26/11/2019

CADERNETA PRETA - 8






8. Fervor Sim mas Alarido Não

a) Segunda-feira, 4 de Novembro de 2019



Descobri hoje, em aleatória jornada leitora, que cada hoje é muitos dias. E foi por causa de ter passado a saber que, além de ser o do nascimento em Aracataca, Colômbia, do grande Gabriel García Márquez, 6 de Março de 1927 foi também o dia em que Bertrand Russell proferiu, no South London Branch da National Secular Society (ali no Battersea Townhall), a palestra, hoje justamente célebre, Why I Am Not a Christian.



b) Terça-feira, 5 de Novembro de 2019



O rosto de Jean Seberg é uma das pérolas da manhã (dita) nova. Outra pérola, outro rosto: o de Joseph Merrick, o Elephant Man. Acontecem ambos na minha atenção irrevogavelmente adulta. Tristuras diversas são. Ainda repercutem. Veios não tão subterrâneos quão isso. Sarah Kane, outro rosto na manhã moribunda. Aqueles insectos capazes de caminhar à flor da água, vêdes? E Dorothea Binz? Infinitude de toupeira arquivista – bem o sei. Kim Philby explicando-se para amnésia futura. Não será hoje que vai ao Batley Variety tomar umas bebidas valentes com alguém sem nome cristão. Tal Yorkshire é irreversível. Como, precisamente, a ex-nova manhã. Desmantelou-se sozinha qual companhia de teatro-de-variedades portátil & portáteis.
Cliff Richard de camisa azul-escura, óculos-fumados cor-de-chá. Shirley Bassey de blusa cintilante, folhos discretos. Bruma & maresia segregando-se mutuamente: além, à mão da lembrança só, que é a redactora. A inocência que se quiser. A Anita Ekberg que se puder. E quando escrevo Anita Ekberg – é na maravilha de ter por & para descobrir, eu mesmo, digo, o senhor Francis Ponge. E. que não demore muito tal empresa, pois que o corpo me não dá sinais de eternidade, ao avesso do que na nossa comum infância me prometeu. Ou iludiu, corrijo agora. Natalie Wood & Anouk Aimée valem também. Não no Lancashire. Não no Sabugal. ~

E então a noite deixa que os rostos se recatem, resguardados de escrituras, remorsos, quaisquer projectos. Por mim, preciso de vela nova para a cabeceira. Tratei já da louça, aliás mínima. Não tenho vela mas tenho muita via: Garrett, Calvino, Saraiva, Tennyson, entre outros nomes. Nomes como Adolfo, Messias, Pedro Gomes, Vieira Nunes, Constantino. Tamagnini, Brasfemes, Costa. 1988, ao alto das Quebra-Costas. 1977, no Jamor. 1981, Lagos. 2000, Largo de/do S. Carlos. 1994, Matosinhos. 1986, Braga. Santiago do Cacém, 1987. 1970, rua da Sofia. Não sei por vezes que fazer de tanta relíquia. Então a noite etc.

Ainda: um cavalheiro chamado Machado, patrão de um Luís & de uma Adelina; dos três, sei estarem mortos dois, sendo forte a probabilidade de o terceiro também já por cá não andar. A Machado, devo nada. Com Luís, entendi-me quanto a novidades. A Adelina, devo uma boa recordação de cariz norte-americano.



c) Quarta-feira, 6 de Novembro de 2019



Nada de Jean Seberg, hoje. Hoje, sim, cem anos do nascimento da poeta Sophia de M.B.A. E escrever hoje à guisa de grande absoluta legítima verdade – irrisória pretensão. Sophia legou muitos muito bons versos. Ficam no éter. Espargem claridade. São a verdade de si mesmos. Bem para lá (cá) do corpo já imprestável que os gerou. Lembra-me agora al-gures Al Berto. Deu as voltas dele. Dar voltas não tem cura. Já consigo cansar-me de me cansar. Também derivo no que vivo. Este corpo é quanto me sobra da nascença – volúvel, volátil, precária, preclara relíquia. Março de 1986, dia 1 – li Cortázar, recordo isso tão bem. Faltavam – sei-o p’ra-sempre-agora – 2-meses-22-dias: e não há mas, nem mais, nem adiante. Nada a fazer & tudo por fazer. Sim.

Mais gente sabe o respectivo signo horoscópico do que pessoas sabem o próprio tipo de sangue. Galáxias de idiotia. Oklahomas de acéfalos. Sedentária acefali’diotia geral. Brasis da mais pindérica anorexia mental – e moral, até. Aqui sim, adiante.

