19. Coisas Amarelas
a) Quarta-feira, 27 de Novembro de 2019
(Aprender a rejeitar tem de ser a
partir do faça-você-mesmo. Mescla vivência & sobrevivência. Sim, às vezes
vou lá. Não sei se chego lá – mas lá ir, cá vou.)
Uma coisa é certa: isto tem sido
povoado, isto da caderneta tem dado uma solidão acompanhada. Lapsos? Os da
percepção. Compensação? A da redacção. Vai-se a Blackpool ver a
torre-dos-pobres. Fica-se no Morleigh, por exemplo. Bons-olhos nos vejam – e
que vejamos nós um bom rolo de esterlinas no próprio bolso. Olympia, Winter
Gardens. E no Emperor’s Ballroom? Winston Churchill em 1954; dois anos antes,
lá mesmo, Aneurin Bevan. So they say,
por assim dizer. Alec Douglas Home, 1963 (cinco anos depois do nascimento de
André, como vimos, e sete anos do idem
de Tomé.) E Harold Wilson, 1968. Fartura presente, caderneta contente.
Bernardo Moço já foi a Blackpool,
claro. Acho que ficou no Imperial, não estou seguro. Não, tocou no Imperial Hotel – ficar, ficou em pensão, tal como os
demais tocadores de banjo. Sim,
Bernard Young. E Tom Moreton, The Memory
Man. Campeão mnemónico das Yellow
Pages. Tudo
tão bonito, tão triste tudo. E pudim-de-arroz. E Norman Slater, standupper.
Lancashire. Oldham. Rochdale. Blackburn. Colne. Bradford. Wigan.
Bolton. É de onde vêm as massas operárias com a semana de férias pagas pela
primeira vez no pós-guerra. E os artistas-de-variedades também. É a Figueira da
Foz & a Mira/Barrinha & a Tocha deles. Toda esta gente, hoje tão morta
ou quase, no Arena/BBC, documentário
de 1989.
É-se sozinho – mas a companhia
brada no comboio rumo a Blackpool. E Bournemouth? E Brighton? B-B-B. Olhai: o
que dura para sempre é nada durar para sempre. Olhai: o para-sempre é quanto
corpo usamos. Chorar não vale.
(Quando/se puder, ler The Kingdom
by the Sea, de Paul Theroux.)
Coralina, durante 41 anos tecelã,
ouvi-a em 1981 ou 2, ela ia encestando pevides & tremoços para vender ali
no Picadeiro, na Foz a que a Figueira dá primeiro nome, o último sendo
Atlântico. Depois de anotá-la em espécie, por assim dizer, derivei na brisa
haurindo o sol fresco través o rosto todo: como devassando-me a mais porosa
transparência. Foi isto por certa tarde álgida como uma igreja. Na tabacaria,
primeiro, depois na confeitaria, muni-me de bens & provisões para as
restantes quatro horas de estada. Sim, levitei a favor da asma marinha,
anotando sem pressa e com minúcia a evidência fantasmática dos demais ociosos,
do zéfiro (que v-v-v-ventania se v-v-v-volvera) vergando a folhagem, a mesma
ramagem por igual. Mansidão esmaecida de amarelos, azul em palidez, um carro
pequeno encarnado, aquela mulher envernizada como a cómoda da avó, passeio
higiénico-digestivo do senhor major aposentado ao cabo de uma santa carreira
durante a que não fez um caralhinho. Vi uma pequenita consoladamente roendo a
maçã – aprendiz-de-Eva. Foi a derradeira claridade do dia. O comboio
confirmou-se como entidade crepuscular, muito pouca gente, bilheteira às
moscas, o fiscal endurecid’inteiriçado pelo frio consagrado a nossos ossos,
róseo nas unhas ’inda não roídas.
Nicolau Franco, estimado &
ignoto autor de Um Leão Pobre, morreu
no exacto dia do seu 89.º aniversário natalício. Quando nasceu, ninguém soube –
ou quis – dizer-lhe: – Meu menino, conta
de 89 para trás até que nunca mais seja hoje.
Posso tentá-lo fazê-lo em versos,
porém:
Deito-me em sozinha cama, morituro.
Mandei limpar o fato, cheirava a
frio.
Aos 87, a que chamarei ’inda
futuro?
Fui à Figueira, senti o calafrio.
Concerto no Gil Vicente, acho eu.
Chá & bolinhos ao alto de Santa
Clara.
Visitou-me Jeremias, o velho
camafeu.
Comprei, de Botas, uma litografia
rara.
Antigos alunos, almoço em Celas.
Oitenta: 8 para 0, envelheço.
Exposição no Janeiro de aguarelas.
Agonia matinal, tremo &
estremeço.
77, última idade para ler Hergé.
Para o ano refaço o fim de meu Pai.
Périplo ilhéu: Cabo Verde, S. Tomé.
Telefonei ao Pimentel. Diz que já não
sai.
Nem Londres, nem Paris: inexistem.
