’ele sair,
sai também, não cuides da morte
certa.
Fecha-s’a janela. Mas a porta,
aberta,
deixa miasmas putrescer
qual Paris do Jim Morrison
quando o Jim cá vier viver.
S’ele não vem, não vem, está vindo.
Vivo é uma maneira de dizer:
ou de ser dito, ou bem ou mal,
q’lindo
é estar vivo-em-lido, p’r’assim
dizer.
b) Domingo, 24 de Novembro de 2019
Da janel’alta da sala, mirando a
nocturnidade definitiva do em breve ex-domingo. Risca a azul o negro: mais uma
ambulância a caminho das Urgências. Uiva como alma-danada. Ao princípio, era
aflitivo. Habituei-me. Até a dor se deixa rotinar. Disso sei, sei o que digo.
Num quarto-casa de prédio urbano,
só pela imaginação domesticada cheiro o mar, o grande mar de Conrad &
Stevenson. Ou de Vasco da Gama, vá lá. Não acho contradição. A montanha nevada
sobe o horizonte dos olhos melados de sono, comigo deitado no catre. A morte,
só ela, me/nos/Vos libertará de tais jogos-de-escondidas com a insuficiência
prática do dia-a-dia subúrbio-coiso-&-tal. Um remédio: chá-de-camomila
& M.R. James. Outro remédio: chá-de-frutos-vermelhos & Italo Calvino.
Até que se melem os olhos, o corpo se distenda, o catre ranja um pouco, não
muito, Novembro uiva fora qual ambulância palaciana.
Horas boas que recordo sem esforço (e quase sem artifício:)
Sábado de manhã, na Biblioteca
Municipal, estudo de um capítulo de gramática francesa (relativo à sintaxe da
concordância do particípio passado) seguido de uma brochura didáctica dedicada
à cosmogonia grega; saindo por volta do meio-dia, chuva persistente, álgida,
provinda de um firmamento mercurial; almoço no Mijacão: bifana no pão, sardinhas
fritas noutro papo-seco, dois terços de vinho com um de gasosa em copo médio;
café no Santa Cruz depois de comprar cigarros Dunhill e o número de véspera do Daily Telegraph; à tarde, cinema no Avenida (The Whisperers ou The Misfits?);
no Mandarim, chá & leitura de Portuguex,
de Armando Silva Carvalho; autocarro (então) da linha n.º 2 para casa (A Casa),
jantar com os velhotes (arroz-de-frango, sopa-de-agrião, leite-creme); bica
nocturna no Lobito, poker de dados
com o senhor Augusto & o Carlos Mercier; casa, cama, alguns sonetos da
Arcádia, sono sem peias nem agravos.
Ou então:
Ao cabo de jornada laboral
particularmente trabalhosa, o entardenoitecer primaveril era melhor do que vem
nos folhetos das juntas de turismo; a mulher daquela altura saíra do banho uns
cinco minutos depois de eu entrar em casa; canja acabada de fazer perfumava a
hora nova; o gato daquela altura, que era o Manitas e eu resgatara de um
caixote do lixo ao pé da casa do Helder L., esperava que eu lhe servisse o
fígado da galinha sacrificada em meu prazenteiro holocausto; jantámos os três,
o trio viu depois a edição-vídeo de Once
Upon a Time in America, após o que os três dormimos na mesma cama, o
Manitas entre as duas cabeças humanas.
Oito anos separam as duas jornadas
acima paragrafadas. Desde a última delas, três décadas arderam sem grandes
alegrias nem estardalhaços de monta.
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