9. Mesma Serenidade, Mesma Agonia
a) Quinta-feira, 7 de Novembro de 2019
A manhã é descerrada por uma que
era Virgínia Colina, promíscua dama de anos nunca mais vindouros. Foi
diamante-falso de salões valsantes: Las Vegas, Viena de Áustria, Estoril, Funchal.
Na véspera do 50.º aniversário, ainda fez compras ligeiras, ainda recebeu
telefonemas para festas – mas não permitiu à meia-noite que a tomasse.
Comprimidos – etc. dormem-lhe os ossos num talhão-de-artistas qualquer, por aí.
Só sexta-feira, para o torneio de sueca, hão-de-varrer o salão.
Georgina Pastor, admirada
conservadora de galerias particulares, herméticos pardieiros em que os ricos
embalsamam arte outrora viva. Havendo apreendido cedo os gerais motivos &
as comuns comédias dos néscios endinheirados, fez fortuna sem soluços. Repartiu
o pecúlio aforrado por muito avisadas aplicações. Tal permitiu-lhe sair de cena
quando ainda não perfizera os cinquenta. Contratou o casal Regina/Leopoldo
Magriço, a dupla de sempre: ele, faz-tudo; porteira-cozinheira, ela. Vivenda
quase—mansão na Rua Ravel. Chegou aos 86, levaram-na, preferiu a cremação, não
ficou exposta – até hoje, aqui.
Renato (da Paz) Madrid, botânico
condescendente. Residência ali alta, entre o Liceu e a Penitenciária, autêntica
cápsula-do-Tempo que herdou dos materavós, Irene & Aquilino Salvador da
Paz. Como certa Georgina P., nunca se casou. Salvou-se da burguesia,
habitando-a sem luz-de-presença. Subsistiu-a, fingindo representá-la. A seu
modo, foi anjo. Foi anjo consciente da clamorosa impossibilidade de Deus.
Adoeceu, deixou-se de merdas, rasto não deixou significativo ou ominoso.
Mário Bonanza, careca como um
fósforo, cuidador de inutilidades, criatura de rotinas relojoeiras, nem feliz
nem melancólico. Modelo portátil de pessoa assim-assim. De invejável pecúnia,
nem meio-caralho fez a vida toda. Abençoado.
Identificar & captar a pequenez
como a grandeza mercê da mesma serenidade, mesma agonia. Isto é claro para mim.
Claro que demorou uma vida a ser claro. Vou muito a tempo de ter onde cair
morto: qualquer pedaço de chão me basta.
Tenho residido suficiências.
Idem idem pouca gente.
Jorge, Angelina & Valter: manos
músicos, completavam quarteto com Dinis Querido. Tributavam excelentes
afinações a arranjos de música d’entre 1964 a 1979. Rodavam o circuito de bares
pela música da noite. O conjunto desfez-se com a emigração de Angelina para a
norueguesa Trondheim, a colocação do professor Jorge em Tavira & a
desistência simples de Dinis. Valter fez posterior carreira, mas de
continuidade desgarrada, em grupos similares. Nenhum dos quatro consta de
qualquer publicação recenseada de bandas semiprofissionais do Pavia para cima.
Nem para baixo.
Recém-nascido atirado ao lixo, o
senhor Presidente da República já foi falar com o salvador do infante, por
ironia um sem-abrigo. A televisão, comovida, serve-nos o doce desse momento, a
guloseima da salvação. Portugalinho da diabética lagrimeta telecomandada.
Locais onde Garrett assinou versos
& linhas afins: Birmingham (Warwickshire, Inglaterra); Ilha Terceira
(Açores); Porto; Coimbra; Angra do Heroísmo; em pleno mar (Agosto de 1824);
Lisboa; Sintra (Cintra, sic): prisão
do Limoeiro (Lisboa, Agosto de 1833); Londres; Havre de Graça; São Miguel;
Paris; Bruxelas. Gostaria de ver como eram estes burgos nos dias dele. Nunca
terei tal gosto.
(Falta-me ler Carlo Emilio Gadda.)
b) Sexta-feira, 8 de Novembro de 2019
Manhã clara. Clausura. Temporário.
Alienação paulatina, mas volitiva, de quanto arda sem calor. Existência tomada.
Nomeio o meu povo. (É decerto inexacto dizer povo. Rebanho de soledades, sim, melhor carimbo.) vou confederando
clarões eidéticos, por assim dizer. Quanto a legibilidade, não cuido por aqui
aquém. Rolando?
Rolando Garcia, emérito cavalheiro
como muito poucos, mestre oficinal de louça decorativa. Conhece, da Beleza, a
instantaneidade capaz de fundir séculos em um instante sem esquecimento.
Fulmina-o de quando em vez algum trecho de rádio: Piazzolla, Barber, Paredes,
Grieg – contra a ignorância triunfal dos sicários, contra a morte-em-vida.
