21. Empresa Individual – ou – Pouquíssimos
Anos, Demasiados Dias – ou – Parte Ética & Arte Poética
Domingo, 1 de Dezembro de 2019
Devidamente apontadas ao céu, as
árvores – naves espaciais. Contam por anéis (como Saturno faz) o tempo que consomem
a subir.
Adida fortuna onomástica:
Cagica (Sesimbra, Académica, CUF,
Belenenses). Linha da Académica em visita ao Estádio da Luz, ano 1963 d.C.:
Maló, Curado, Piscas, Torres, Cagica, Rui Rodrigues, Almeida, Teixeira, Gaio,
Rocha, Oliveira Duarte. Ou, de outras, o calmeirão guardião Capela. Faia, do
Barreirense. Péridis. Wilson. Bentes, Abreu, Malícia, Marta. Arrobas, Manuel
Duarte. Américo, Lourenço. Rosales, do Estoril.
Estes nomes palpitam num livro, de
António Cagica Rapaz, intitulado Líbero e
Directo – Setenta e Tal Contos de Futebol (Garrido Editores, Outubro de
2003).
Uma linha da CUF no Estádio dos
Barreiros, dia 8 de Dezembro de 1968: Vítor Cabral (g.r.), Vítor Marques,
Bambo, Pedro, Abalroado, Cagica, Vieira Dias, Capitão-Mor, Monteiro, Arnaldo,
Gomes Ferreira.
Ou então:
Hohenzollern – Saxe – Coburg -
Gotha – para equipa de hóquei-em-patins, falta-vos ’inda o guarda-redes.
Um Guilherme vai morrer ali à
Holanda. Dendroclasta, arboricida massivo, parece. O bracinho esquerdo avariado
desde nascença, isso é certo. Nascer é já em si avaria, velho Guilherme.
Ajudaste a emendar isso, enviando milhões para a morte. Não na tua pátria
(pária dela foste depois, afinal) mas na dos outros: a começar pela Bélgica,
lembra-te enquanto abates arvoredo holandês).
Aqui não mora prussian warlord nenhum. Mora um vagamente-poeta-com-gato. Domingo
todos os dias, parece. Nenhum Tirpitz, nenhum Nelson. Todavia, caixas de
papelão fazem de veras arcas-de-tesouros. Ainda há pouco resgatei de uma The Waste Land, do seguro Eliot. Aqui?
Aqui vai(-se de)morando um gajo que se enternece à visão do gatito que,
adormecido nas pernas, dá às patitas posteriores, correndo talvez atrás do
pássaro que, nesta casa, só em verso.
Baixei os estores, deixando
respiradouros para que aragem não falte neste castelo sucinto. Envolvo-me no
roupão novo, deixo-me ir na abstracção cediça da tepidez. Um Horácio foi avô de
um Henrique, anoto. Tenho chá na garrafa-termos. Tenho um assado no forno. Sou
por vezes riquíssimo – bem mais do que, em princípio, a profissão poética
poderia alvejar, perdão, almejar. Durante as horas vespertinas, ressuscitei
livralhada, aderi a uma não-infeliz ginástica bibliófila. Assim fiz por &
para merecer a noite. Faz hoje 55 anos a minha prima Candita.
Florestal humidade, capitosa
aragem.
Nada me faria perder dela o desejo.
Tripulo a cavalo do verso a
profunda imagem.
Reino sobre so(m)bras, reinado que
não alijo.
Trafalgar, Waterloo, turismo
mortal.
Remoção cadaveresca, viúvas em
barda.
Degradação velocíssima
pancontinental.
Só já a poesia pode pôr-nos a par
da
inelutável folia do global
antropóide.
Está tudo conservado em celuloide.
Não há que enganar, tudo nos
livros.
Em sonhos, por vezes a tinta,
lapijo mortos.
Braços decepados, pés idem &
olhos tortos.
E o bracinho do Wilhelm gozando
co’s vivos.
A 11 de Novembro de 1918, o senhor
meu Pai é nascido há 1-ano-7-meses-1-dia. O Kaiser abdica à força. Ruma
Holanda. Retornar não é, nunca será, viável. O Adolf não lho permitirá. Restam
papéis, estatuetas, medalhas, chávenas esbeiçadas, cacaretarecos da finitude.
Tudo mais (muito mais, francamente) rico do que agora. Mas 101 anos arderam
entretanto. Posso apenas remexer arcas. Tenho ali o meu Eliot. Ali o meu Gato.
E o meu Dezembro novo, deserto natalício velho, fulgor vendilhão da carneirada.
Por falda poente de bosque oblíquo,
por aí segue a pessoa angariadora
de linhas a coberto da neve em
treva,
recolhidos os animais ao mais
silvestre segredo,
deflagrando a lunar granada sem
estrelas.
