8. Fervor Sim mas Alarido Não
a) Segunda-feira, 4 de Novembro de 2019
Descobri hoje, em aleatória jornada
leitora, que cada hoje é muitos dias.
E foi por causa de ter passado a saber que, além de ser o do nascimento em
Aracataca, Colômbia, do grande Gabriel García Márquez, 6 de Março de 1927 foi
também o dia em que Bertrand Russell proferiu, no South London Branch da
National Secular Society (ali no Battersea Townhall), a palestra, hoje
justamente célebre, Why I Am Not a
Christian.
b) Terça-feira, 5 de Novembro de 2019
O rosto de Jean Seberg é uma das
pérolas da manhã (dita) nova. Outra pérola, outro rosto: o de Joseph Merrick, o
Elephant Man. Acontecem ambos na
minha atenção irrevogavelmente adulta. Tristuras diversas são. Ainda
repercutem. Veios não tão subterrâneos quão isso. Sarah Kane, outro rosto na
manhã moribunda. Aqueles insectos capazes de caminhar à flor da água, vêdes? E
Dorothea Binz? Infinitude de toupeira arquivista – bem o sei. Kim Philby
explicando-se para amnésia futura. Não será hoje que vai ao Batley Variety
tomar umas bebidas valentes com alguém sem nome cristão. Tal Yorkshire é
irreversível. Como, precisamente, a ex-nova manhã. Desmantelou-se sozinha qual
companhia de teatro-de-variedades portátil & portáteis.
Cliff Richard de camisa
azul-escura, óculos-fumados cor-de-chá. Shirley Bassey de blusa cintilante,
folhos discretos. Bruma & maresia segregando-se mutuamente: além, à mão da
lembrança só, que é a redactora. A inocência que se quiser. A Anita Ekberg que
se puder. E quando escrevo Anita Ekberg
– é na maravilha de ter por & para descobrir, eu mesmo, digo, o senhor
Francis Ponge. E. que não demore muito tal empresa, pois que o corpo me não dá
sinais de eternidade, ao avesso do que na nossa comum infância me prometeu. Ou
iludiu, corrijo agora. Natalie Wood & Anouk Aimée valem também. Não no
Lancashire. Não no Sabugal. ~
E então a noite deixa que os rostos
se recatem, resguardados de escrituras, remorsos, quaisquer projectos. Por mim,
preciso de vela nova para a cabeceira. Tratei já da louça, aliás mínima. Não
tenho vela mas tenho muita via: Garrett, Calvino, Saraiva, Tennyson, entre
outros nomes. Nomes como Adolfo, Messias, Pedro Gomes, Vieira Nunes,
Constantino. Tamagnini, Brasfemes, Costa. 1988, ao alto das Quebra-Costas.
1977, no Jamor. 1981, Lagos. 2000, Largo de/do S. Carlos. 1994, Matosinhos.
1986, Braga. Santiago do Cacém, 1987. 1970, rua da Sofia. Não sei por vezes que
fazer de tanta relíquia. Então a noite
etc.
Ainda: um cavalheiro chamado
Machado, patrão de um Luís & de uma Adelina; dos três, sei estarem mortos
dois, sendo forte a probabilidade de o terceiro também já por cá não andar. A
Machado, devo nada. Com Luís, entendi-me quanto a novidades. A Adelina, devo
uma boa recordação de cariz norte-americano.
c) Quarta-feira, 6 de Novembro de 2019
Nada de Jean Seberg, hoje. Hoje,
sim, cem anos do nascimento da poeta Sophia de M.B.A. E escrever hoje à guisa de grande absoluta legítima
verdade – irrisória pretensão. Sophia legou muitos muito bons versos. Ficam no
éter. Espargem claridade. São a verdade de si mesmos. Bem para lá (cá) do corpo
já imprestável que os gerou. Lembra-me agora al-gures Al Berto. Deu as voltas dele. Dar voltas não tem cura. Já
consigo cansar-me de me cansar. Também derivo no que vivo. Este corpo é quanto
me sobra da nascença – volúvel, volátil, precária, preclara relíquia. Março de
1986, dia 1 – li Cortázar, recordo isso tão bem. Faltavam – sei-o
p’ra-sempre-agora – 2-meses-22-dias: e não há mas, nem mais, nem adiante. Nada a fazer & tudo por fazer. Sim.
Mais gente sabe o respectivo signo
horoscópico do que pessoas sabem o próprio tipo de sangue. Galáxias de idiotia.
Oklahomas de acéfalos. Sedentária acefali’diotia geral. Brasis da mais
pindérica anorexia mental – e moral, até. Aqui sim, adiante.
Sidónio Barreto, nosso vizinho,
cultivava o mutismo mais inexorável. Parecia saber coisas siderais que o
encerravam em beleza. Pedro Verde veio umas poucas vezes tomar chá com ele na
companhia de Adão Formiga. Ricardo Recto, penso que não tanto. Quim-Tó Lua?