Rolando sabe (como eu sei, aprendi) quão sozinha é a fruição. Como o sabe
Susana em casa de Susana, Orlando em a rua de Orlando, Gil com a árvore do avô
Gil, Luísa em sua saleta sem retratos. Pois?
Pois é, aqui não formiga tertúlia.
Italo Calvino chama “trapalhão” a
Colin Wilson? Desta monoplateia o aplaudo. Garrett refere Benjamin Franklin?
Sorrio sem precisar dos dentes postiços. Heitor?
Avulsas mas razoáveis vezes o vi
passando rumo a si mesmo, as mais vezes aos sábados, Heitor Sílvio Marrazes,
pêlo-de-rato, roupagens monocromáticas, tão capaz de se comover ante alguma
máquina bem ideada quão de repugnar-se ante os galarós capados do marialvismo
tauromáquico. Casamento frio, o dele com Izaura dos Remédios Pilar, católica
por apatia, sem uma frase própria, mais lhe valera o freirato recluso. Mas lá
desandaram – como toda a gente. Miguel?
Miguel Paladino em plena névoa
londrino-victoriana. Arrendou alojamento na Great Russell Street (WC1), que
partilha com um Guilherme Guarda de Coventry. Trabalham ambos no Hammer Hotel
& Lounge – Miguel no economato, Guilherme na manutenção termoeléctrica.
Guilherme não sabe dizer-me se Miguel deriva dos Paladino de Colchester, se
devem dos de Norfolk, se de ninguém, o que sempre seria, como o próprio Cristo,
novidade. Já apurei, todavia, que o empregado de hotelaria se oferece lições
particulares: piano, grego & latim, astronomia, dactilografia. Não-fumador,
abstémio sem ser por moralidade, consegue pagar essas propinas sem angústias.
Toma o aluguer de uma prostituta-domiciliada cada trimestre – e sempre ao dia
18: Fevereiro com Laura Travassos, Maio para Dorina Anselmo, Agosto em Telma
Lemos, Novembro de Teolinda Palha. O gajo organiza-se. Ida, agora.
Ida
Tranquila Ralha. Vem dos canais holandeses. Filha & neta de marítimos
flamengos. Velha, bonita. Especialista em Vermeer, Hammershoi, Wyeth, De
Chirico, Rilke, Beckett, Montalbán, Espinoza. Cozinheira-adjunta do Hotel
George V. Biblioteca pessoal: 44 volumes de alfarrábio (até 3 de Setembro
último, contei-os). Férias em Delft (anos ímpares) & na Normandia (os
outros). Em viagem, casaco azul-noite abotoado a madrepérola. Elsinore (Helsingør),
talvez um dia. E em dia as letras de Ida.
Vejo
uma via empedrada entre casas cuja descrição poderia ser produzida ao piano por
Miguel Paladino, agora que já aprendeu. Nenhum nome por tal via. Isto não a faz
sinistra. Suspende-a, antes. E projecta-a para um depois que não posso, já não poderei. Como, porquê, nada de quando,
onde, quem muito menos. Eu disse clausura.
Não brincava quando o hei dito.
Sim,
o dinamarquês Hammershoi, que Hopper não enjeitaria. Homem interior, cujo olhar
é de uma densidade equivalente à do verso justo, do fotograma exacto: olhar sem
depois nem antes – por interior, nem cit/ nem ult/erior. Como sentimos que uma
janela nos olha – compreendeis isto? Se não, perguntai (também) a Wyeth. E se
ele V. responder, contai-mo, por cortesia.
Imagem
vinda de dentro já no pós-meio-dia: a mente como papel mole a que chega na
diagonal uma punhada líquida: a memória. Como André W. pintando em segredo
Helga T. Tal é só de ambos. Cabana vedada à idiotia alienígena, rica de mais
até para monarcas ainda não exilados, quanto mais para reses de incônscio
rebanho. Estou certo no & do que digo, a este respeito. Não tanto quanto a
outros.
[Aparente omnipresença de um
eu-árbitro, em espécie de um fulcro neutro, ante & através as várias
existências de E(u)xistência. Menino & velho. Branco & nocturno. Feliz
& mentiroso.]
Ou então, naturalmente à face de
outro mar em outro verão, aquela tarde prussiana, mulher de leite duro subido à
explosão de ouro da cabeça em coroa, improvável verão de mar sem prova, ela
bordando o litoral em efígie de ausência anunciada, autora só de sua sombra
longa como cauda de noiva, vi que se apartava até destes versos futuros &
sem futuro, como os outros.
(Aparecer, parecer, ser &
perecer. Pronto.)
Nietzsche tinha sífilis como eu
tenho pena de António Botto.
A Jill Ireland de 1975 radiava
finuras ductilíssimas. Eu porém contava só onze anos de nascido, então: não
podíamos. Agora que, enfim, agora – agora nada, senhor Abrantes, tudo como
dantes.
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