23/12/2019

CADERNETA PRETA - 19






19. Coisas Amarelas



a) Quarta-feira, 27 de Novembro de 2019


(Aprender a rejeitar tem de ser a partir do faça-você-mesmo. Mescla vivência & sobrevivência. Sim, às vezes vou lá. Não sei se chego lá – mas lá ir, cá vou.)

Uma coisa é certa: isto tem sido povoado, isto da caderneta tem dado uma solidão acompanhada. Lapsos? Os da percepção. Compensação? A da redacção. Vai-se a Blackpool ver a torre-dos-pobres. Fica-se no Morleigh, por exemplo. Bons-olhos nos vejam – e que vejamos nós um bom rolo de esterlinas no próprio bolso. Olympia, Winter Gardens. E no Emperor’s Ballroom? Winston Churchill em 1954; dois anos antes, lá mesmo, Aneurin Bevan. So they say, por assim dizer. Alec Douglas Home, 1963 (cinco anos depois do nascimento de André, como vimos, e sete anos do idem de Tomé.) E Harold Wilson, 1968. Fartura presente, caderneta contente.
Bernardo Moço já foi a Blackpool, claro. Acho que ficou no Imperial, não estou seguro. Não, tocou no Imperial Hotel – ficar, ficou em pensão, tal como os demais tocadores de banjo. Sim, Bernard Young. E Tom Moreton, The Memory Man. Campeão mnemónico das Yellow Pages. Tudo tão bonito, tão triste tudo. E pudim-de-arroz. E Norman Slater, standupper. Lancashire. Oldham. Rochdale. Blackburn. Colne. Bradford. Wigan. Bolton. É de onde vêm as massas operárias com a semana de férias pagas pela primeira vez no pós-guerra. E os artistas-de-variedades também. É a Figueira da Foz & a Mira/Barrinha & a Tocha deles. Toda esta gente, hoje tão morta ou quase, no Arena/BBC, documentário de 1989.

É-se sozinho – mas a companhia brada no comboio rumo a Blackpool. E Bournemouth? E Brighton? B-B-B. Olhai: o que dura para sempre é nada durar para sempre. Olhai: o para-sempre é quanto corpo usamos. Chorar não vale.

(Quando/se puder, ler The Kingdom by the Sea, de Paul Theroux.)

Coralina, durante 41 anos tecelã, ouvi-a em 1981 ou 2, ela ia encestando pevides & tremoços para vender ali no Picadeiro, na Foz a que a Figueira dá primeiro nome, o último sendo Atlântico. Depois de anotá-la em espécie, por assim dizer, derivei na brisa haurindo o sol fresco través o rosto todo: como devassando-me a mais porosa transparência. Foi isto por certa tarde álgida como uma igreja. Na tabacaria, primeiro, depois na confeitaria, muni-me de bens & provisões para as restantes quatro horas de estada. Sim, levitei a favor da asma marinha, anotando sem pressa e com minúcia a evidência fantasmática dos demais ociosos, do zéfiro (que v-v-v-ventania se v-v-v-volvera) vergando a folhagem, a mesma ramagem por igual. Mansidão esmaecida de amarelos, azul em palidez, um carro pequeno encarnado, aquela mulher envernizada como a cómoda da avó, passeio higiénico-digestivo do senhor major aposentado ao cabo de uma santa carreira durante a que não fez um caralhinho. Vi uma pequenita consoladamente roendo a maçã – aprendiz-de-Eva. Foi a derradeira claridade do dia. O comboio confirmou-se como entidade crepuscular, muito pouca gente, bilheteira às moscas, o fiscal endurecid’inteiriçado pelo frio consagrado a nossos ossos, róseo nas unhas ’inda não roídas.

Nicolau Franco, estimado & ignoto autor de Um Leão Pobre, morreu no exacto dia do seu 89.º aniversário natalício. Quando nasceu, ninguém soube – ou quis – dizer-lhe: – Meu menino, conta de 89 para trás até que nunca mais seja hoje.
Posso tentá-lo fazê-lo em versos, porém:

Deito-me em sozinha cama, morituro.
Mandei limpar o fato, cheirava a frio.
Aos 87, a que chamarei ’inda futuro?
Fui à Figueira, senti o calafrio.

Concerto no Gil Vicente, acho eu.
Chá & bolinhos ao alto de Santa Clara.
Visitou-me Jeremias, o velho camafeu.
Comprei, de Botas, uma litografia rara.

Antigos alunos, almoço em Celas.
Oitenta: 8 para 0, envelheço.
Exposição no Janeiro de aguarelas.
Agonia matinal, tremo & estremeço.

77, última idade para ler Hergé.
Para o ano refaço o fim de meu Pai.
Périplo ilhéu: Cabo Verde, S. Tomé.
Telefonei ao Pimentel. Diz que já não sai.

