11. Veros Fanais
Segunda-feira, 11 de Novembro de 2019
i
O dia entrara noite adentro, a
formosa inutilidade da literatura habitava a cabana que ergui contra a
usurpação do esquecimento. Deste & da excessiva lembrança.
Usei o domingo com a brevidade
possível. Conferi a Cidade, não me enganei no troco que lhe dei. Olhei a
mesa-de-cabeceira, parte do meu tesouro nela se empilha.
Dirijo estas linhas (também) como
auto-missiva. Sou de pouquíssima gente, sou de um gato. Tenho provisões para,
digamos, mais doze dias. depois, como ontem, não sei.
A noite adentrara o dia, eu era
atencioso & cortês: na cabana vácua. Fiz o meu lume, nele ardo.
ii
Este lento veneno – o amor –
ainda me pede contas, que em
rosário desfio ainda peremptório.
Os meus Amados Mortos decerto
cantam, escrevo-lhes a pauta.
A solidão não me surpreende nem
choca,
ela é condição da condição,
uso da essência, palha do burro,
material babado pela sombra
em vidas, digo, idas de menos luz.
Em Maio, o Gato veio ocupar-me a
casa,
casa que me permitem por bondade,
sou grato devagar como o lírio,
grato como o lírio branco à cor
branca.
E nisto sou justo escrevendo-o.
Os meus segredos valem por junto um
livro aberto, se amanhã me pedissem um beijo, dá-lo-ia sem abrir a boca, o
verso justo é-me a mor alegria, a alegria justa vale lírio em verso.
iii
Com menos dias de idade, foi o meu
Gato com seu irmãozito resgatado em matagal, deram-lhe esta casa mas
levaram-lhe o mano,
eu sou este gato.
iv
O meu Gato Branco é lírio-verso.
Amo dele a condição olímpica,
escrevo apesar dele para ele,
passamos a vida na Língua
Portuguesa.
v
Acho que o meu Gato me ama um
bocadito,
a vida talvez nem tanto mas é
normal,
no poste junto à busparagem
anunciam
em necroafixos os mortos da zona,
esta semana só Marias eram quatro.
vi
Chamo-Vos no escuro, nem vizinho
sinto.
vii
Litania simples da atenção aplicada
sem pressa às passagens a oeste, vários são os verdes, tonalidade do milagre
freático, pujança da paleta generosa, um pouco mais de luz veio inspeccionar os
domínios, aqui estamos sendo um só.
viii
Um homem como senhor,
logo um homem como o senhor,
desejo-lhe as melhorazinhas
– diz Rosa, uma dentre quatro
Marias.
ix
A paz do esquecimento não vela por
nós,
somos poucos, ele + tu + eu a nós
nem perfazemos,
o emudecimento também alfim é voz.
Nasce-se tendo sido o que já não
seremos.
x
Não hei-de servir senão frio este
corpo minha nave.
É no Inverno que a praia se mais
civiliza, de tão vazia enfim.
A frio queimo nomes que os anos me
inventariam, sabe
o deus-dos-outros por que veio o
que foi a ser assim.
xi
Rio-me quase sem amargura das ditas
oportunidades-perdidas,
queríeis deste que V. não defere um
burguesinho talvez,
são curtas Vossas vistas – mas as
ruas, compridas,
algumas chegam mesmo a avenidas.
Vêdes? Vês?
xii
O que paguei, apago. Padeço por
vezes de nitidez.
Já pouco estremeço, sendo aliás
rara a vez
em que ao luxo me dou de não ser
lixo mais comum.
Pedante ignorante é que não, isso
não – nem entremez
de gagas partes bufas, sou
devagarito português
– nascido, fui outro tanto;
morrendo, talvez nem menos um.
xiii
Gratidão é o que me acontece quando
junto as letras
j-o-r-g-e-d-e-s-e-n-a-r-u-y-b-e-l-o.
Signos são salvadores da sideral
solidão solipsista nossa.
Sim, são-no(s).
xiv
Claro, é por vezes gástrica a
melancolia, nada que a manhã não resolva, uma aresta de telhado a que uma pomba
presida, algum trecho de livro capaz de felicidade instantânea, assim por aí.
Alguma polpa infecta não logrou
’inda de todo sitiar-me. Exerço a r-existência.
Elegi núcleos de ser-significação,
inelutáveis eles todos, que são veros fanais. Riqueza: posso dizê-lo de mais
simples modo.
O amor do senhor meu Pai por os
animais, em que aos filhos incluía.
Eis esse continuado amor: o meu
Gato nas minhas pernas.
Certas palavras justas feridas a
tempo, não feridas por tardias.
A descoberta de António Osório
(& de João Miguel Fernandes Jorge) na Casa Rádio, ali à Figueira da Foz.
Certa lucidez de que o (m)eu-corpo
de 20 anos foi alvo, quando se achou em conformidade, total & portuguesa,
para com as arbóreas exóticas existências sitas no Jardim Botânico de Coimbra,
Portugal.
Bach.
O amor da senhora minha Mãe por a
vida sem mais nem mas nem menos por ou para quê.
Fidedignidade do leitor quanto ao
autor fidedigno. Claro, é por vezes melanc(o)ólico ter um estômago, ou antes,
pertencer a um estômago, ter de forrá-lo todo & cada dia, sacrificar a seu
sustento até Bach, esse que a tantos outros estômagos gerou.
Não saio de casa esta segunda-feira
– mas sairá de segunda-feira esta casa, comigo ou sem mim, é-lhe felizmente
indiferente. O meu Gato agradece. E o eu-gato também.
(Mas isto é, embora não fique.)
xv
Não me é possível ir ali tomar
café com Sócrates,
nem absinto com Toulouse-Lautrec,
nem chá com Proust,
nem bourbon com Faulkner,
nem ambrosia com Homero.
É-me porém possível
ir à Nave de Alcobaça ser branco
por dentro,
partilhar com um octogenário frases
já comigo antigas,
confirmar em sabão & água o que
meus Pais conceberam,
ter sido latino explicando do
doutor Moura,
ser generoso ante o muro cego.
xvi
(Parece que
José, meu paterAvô, era de árvores podador
qual profissional.
Punha limoeiros a dar rosas.
Ou filhos.)
xvii
O barbeiro
que uso, rapaz limpo, disse-me ser primo
de um rapaz que conheço, caixeiro
de farmácia, este.
Vidas (duas) produtivas.
A minha também, foda-se.
xviii
Havia
fontanário livre à Escola defronte
onde as primeiras (& últimas)
letras aprendi.
Chamávamos-lhe Fonte.
primeira que bebi-vivi-li.
xix
“Nariz frio, cão sadio.”
Quem me dera versos assim.
xx
Ricto &
comissura sorrio-labiais:
alguém lê ’inda a possibilidade?
xxi
Leio Bill Evans como ouço Ruy Belo,
devagar me são os móveis que
depressa
perderam de meus Pais o ser belo
só por nascido; ó morte, não hajas
pressa.
Ele troca depois o fato por camisas
havaianas,
sou de plateia singular, qual
Suécia ?!, qual ’64?!
Dai-me uma garrafa, dai-me duas
bananas e
– & limpo varrerei a sós só o
meu teatro.
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