25/12/2019

CADERNETA PRETA - 21






21. Empresa Individual – ou – Pouquíssimos Anos, Demasiados Dias – ou – Parte Ética & Arte Poética
    

Domingo, 1 de Dezembro de 2019


Devidamente apontadas ao céu, as árvores – naves espaciais. Contam por anéis (como Saturno faz) o tempo que consomem a subir.

Adida fortuna onomástica:
Cagica (Sesimbra, Académica, CUF, Belenenses). Linha da Académica em visita ao Estádio da Luz, ano 1963 d.C.: Maló, Curado, Piscas, Torres, Cagica, Rui Rodrigues, Almeida, Teixeira, Gaio, Rocha, Oliveira Duarte. Ou, de outras, o calmeirão guardião Capela. Faia, do Barreirense. Péridis. Wilson. Bentes, Abreu, Malícia, Marta. Arrobas, Manuel Duarte. Américo, Lourenço. Rosales, do Estoril.
Estes nomes palpitam num livro, de António Cagica Rapaz, intitulado Líbero e Directo – Setenta e Tal Contos de Futebol (Garrido Editores, Outubro de 2003).
Uma linha da CUF no Estádio dos Barreiros, dia 8 de Dezembro de 1968: Vítor Cabral (g.r.), Vítor Marques, Bambo, Pedro, Abalroado, Cagica, Vieira Dias, Capitão-Mor, Monteiro, Arnaldo, Gomes Ferreira.
Ou então:
Hohenzollern – Saxe – Coburg - Gotha – para equipa de hóquei-em-patins, falta-vos ’inda o guarda-redes.

Um Guilherme vai morrer ali à Holanda. Dendroclasta, arboricida massivo, parece. O bracinho esquerdo avariado desde nascença, isso é certo. Nascer é já em si avaria, velho Guilherme. Ajudaste a emendar isso, enviando milhões para a morte. Não na tua pátria (pária dela foste depois, afinal) mas na dos outros: a começar pela Bélgica, lembra-te enquanto abates arvoredo holandês).

Aqui não mora prussian warlord nenhum. Mora um vagamente-poeta-com-gato. Domingo todos os dias, parece. Nenhum Tirpitz, nenhum Nelson. Todavia, caixas de papelão fazem de veras arcas-de-tesouros. Ainda há pouco resgatei de uma The Waste Land, do seguro Eliot. Aqui? Aqui vai(-se de)morando um gajo que se enternece à visão do gatito que, adormecido nas pernas, dá às patitas posteriores, correndo talvez atrás do pássaro que, nesta casa, só em verso.

Baixei os estores, deixando respiradouros para que aragem não falte neste castelo sucinto. Envolvo-me no roupão novo, deixo-me ir na abstracção cediça da tepidez. Um Horácio foi avô de um Henrique, anoto. Tenho chá na garrafa-termos. Tenho um assado no forno. Sou por vezes riquíssimo – bem mais do que, em princípio, a profissão poética poderia alvejar, perdão, almejar. Durante as horas vespertinas, ressuscitei livralhada, aderi a uma não-infeliz ginástica bibliófila. Assim fiz por & para merecer a noite. Faz hoje 55 anos a minha prima Candita.

Florestal humidade, capitosa aragem.
Nada me faria perder dela o desejo.
Tripulo a cavalo do verso a profunda imagem.
Reino sobre so(m)bras, reinado que não alijo.

Trafalgar, Waterloo, turismo mortal.
Remoção cadaveresca, viúvas em barda.
Degradação velocíssima pancontinental.
Só já a poesia pode pôr-nos a par da

inelutável folia do global antropóide.
Está tudo conservado em celuloide.
Não há que enganar, tudo nos livros.

Em sonhos, por vezes a tinta, lapijo mortos.
Braços decepados, pés idem & olhos tortos.
E o bracinho do Wilhelm gozando co’s vivos.

A 11 de Novembro de 1918, o senhor meu Pai é nascido há 1-ano-7-meses-1-dia. O Kaiser abdica à força. Ruma Holanda. Retornar não é, nunca será, viável. O Adolf não lho permitirá. Restam papéis, estatuetas, medalhas, chávenas esbeiçadas, cacaretarecos da finitude. Tudo mais (muito mais, francamente) rico do que agora. Mas 101 anos arderam entretanto. Posso apenas remexer arcas. Tenho ali o meu Eliot. Ali o meu Gato. E o meu Dezembro novo, deserto natalício velho, fulgor vendilhão da carneirada.

Por falda poente de bosque oblíquo,
por aí segue a pessoa angariadora
de linhas a coberto da neve em treva,
recolhidos os animais ao mais silvestre segredo,
deflagrando a lunar granada sem estrelas.