Nem Londres, nem Paris: inexistem.
Fui à Figueira – onde está, senhora Mãe?
Camões, Eça, Pessoa: duros, resistem.
Setent’anos menos trinta do que cem.

Liga-me o Pimentel de Santiago do Cacém.
Hospital, dor renal, fragilidade.
Obras no prédio, na casa defronte também.
Voltas à chuva pela cidade.

Oficialmente aposentado. E agora?
Quarenta anos ao serviço do Arquivo.
Enfim informatizado o serviço para fora.
Nem espanto nem medo, respiro, estou vivo.

Com Pimentel no Janeiro, mostra de Goya.
O Zero depois do Seis, ai os 30 duas vezes,
Visão de um corvo morto na clarabóia.
Palmilhas ortopédicas da loja dos chineses.

Bach e Händel no Paulo Quintela.
Excursão à Lousã, mel e chanfana.
Morre Irene Pimentel, pobres dele & dela.
Obras no Arquivo toda a próxima semana.

Pluvioso Gerês, nacos de vitela.
Dormida em Espinho, expresso até Braga.
Em manta de erva, a florita amarela.
Meio-século: já o Tempo me traga.

Melancolia numérica, vã, lunar.
Convidam-me os Pimentel a passeio.
Mozart no Gil, depois lupanar.
Hoje não faço a barba, hoje quero-me feio.

Vou à Figueira, festival do marisco.
Já bebi de mais, que se siga a sesta.
Casinha-emprego, rotina sem risco.
Não fui trabalhar, uma vez por festa.

Aprender Alemão, projecto adiado.
Carago! Quarenta! Não acho piada.
Bilharada ao serão, noite bem passada.
Adeus, senhor Pai, anjo destronado.

Não sendo com Rosa, então não matrimónio.
Saída com Rosa, fomos à Figueira.
Impus-me ao chefe, ficou possidónio.
Irene & uma tal Rosa, noite soalheira.

Hopper e Magritte, ó como sou pigmeu!
Comprar bicicleta ou curso de Alemão?
Paredes no Avenida, Coimbra é o céu!
Ora porras & chiças, que sou já trintão!

Acho-me feliz, publiquei o meu livro.
Deu-me para a escrita, devo ser doidinho.
Nem espanto nem medo, respiro, estou vivo.
Sonhei c’um leão muito pobrezinho.

Minha doce Mãe, como é possível?
Arranjei trabalho, um homem já sou.
A luz da Figueira é a mais incrível.
Coimbra do filho, do Pai, do Avô.

Júlia, Susana, Rosário ou Lina?
Mizé, Salomé, Joana ou Belinha?
Mitó, Filó, Maria ou Rosalina?
Beló, Anabela, Bela ou Paulinha?

Bicicleta de casa à Figueira!
União-Académica, 1-1 n’Arregaça.
Já nado no rio, já acendo a fogueira.
Já digo piadas a que acham graça.

Gosto de o sol cortar a nuvem.
Gosto de rádio à noite e de velas.
Gosto de quando os cães nos ouvem.
Gosto de coisas amarelas.

Bola na escola, muro no recreio.
As galinhas deitam-se cedo.
Na rua o Pai, a Mãe, eu no meio.
Sonhei viv’ Avó. Ui que medo!

Papel rasgado. Lápis afiado.
Torneira cima copo água sim.
Luz janela jo-go da-do.
Ná ná ná tu ti me mim.

Não solitária cama, nunca só.
Leão pobrezinho, nininho, tem dó.


b) Quinta-feira, 28 de Novembro de 2019


Lá para o Somme, La Boisselle. Inimaginável jornada : 1 de Julho de 1916. A minha materAvó, Cândida Leite, fazia anos: treze, se não erro.

Ou 1972:
1 Stuy, 3 Suurbier, 4 Hulshoff, 5 Krol, 7 Neeskens, 8 Swart, 9 G. Muhren, 11 Keizer 8cap.), 12 Blakenburg, 14 Cruyff, 15 Haan.

Henrique & Carlota, pai & mãe de Tomás. Tomás casa-se com Valéria. É feliz consórcio: mulher certa para homem certo. Por raras, notas assim valem muito.

(Mesmo só um pouco dormindo, sonhos muitos. Aborrece.)

Outras vezes, a ilha (tive de botar itálico para franquear metáfora). Não é enseada de abrigo nem de embarque. É outra coisa – e demonstra-o no corpo da pessoa insulada. O ar pesa nas mãos abertas. Os ossos rangem lamúrias de mulher velha. Circundam os olhos papos pneumáticos. As beiças gretam-se. As pernas pedem fofuras horizontais. O descalabro é geral. Os versos não vêem nem vêm a/à luz.
A pessoilha deita-se. O tecto é quanto céu pode. Vaga, vagueia o olhar pela uniforme planura. Ave nenhuma, insecto sequer. Devagarmente se volve ao continente.





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Canzoada Assaltante