Sidónio Barreto, nosso vizinho, cultivava o mutismo mais inexorável. Parecia saber coisas siderais que o encerravam em beleza. Pedro Verde veio umas poucas vezes tomar chá com ele na companhia de Adão Formiga. Ricardo Recto, penso que não tanto. Quim-Tó Lua? Sim, visitou Sidónio. Tal como João Bom-Homem. Esperai – e João Entassobio. Mais: Ronaldo Jaime Deus; Jaime Morfilho; Leonardo Ferrado; Tiago Belga; Afonso Cerqueira. E Carlos Artur Muros. Este povo todo fantasmand’andando por aí, menos Adão, talvez. Novembro os guarda por trinta dias. Talvez mais, se eu ainda puder.

Difamaram José Q. – e pronto, abrasaram-no sem retorno. Durante tal, João Castor abandona o sanatório no exacto ano do nascimento daquele que viria a ser, deste, o último acamado: Alberto, filho de José & Joaquina. Deolinda morreu tenrinha, por-aí-Tempo. Itinerários polívocos, por assim dizer. Sem manual-de-instruções, o atirador-furtivo tripula a espera insensata. Sucessão, por assim dizer hieroglífica, de árvores em majestade inabordável. Andorinhas & cegonhas: xadrez puríssimo em tabuleiro de arrozais. Um animal dormindo enquanto Jorge, no Alentejo, felizmente desconhece o que (des)faz Luiza em Lisboa. O major Proença sepulta a mulher na planura natal, ao todo oito pessoas na cerimónia, padre, sacristão & gatos-pingados incluídos.

David Gil Moura & Rogério Águas consolidam papelaria (D.) & livraria (R.) em pujante prosperidade. Pensada fortuna os irmana. Encerram sempre de 30 de Dezembro a 7 de Janeiro. David tem amada em Viena de Áustria, é no Prater que ela o recebe. Rogério leva a mulher com quatro filhos para a Pensão Gerez, em Adelaide, hospedaria de minhotos há décadas radicados no continente austral.

Um que era João Perfume, atónito tonito coitado presa de putas ditas finas, acabou exilado entre roseiras menos húmidas & espinhosas do que elas.

Acendiam a luz crudelíssima do salão quando o baile acabava. Era pela matinée dominical. Lixos humildes pontuavam o soalho há muito por encerar. Era afinal tudo no âmbito da estrita paroquialidade. Jazz sem dédalo. Salão vácuo, não o varrerão antes da seguinte sexta-feira, noite do torneio de sueca. Palmira Carrofilho veio a horas a buscar o homem dela. Tragédia simples. Não há anfiteatro nem coliseu para isto.

Vêde aquilo dos filmes pornográficos: muita acção, história nenhuma. Desde-que-paguem-certinho-é-deixar-andar.

Tânia Nicola, morena, solar, amiga de Germana Adão, clara, verde. Filhas ambas de homens bem-postos na administração-pública. Não tenho rasto das mães. Chuvada intensa na quarta-feira em que a solar & a verde vão ao cinema do hipercentro. Antes do filme, jantam saladas nos comedouros de néon ofuscante. Conversam miudezas pré-gravadas, dessas que alguma grande-literatura não enjeita. O filme aborda os caminhos criminais de Eduardo Duarte Maio, o taxista matador de prostitutas da zona litoral-oeste. A história de Maio perturba-as. Decidem não voltar de táxi a casa. Vem busca-las a madrasta de Tânia, enfermeira desenxabida com fúria de viver. É ex-mulher de um histrião da inspecção sanitário-alimentar. No dia seguinte, ninguém se lembra de ninguém.

E.D. Maio foi achado & detido a meio de uma manhã até por tal perfeita. O meretricida comprava legumes no mercado municipal, nem deu por que o caçavam sem estrépito, fervor sim mas alarido não. O inspector judiciário era Tomás Alano Esteves. No filme, o guionista chamou-lhe João  Robles Aguafilho. Ao assassino, Afonso Pedro Sanches. O filme que Germana & Tânia foram ver não foi a Cannes, Berlim ou Veneza. Maio ou Menos ficou.

(“Da literatura piegas nos livre Deus, sobre todas as coisas.” – isto é Garrett, em Lisboa, Janeiro de 1853, pela introdução que fez a Fábulas e Contos.)

Quanta veracidade ensejo, quanta ficciono. É na calma da casa que a noite dá já por tomada. Vai cegarregando o não-lento relógio. Na cozinha, urdi há pouco o caldo noctívago, não exagerei o azeite, guardado tinha o bocado de ontem, pão ainda se chama. Agora que o conto, isto está mais no contar do que no contado. Quando respiro, de piscos olhos vogando pelos muros do quarto, inspiro outros nomes, cujas sílabas fremem ao favónio do-que-vier.