Fui à Figueira – onde está, senhora
Mãe?
Camões, Eça, Pessoa: duros,
resistem.
Setent’anos menos trinta do que
cem.
Liga-me o Pimentel de Santiago do
Cacém.
Hospital, dor renal, fragilidade.
Obras no prédio, na casa defronte
também.
Voltas à chuva pela cidade.
Oficialmente aposentado. E agora?
Quarenta anos ao serviço do
Arquivo.
Enfim informatizado o serviço para
fora.
Nem espanto nem medo, respiro,
estou vivo.
Com Pimentel no Janeiro, mostra de
Goya.
O Zero depois do Seis, ai os 30
duas vezes,
Visão de um corvo morto na
clarabóia.
Palmilhas ortopédicas da loja dos
chineses.
Bach e Händel no Paulo Quintela.
Excursão à Lousã, mel e chanfana.
Morre Irene Pimentel, pobres dele
& dela.
Obras no Arquivo toda a próxima
semana.
Pluvioso Gerês, nacos de vitela.
Dormida em Espinho, expresso até
Braga.
Em manta de erva, a florita
amarela.
Meio-século: já o Tempo me traga.
Melancolia numérica, vã, lunar.
Convidam-me os Pimentel a passeio.
Mozart no Gil, depois lupanar.
Hoje não faço a barba, hoje
quero-me feio.
Vou à Figueira, festival do
marisco.
Já bebi de mais, que se siga a
sesta.
Casinha-emprego, rotina sem risco.
Não fui trabalhar, uma vez por
festa.
Aprender Alemão, projecto adiado.
Carago! Quarenta! Não acho piada.
Bilharada ao serão, noite bem
passada.
Adeus, senhor Pai, anjo destronado.
Não sendo com Rosa, então não
matrimónio.
Saída com Rosa, fomos à Figueira.
Impus-me ao chefe, ficou
possidónio.
Irene & uma tal Rosa, noite
soalheira.
Hopper e Magritte, ó como sou
pigmeu!
Comprar bicicleta ou curso de
Alemão?
Paredes no Avenida, Coimbra é o
céu!
Ora porras & chiças, que sou já
trintão!
Acho-me feliz, publiquei o meu
livro.
Deu-me para a escrita, devo ser
doidinho.
Nem espanto nem medo, respiro,
estou vivo.
Sonhei c’um leão muito pobrezinho.
Minha doce Mãe, como é possível?
Arranjei trabalho, um homem já sou.
A luz da Figueira é a mais
incrível.
Coimbra do filho, do Pai, do Avô.
Júlia, Susana, Rosário ou Lina?
Mizé, Salomé, Joana ou Belinha?
Mitó, Filó, Maria ou Rosalina?
Beló, Anabela, Bela ou Paulinha?
Bicicleta de casa à Figueira!
União-Académica, 1-1 n’Arregaça.
Já nado no rio, já acendo a
fogueira.
Já digo piadas a que acham graça.
Gosto de o sol cortar a nuvem.
Gosto de rádio à noite e de velas.
Gosto de quando os cães nos ouvem.
Gosto de coisas amarelas.
Bola na escola, muro no recreio.
As galinhas deitam-se cedo.
Na rua o Pai, a Mãe, eu no meio.
Sonhei viv’ Avó. Ui que medo!
Papel rasgado. Lápis afiado.
Torneira cima copo água sim.
Luz janela jo-go da-do.
Ná ná ná tu ti me mim.
Não solitária cama, nunca só.
Leão pobrezinho, nininho, tem dó.
b) Quinta-feira, 28 de Novembro de 2019
Lá para o Somme, La Boisselle.
Inimaginável jornada : 1 de Julho de 1916. A minha materAvó, Cândida
Leite, fazia anos: treze, se não erro.
Ou 1972:
1 Stuy, 3 Suurbier, 4 Hulshoff, 5 Krol, 7 Neeskens, 8 Swart, 9 G. Muhren,
11 Keizer 8cap.), 12 Blakenburg, 14 Cruyff, 15 Haan.
Henrique & Carlota, pai &
mãe de Tomás. Tomás casa-se com Valéria. É feliz consórcio: mulher certa para
homem certo. Por raras, notas assim valem muito.
(Mesmo só um pouco dormindo, sonhos
muitos. Aborrece.)
Outras vezes, a ilha (tive de botar itálico para
franquear metáfora). Não é enseada de abrigo nem de embarque. É outra coisa – e
demonstra-o no corpo da pessoa insulada. O ar pesa nas mãos abertas. Os ossos
rangem lamúrias de mulher velha. Circundam os olhos papos pneumáticos. As
beiças gretam-se. As pernas pedem fofuras horizontais. O descalabro é geral. Os
versos não vêem nem vêm a/à luz.
A pessoilha deita-se. O tecto é quanto
céu pode. Vaga, vagueia o olhar pela uniforme planura. Ave nenhuma, insecto
sequer. Devagarmente se volve ao continente.
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