Muito se faz, felizmente, anti-clímax
adentro a campânula do vivente absorto.
Enfim, antes porém isso do que morto.
Que lhe baste ser actor, sem plateia
– ou, melhor, dramaturgo sem actores.

Estas visões fazem mal nenhum,
tenho-as vivido não sem esplendor,
por exemplo quando na camarata da tropa,
no milénio passado, exasperantemente moço
mas de profundo perene luto já & pronto.

A pessoa em encosta de montanha,
monarca desta minéria soledade
– são dela os passos ou são os passos ela?
Não a ela pergunto – nem ao Leitor,
que tudo se embrulha em retórica.

A recompensa é além, é cabana,
reanima-se nela o lume lento,
perfumada de maçãs a prateleira,
de tratados de versometrificação outra,
cá fora a neve tão prata quão papel.

Não é dia de expedir carta,
então de recebê-la muito menos,
deixemo-nos porém de espúrias inquietudes,
às virtudes libemos sem boca abrir sequer.
Sim, isso façamos eu sozinho.

Jaime Eduardo Raposo lê em fato completo na sala de outra casa que só escrevendo-a posso visitar. Assenta-lhe bem o trabalho, medido à minúcia por remoto alfaiate. Se pudesse, diria o nome da mulher que o interpela na véspera, aquando da passagem dele pela Rua dos Sapateiros, ali onde Rodrigues & Reis oficiavam pequenos, leais, suficientes comércios portugueses. Ai Jaime Eduardo, que ao médico foste na 8 de Maio, que cardiologia te terão feito eu não sei. A caminho passas por Manuel Paulo (Vinhos do Lavrador, Petiscos), José Peres (Relógios, Salvas Argênteas), Chino Coimbra (Maçãs, Sabões), Lucílio Virgílio (Louças, Plásticos), Hebreu Atenas (Ágio, Porno). Saiamos-lhe de casa, deixemos só encostada a porta do terraço.

Dezembro começado dominicalmente. Já posso dizer:
Há cinquenta anos & uns trocos, eu-isto-eu-aquilo (…)
Mas há menos do que cinquenta foi que, adentrando a secção livreira da figueirense Casa da Rádio, descobri o Actus Tragicus. Hora boa, essa que tal. 18 de Abril de 1989. Trinta-anos-sete-meses-treze-dias, hoje contados. Também de JMFJ, e no mesmo dia, trouxe para a casa de então O Regresso dos Remadores. Só a 25 de Novembro de 2002 adquiri O Barco Vazio. Os três tomos, todos da bela colecção Forma da Editorial Presença. Reli-os na íntegra ontem & hoje. Não, não estou em perda total – só às vezes & aos bocaditos. Dominicalmente Dezembro etc.

(Chatice não de somenos seria morrer antes de ter vivido. Acontece muito a muito gente, tanto da boa como da mais reles.)

Adormeço para brindar, perdão,
brincar
aos mortos.

*

Não mais vulgarizarei
o ouro, que derradeiro o sei
já, senão
desde sempre.

*

Nem ânsia, por mais vaga, será
osso que atire a cães, esses
jurisprudenciais sacos-de-pulgas
quem nem ler
ladram.

*

A maravilha pode muito bem
estar no verso seguinte, há que
persegui-la sempre, não que
dar por contados os dias a contar.

*

Momento adverso
é o que não dá verso.

*

Cada noite como empresa individual, ancoradouro de barcas imperfeitas, algumas sem estaleiro que as redima, é perigoso embarcar, ainda, nelas. Nem fármacos nem igrejas. O rosto escanhoado sim, as mãos lavadas. Pouquíssimos anos, demasiados dias: e mais noites que dias, verdade. Uma pessoa habitua-se ou habita-se? A pessoa mais pobre é a que nem uma palavra tem para dar. Não compreende se lhe dão uma. É gaja para valorizar a margarina em detrimento do pão.
Não se trata de fazer, um dia.
Trata-se de fazer o dia.
Sim, mesmo de noite – como os bravos padeiros. Ou como esses que vemos aderindo ao gelo mineral sob os viadutos. Parte ética & arte poética: não há que renegar a simplicidade. Faz-se o dia em (p)rosa, a noite em (re)verso. Lavamos o corpo, vitaminamo-nos enquanto as capitais ardem ao frio, tratamo-lo como criança senil que nos interrompe o silabário, morta antes de se acabar no fósforo a chama que o justificava.
Vejo-os assimilando a essência da Cidade, generosamente adensando os avessos das so(m)bras, aninhados em vãos interditos aos bons-costumes & ao turismo.
Agora em verso.

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Canzoada Assaltante