02/12/2019

CADERNETA PRETA - 9






9. Mesma Serenidade, Mesma Agonia

a) Quinta-feira, 7 de Novembro de 2019



A manhã é descerrada por uma que era Virgínia Colina, promíscua dama de anos nunca mais vindouros. Foi diamante-falso de salões valsantes: Las Vegas, Viena de Áustria, Estoril, Funchal. Na véspera do 50.º aniversário, ainda fez compras ligeiras, ainda recebeu telefonemas para festas – mas não permitiu à meia-noite que a tomasse. Comprimidos – etc. dormem-lhe os ossos num talhão-de-artistas qualquer, por aí. Só sexta-feira, para o torneio de sueca, hão-de-varrer o salão.

Georgina Pastor, admirada conservadora de galerias particulares, herméticos pardieiros em que os ricos embalsamam arte outrora viva. Havendo apreendido cedo os gerais motivos & as comuns comédias dos néscios endinheirados, fez fortuna sem soluços. Repartiu o pecúlio aforrado por muito avisadas aplicações. Tal permitiu-lhe sair de cena quando ainda não perfizera os cinquenta. Contratou o casal Regina/Leopoldo Magriço, a dupla de sempre: ele, faz-tudo; porteira-cozinheira, ela. Vivenda quase—mansão na Rua Ravel. Chegou aos 86, levaram-na, preferiu a cremação, não ficou exposta – até hoje, aqui.

Renato (da Paz) Madrid, botânico condescendente. Residência ali alta, entre o Liceu e a Penitenciária, autêntica cápsula-do-Tempo que herdou dos materavós, Irene & Aquilino Salvador da Paz. Como certa Georgina P., nunca se casou. Salvou-se da burguesia, habitando-a sem luz-de-presença. Subsistiu-a, fingindo representá-la. A seu modo, foi anjo. Foi anjo consciente da clamorosa impossibilidade de Deus. Adoeceu, deixou-se de merdas, rasto não deixou significativo ou ominoso.

Mário Bonanza, careca como um fósforo, cuidador de inutilidades, criatura de rotinas relojoeiras, nem feliz nem melancólico. Modelo portátil de pessoa assim-assim. De invejável pecúnia, nem meio-caralho fez a vida toda. Abençoado.

Identificar & captar a pequenez como a grandeza mercê da mesma serenidade, mesma agonia. Isto é claro para mim. Claro que demorou uma vida a ser claro. Vou muito a tempo de ter onde cair morto: qualquer pedaço de chão me basta.

Tenho residido suficiências.

Idem idem pouca gente.

Jorge, Angelina & Valter: manos músicos, completavam quarteto com Dinis Querido. Tributavam excelentes afinações a arranjos de música d’entre 1964 a 1979. Rodavam o circuito de bares pela música da noite. O conjunto desfez-se com a emigração de Angelina para a norueguesa Trondheim, a colocação do professor Jorge em Tavira & a desistência simples de Dinis. Valter fez posterior carreira, mas de continuidade desgarrada, em grupos similares. Nenhum dos quatro consta de qualquer publicação recenseada de bandas semiprofissionais do Pavia para cima. Nem para baixo.

Recém-nascido atirado ao lixo, o senhor Presidente da República já foi falar com o salvador do infante, por ironia um sem-abrigo. A televisão, comovida, serve-nos o doce desse momento, a guloseima da salvação. Portugalinho da diabética lagrimeta telecomandada.

Locais onde Garrett assinou versos & linhas afins: Birmingham (Warwickshire, Inglaterra); Ilha Terceira (Açores); Porto; Coimbra; Angra do Heroísmo; em pleno mar (Agosto de 1824); Lisboa; Sintra (Cintra, sic): prisão do Limoeiro (Lisboa, Agosto de 1833); Londres; Havre de Graça; São Miguel; Paris; Bruxelas. Gostaria de ver como eram estes burgos nos dias dele. Nunca terei tal gosto.

(Falta-me ler Carlo Emilio Gadda.)



b) Sexta-feira, 8 de Novembro de 2019



Manhã clara. Clausura. Temporário. Alienação paulatina, mas volitiva, de quanto arda sem calor. Existência tomada. Nomeio o meu povo. (É decerto inexacto dizer povo. Rebanho de soledades, sim, melhor carimbo.) vou confederando clarões eidéticos, por assim dizer. Quanto a legibilidade, não cuido por aqui aquém. Rolando?

Rolando Garcia, emérito cavalheiro como muito poucos, mestre oficinal de louça decorativa. Conhece, da Beleza, a instantaneidade capaz de fundir séculos em um instante sem esquecimento. Fulmina-o de quando em vez algum trecho de rádio: Piazzolla, Barber, Paredes, Grieg – contra a ignorância triunfal dos sicários, contra a morte-em-vida. Rolando sabe (como eu sei, aprendi) quão sozinha é a fruição. Como o sabe Susana em casa de Susana, Orlando em a rua de Orlando, Gil com a árvore do avô Gil, Luísa em sua saleta sem retratos. Pois?