Sim, visitou Sidónio. Tal como João Bom-Homem. Esperai – e João Entassobio.
Mais: Ronaldo Jaime Deus; Jaime Morfilho; Leonardo Ferrado; Tiago Belga; Afonso
Cerqueira. E Carlos Artur Muros. Este povo todo fantasmand’andando por aí,
menos Adão, talvez. Novembro os guarda por trinta dias. Talvez mais, se eu
ainda puder.
Difamaram José Q. – e pronto,
abrasaram-no sem retorno. Durante tal, João Castor abandona o sanatório no
exacto ano do nascimento daquele que viria a ser, deste, o último acamado:
Alberto, filho de José & Joaquina. Deolinda morreu tenrinha, por-aí-Tempo.
Itinerários polívocos, por assim dizer. Sem manual-de-instruções, o
atirador-furtivo tripula a espera insensata. Sucessão, por assim dizer
hieroglífica, de árvores em majestade inabordável. Andorinhas & cegonhas:
xadrez puríssimo em tabuleiro de arrozais. Um animal dormindo enquanto Jorge,
no Alentejo, felizmente desconhece o que (des)faz Luiza em Lisboa. O major
Proença sepulta a mulher na planura natal, ao todo oito pessoas na cerimónia,
padre, sacristão & gatos-pingados incluídos.
David Gil Moura & Rogério Águas
consolidam papelaria (D.) & livraria (R.) em pujante prosperidade. Pensada
fortuna os irmana. Encerram sempre de 30 de Dezembro a 7 de Janeiro. David tem
amada em Viena de Áustria, é no Prater que ela o recebe. Rogério leva a mulher
com quatro filhos para a Pensão Gerez, em Adelaide, hospedaria de minhotos há
décadas radicados no continente austral.
Um que era João Perfume, atónito
tonito coitado presa de putas ditas finas, acabou exilado entre roseiras menos
húmidas & espinhosas do que elas.
Acendiam a luz crudelíssima do
salão quando o baile acabava. Era pela matinée
dominical. Lixos humildes pontuavam o soalho há muito por encerar. Era afinal
tudo no âmbito da estrita paroquialidade. Jazz sem dédalo. Salão vácuo, não o
varrerão antes da seguinte sexta-feira, noite do torneio de sueca. Palmira
Carrofilho veio a horas a buscar o homem dela. Tragédia simples. Não há
anfiteatro nem coliseu para isto.
Vêde aquilo dos filmes
pornográficos: muita acção, história nenhuma.
Desde-que-paguem-certinho-é-deixar-andar.
Tânia Nicola, morena, solar, amiga
de Germana Adão, clara, verde. Filhas ambas de homens bem-postos na
administração-pública. Não tenho rasto das mães. Chuvada intensa na
quarta-feira em que a solar & a verde vão ao cinema do hipercentro. Antes
do filme, jantam saladas nos comedouros de néon ofuscante. Conversam miudezas
pré-gravadas, dessas que alguma grande-literatura não enjeita. O filme aborda
os caminhos criminais de Eduardo Duarte Maio, o taxista matador de prostitutas
da zona litoral-oeste. A história de Maio perturba-as. Decidem não voltar de
táxi a casa. Vem busca-las a madrasta de Tânia, enfermeira desenxabida com
fúria de viver. É ex-mulher de um histrião da inspecção sanitário-alimentar. No
dia seguinte, ninguém se lembra de ninguém.
E.D. Maio foi achado & detido a
meio de uma manhã até por tal perfeita. O meretricida comprava legumes no
mercado municipal, nem deu por que o caçavam sem estrépito, fervor sim mas
alarido não. O inspector judiciário era Tomás Alano Esteves. No filme, o
guionista chamou-lhe João Robles
Aguafilho. Ao assassino, Afonso Pedro Sanches. O filme que Germana & Tânia
foram ver não foi a Cannes, Berlim ou Veneza. Maio ou Menos ficou.
(“Da literatura piegas nos livre Deus, sobre todas as coisas.” –
isto é Garrett, em Lisboa, Janeiro de 1853, pela introdução que fez a Fábulas e Contos.)
Quanta veracidade ensejo, quanta
ficciono. É na calma da casa que a noite dá já por tomada. Vai cegarregando o
não-lento relógio. Na cozinha, urdi há pouco o caldo noctívago, não exagerei o
azeite, guardado tinha o bocado de ontem, pão ainda se chama. Agora que o
conto, isto está mais no contar do que no contado. Quando respiro, de piscos
olhos vogando pelos muros do quarto, inspiro outros nomes, cujas sílabas fremem
ao favónio do-que-vier.
Mena Calboa, jóia de moça
atristurada que gostava de alongar a sombra ali por raias da Torre de Belém,
onde a luz a tudo decreta a um só tempo, bendita e bem dita seja Lisboa.