Muito se faz, felizmente,
anti-clímax
adentro a campânula do vivente
absorto.
Enfim, antes porém isso do que
morto.
Que lhe baste ser actor, sem
plateia
– ou, melhor, dramaturgo sem
actores.
Estas visões fazem mal nenhum,
tenho-as vivido não sem esplendor,
por exemplo quando na camarata da
tropa,
no milénio passado,
exasperantemente moço
mas de profundo perene luto já
& pronto.
A pessoa em encosta de montanha,
monarca desta minéria soledade
– são dela os passos ou são os
passos ela?
Não a ela pergunto – nem ao Leitor,
que tudo se embrulha em retórica.
A recompensa é além, é cabana,
reanima-se nela o lume lento,
perfumada de maçãs a prateleira,
de tratados de versometrificação
outra,
cá fora a neve tão prata quão
papel.
Não é dia de expedir carta,
então de recebê-la muito menos,
deixemo-nos porém de espúrias
inquietudes,
às virtudes libemos sem boca abrir
sequer.
Sim, isso façamos eu sozinho.
Jaime Eduardo Raposo lê em fato
completo na sala de outra casa que só escrevendo-a posso visitar. Assenta-lhe
bem o trabalho, medido à minúcia por remoto alfaiate. Se pudesse, diria o nome
da mulher que o interpela na véspera, aquando da passagem dele pela Rua dos
Sapateiros, ali onde Rodrigues & Reis oficiavam pequenos, leais,
suficientes comércios portugueses. Ai Jaime Eduardo, que ao médico foste na 8
de Maio, que cardiologia te terão feito eu não sei. A caminho passas por Manuel
Paulo (Vinhos do Lavrador, Petiscos), José Peres (Relógios, Salvas Argênteas),
Chino Coimbra (Maçãs, Sabões), Lucílio Virgílio (Louças, Plásticos), Hebreu
Atenas (Ágio, Porno). Saiamos-lhe de casa, deixemos só encostada a porta do
terraço.
Dezembro começado dominicalmente.
Já posso dizer:
– Há cinquenta anos & uns trocos, eu-isto-eu-aquilo (…)
Mas há menos do que cinquenta foi
que, adentrando a secção livreira da figueirense Casa da Rádio, descobri o Actus Tragicus. Hora boa, essa que tal.
18 de Abril de 1989. Trinta-anos-sete-meses-treze-dias, hoje contados. Também
de JMFJ, e no mesmo dia, trouxe para a casa de então O Regresso dos Remadores. Só a 25 de Novembro de 2002 adquiri O Barco Vazio. Os três tomos, todos da
bela colecção Forma da Editorial
Presença. Reli-os na íntegra ontem & hoje. Não, não estou em perda total –
só às vezes & aos bocaditos. Dominicalmente Dezembro etc.
(Chatice não de somenos seria
morrer antes de ter vivido. Acontece muito a muito gente, tanto da boa como da
mais reles.)
Adormeço para brindar, perdão,
brincar
aos mortos.
*
Não mais vulgarizarei
o ouro, que derradeiro o sei
já, senão
desde sempre.
*
Nem ânsia, por mais vaga, será
osso que atire a cães, esses
jurisprudenciais sacos-de-pulgas
quem nem ler
ladram.
*
A maravilha pode muito bem
estar no verso seguinte, há que
persegui-la sempre, não que
dar por contados os dias a contar.
*
Momento adverso
é o que não dá verso.
*
Cada noite como empresa individual,
ancoradouro de barcas imperfeitas, algumas sem estaleiro que as redima, é
perigoso embarcar, ainda, nelas. Nem fármacos nem igrejas. O rosto escanhoado
sim, as mãos lavadas. Pouquíssimos anos, demasiados dias: e mais noites que
dias, verdade. Uma pessoa habitua-se ou habita-se? A pessoa mais pobre é a que
nem uma palavra tem para dar. Não compreende se lhe dão uma. É gaja para
valorizar a margarina em detrimento do pão.
Não se trata de fazer, um dia.
Trata-se de fazer o dia.
Sim, mesmo de noite – como os
bravos padeiros. Ou como esses que vemos aderindo ao gelo mineral sob os
viadutos. Parte ética & arte poética: não há que renegar a simplicidade.
Faz-se o dia em (p)rosa, a noite em (re)verso. Lavamos o corpo, vitaminamo-nos
enquanto as capitais ardem ao frio, tratamo-lo como criança senil que nos
interrompe o silabário, morta antes de se acabar no fósforo a chama que o
justificava.
Vejo-os assimilando a essência da
Cidade, generosamente adensando os avessos das so(m)bras, aninhados em vãos
interditos aos bons-costumes & ao turismo.
Agora em verso.
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