Pois é, aqui não formiga tertúlia. Italo Calvino chama “trapalhão” a Colin Wilson? Desta monoplateia o aplaudo. Garrett refere Benjamin Franklin? Sorrio sem precisar dos dentes postiços. Heitor?

Avulsas mas razoáveis vezes o vi passando rumo a si mesmo, as mais vezes aos sábados, Heitor Sílvio Marrazes, pêlo-de-rato, roupagens monocromáticas, tão capaz de se comover ante alguma máquina bem ideada quão de repugnar-se ante os galarós capados do marialvismo tauromáquico. Casamento frio, o dele com Izaura dos Remédios Pilar, católica por apatia, sem uma frase própria, mais lhe valera o freirato recluso. Mas lá desandaram – como toda a gente. Miguel?

Miguel Paladino em plena névoa londrino-victoriana. Arrendou alojamento na Great Russell Street (WC1), que partilha com um Guilherme Guarda de Coventry. Trabalham ambos no Hammer Hotel & Lounge – Miguel no economato, Guilherme na manutenção termoeléctrica. Guilherme não sabe dizer-me se Miguel deriva dos Paladino de Colchester, se devem dos de Norfolk, se de ninguém, o que sempre seria, como o próprio Cristo, novidade. Já apurei, todavia, que o empregado de hotelaria se oferece lições particulares: piano, grego & latim, astronomia, dactilografia. Não-fumador, abstémio sem ser por moralidade, consegue pagar essas propinas sem angústias. Toma o aluguer de uma prostituta-domiciliada cada trimestre – e sempre ao dia 18: Fevereiro com Laura Travassos, Maio para Dorina Anselmo, Agosto em Telma Lemos, Novembro de Teolinda Palha. O gajo organiza-se. Ida, agora.

Ida Tranquila Ralha. Vem dos canais holandeses. Filha & neta de marítimos flamengos. Velha, bonita. Especialista em Vermeer, Hammershoi, Wyeth, De Chirico, Rilke, Beckett, Montalbán, Espinoza. Cozinheira-adjunta do Hotel George V. Biblioteca pessoal: 44 volumes de alfarrábio (até 3 de Setembro último, contei-os). Férias em Delft (anos ímpares) & na Normandia (os outros). Em viagem, casaco azul-noite abotoado a madrepérola. Elsinore (Helsingør), talvez um dia. E em dia as letras de Ida.

Vejo uma via empedrada entre casas cuja descrição poderia ser produzida ao piano por Miguel Paladino, agora que já aprendeu. Nenhum nome por tal via. Isto não a faz sinistra. Suspende-a, antes. E projecta-a para um depois que não posso, já não poderei. Como, porquê, nada de quando, onde, quem muito menos. Eu disse clausura. Não brincava quando o hei dito.

Sim, o dinamarquês Hammershoi, que Hopper não enjeitaria. Homem interior, cujo olhar é de uma densidade equivalente à do verso justo, do fotograma exacto: olhar sem depois nem antes – por interior, nem cit/ nem ult/erior. Como sentimos que uma janela nos olha – compreendeis isto? Se não, perguntai (também) a Wyeth. E se ele V. responder, contai-mo, por cortesia.

Imagem vinda de dentro já no pós-meio-dia: a mente como papel mole a que chega na diagonal uma punhada líquida: a memória. Como André W. pintando em segredo Helga T. Tal é só de ambos. Cabana vedada à idiotia alienígena, rica de mais até para monarcas ainda não exilados, quanto mais para reses de incônscio rebanho. Estou certo no & do que digo, a este respeito. Não tanto quanto a outros.

[Aparente omnipresença de um eu-árbitro, em espécie de um fulcro neutro, ante & através as várias existências de E(u)xistência. Menino & velho. Branco & nocturno. Feliz & mentiroso.]

Ou então, naturalmente à face de outro mar em outro verão, aquela tarde prussiana, mulher de leite duro subido à explosão de ouro da cabeça em coroa, improvável verão de mar sem prova, ela bordando o litoral em efígie de ausência anunciada, autora só de sua sombra longa como cauda de noiva, vi que se apartava até destes versos futuros & sem futuro, como os outros.

(Aparecer, parecer, ser & perecer. Pronto.)

Nietzsche tinha sífilis como eu tenho pena de António Botto.

A Jill Ireland de 1975 radiava finuras ductilíssimas. Eu porém contava só onze anos de nascido, então: não podíamos. Agora que, enfim, agora – agora nada, senhor Abrantes, tudo como dantes.

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Canzoada Assaltante