Namorou-a um que era de Almada, Saul Martim, rapaz da Mercante que não preava
literaturas. Estiveram casados dois anos, três juntos, saiu sem dor cada um
para seu lado. Ela voltou para casa dos pais, ali ao Campo Grande. Ele, já não
sei, ainda não escrevi.
Para talhante na Alemanha foi
Cristino Vergel em busca de salario que num portugal-futuro lhe telhasse casa.
Levou nada e pouco trouxe. Amargou insolências, mais nacionais que socialistas,
ali por bandas do lago Konstanz, ou assim coiso. Assisou-se, amandou a Alemanha
para o lado do cu, albergou-se na Suíça francófona, tão-cedo não volta.
Volto eu – à janela-porta de vidro
alto, mirando o presépio ínfimo dos bairros em que ricos não moram. Nesta
(com)postura tenho pensado muito em coisas livrescas, aquele médico moço em
Monsanto, aquele novel professor em Évora, ou seja, Namora aquele &
Vergílio este, apetecendo-me reler, ao cabo de tantos-mas-tantos anos, Seara de Vento de Manuel da Fonseca, A Lã e a Neve de Ferreira de Castro, O País das Uvas de Fialho de Almeida, In Illo Tempore de Trindade Coelho.
Reler com esta nova idade de velho que é a minha e de quem sou. E Alexandre Bissexto de Armando Silva
Carvalho. E o que (ainda) tiver de João Miguel Fernandes Jorge. Sou leal a
prazeres antigos, nem sempre vetustade se volve vinagre.
Retorno sem ânsias à poltrona,
retomo o meu taful Garrett, tão bem escreveu o janota, morreu sem chegar a
velho (ou antes: morreu com a idade que é a minha agora; já agora também, a
mesma conta final de Eça – 55), penso mais nisso do que talvez deva,
Ruy-Belo-45-anos, Fernando-Pessoa-47, de Sebastião da Gama nem é bom falar, nem
de Cristovam Pavia, meus pobres Cesário & Anto Nobre. Sim, Mário Botas.
Sim, livra-me da pobreza este viver
em índice-remissivo. É remediado tesouro que ao colo me aconchega.
Na lisbonense Rua Carlos Mardel
vivia uma magrita da família Félix da Praça do Chile, chamavam-lhe Kia por
diminutiva ternura, sei que era Lúcia como aquela bisonha das fraudaparições da
Cova. Lembrei-me de Kia por me ter lembrado de (mais) livralhada. Lúcia Félix
venerava Al Berto & Nick Cave, correspondência aliás coerente, artista de
idêntico lirismo, acho eu, que também gosto dos dois. Isto é matéria do tempo
em que eu subia – a pé sempre, como sempre & para sempre – até o cemitério
do Alto de S. João pela Morais Soares. Muito andei eu. Fiz Xabregas-Chelas,
Prazeres-Areeiro, Telheiras-Alcântara, S. Bento-Santana. Praça do Chile, Ismael
apresentou-me a Kia. Simpatizámo-nos, falámos logo de Cave & de Al B.
Quando ela me soube nascido em Coimbra, saiu-se logo com – “Aquele homem lindo também”. Eu redargui que – “Sim, o Al Berto por lá nasceu em 1948, mas
fez vida por outros mundos, em Janeiro de ’92 foi lá ler poesia mas deu-se mal
com os imbecis ruidosos da plateia, mandacaralhou-os e foi-se embora, nem sei
se alguma vez lá voltou.” Ela teve pena. Al Berto morreu pouquíssimos anos
depois, dizem que daquilo dos
homohomens, não sei, não quero, nem preciso de saber. Ainda a vi algumas vezes,
aliás poucas, uma das vezes foi por ela ser bilheteira da CP. Espuma, não
pedra, tudo.
Já agora que, por assim dizer,
ulissiponho lembranças de há vintes & tais anos, havia uma Rosa cega que
pela esmola cantava na Rua ou Augusta ou Áurea, a voz dela entrava no coração
distraído e contraía-o logo, macerava a pessoa que não pede & só passa
& vê a luz. Havia mais bípede mundo em Lisboa. No Carmo, um sósia de
Estaline que era reformado da estiva; no Camões, um dandy que ciciava indecênciazinhas a todo o rabo-de-saia dos 7 aos 77 como o Tintin; no Areeiro, um maluquito inofensivo era o clone estampado
do Ciccio Ingrassia, aquele do Voglio una
donnaaaa! no filme do Fellini, este Ciccio fardava-se à cobradora da
Carris, o homem do Café dava-lhe a sopa diária; na João XXI, a solidão estalava
ao sol como lacraus de madeira; as Amoreiras já então sofriam daqueles
cagalhões arquitectónicos do coiso; na Pontinha, um moço de pastelaria
doudejava innuendos gayzolas a todo o
cós-de-calça dos 8 aos 88 como o Tintin
um ano depois. Nem bom nem mau de mais, tal meu tempo – passou, não volta, puta-que-o-pariu.
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