Mena Calboa, jóia de moça atristurada que gostava de alongar a sombra ali por raias da Torre de Belém, onde a luz a tudo decreta a um só tempo, bendita e bem dita seja Lisboa. Namorou-a um que era de Almada, Saul Martim, rapaz da Mercante que não preava literaturas. Estiveram casados dois anos, três juntos, saiu sem dor cada um para seu lado. Ela voltou para casa dos pais, ali ao Campo Grande. Ele, já não sei, ainda não escrevi.

Para talhante na Alemanha foi Cristino Vergel em busca de salario que num portugal-futuro lhe telhasse casa. Levou nada e pouco trouxe. Amargou insolências, mais nacionais que socialistas, ali por bandas do lago Konstanz, ou assim coiso. Assisou-se, amandou a Alemanha para o lado do cu, albergou-se na Suíça francófona, tão-cedo não volta.

Volto eu – à janela-porta de vidro alto, mirando o presépio ínfimo dos bairros em que ricos não moram. Nesta (com)postura tenho pensado muito em coisas livrescas, aquele médico moço em Monsanto, aquele novel professor em Évora, ou seja, Namora aquele & Vergílio este, apetecendo-me reler, ao cabo de tantos-mas-tantos anos, Seara de Vento de Manuel da Fonseca, A Lã e a Neve de Ferreira de Castro, O País das Uvas de Fialho de Almeida, In Illo Tempore de Trindade Coelho. Reler com esta nova idade de velho que é a minha e de quem sou. E Alexandre Bissexto de Armando Silva Carvalho. E o que (ainda) tiver de João Miguel Fernandes Jorge. Sou leal a prazeres antigos, nem sempre vetustade se volve vinagre.
Retorno sem ânsias à poltrona, retomo o meu taful Garrett, tão bem escreveu o janota, morreu sem chegar a velho (ou antes: morreu com a idade que é a minha agora; já agora também, a mesma conta final de Eça – 55), penso mais nisso do que talvez deva, Ruy-Belo-45-anos, Fernando-Pessoa-47, de Sebastião da Gama nem é bom falar, nem de Cristovam Pavia, meus pobres Cesário & Anto Nobre. Sim, Mário Botas.
Sim, livra-me da pobreza este viver em índice-remissivo. É remediado tesouro que ao colo me aconchega.

Na lisbonense Rua Carlos Mardel vivia uma magrita da família Félix da Praça do Chile, chamavam-lhe Kia por diminutiva ternura, sei que era Lúcia como aquela bisonha das fraudaparições da Cova. Lembrei-me de Kia por me ter lembrado de (mais) livralhada. Lúcia Félix venerava Al Berto & Nick Cave, correspondência aliás coerente, artista de idêntico lirismo, acho eu, que também gosto dos dois. Isto é matéria do tempo em que eu subia – a pé sempre, como sempre & para sempre – até o cemitério do Alto de S. João pela Morais Soares. Muito andei eu. Fiz Xabregas-Chelas, Prazeres-Areeiro, Telheiras-Alcântara, S. Bento-Santana. Praça do Chile, Ismael apresentou-me a Kia. Simpatizámo-nos, falámos logo de Cave & de Al B. Quando ela me soube nascido em Coimbra, saiu-se logo com – “Aquele homem lindo também”. Eu redargui que – “Sim, o Al Berto por lá nasceu em 1948, mas fez vida por outros mundos, em Janeiro de ’92 foi lá ler poesia mas deu-se mal com os imbecis ruidosos da plateia, mandacaralhou-os e foi-se embora, nem sei se alguma vez lá voltou.” Ela teve pena. Al Berto morreu pouquíssimos anos depois, dizem que daquilo dos homohomens, não sei, não quero, nem preciso de saber. Ainda a vi algumas vezes, aliás poucas, uma das vezes foi por ela ser bilheteira da CP. Espuma, não pedra, tudo.

Já agora que, por assim dizer, ulissiponho lembranças de há vintes & tais anos, havia uma Rosa cega que pela esmola cantava na Rua ou Augusta ou Áurea, a voz dela entrava no coração distraído e contraía-o logo, macerava a pessoa que não pede & só passa & vê a luz. Havia mais bípede mundo em Lisboa. No Carmo, um sósia de Estaline que era reformado da estiva; no Camões, um dandy que ciciava indecênciazinhas a todo o rabo-de-saia dos 7 aos 77 como o Tintin; no Areeiro, um maluquito inofensivo era o clone estampado do Ciccio Ingrassia, aquele do Voglio una donnaaaa! no filme do Fellini, este Ciccio fardava-se à cobradora da Carris, o homem do Café dava-lhe a sopa diária; na João XXI, a solidão estalava ao sol como lacraus de madeira; as Amoreiras já então sofriam daqueles cagalhões arquitectónicos do coiso; na Pontinha, um moço de pastelaria doudejava innuendos gayzolas a todo o cós-de-calça dos 8 aos 88 como o Tintin um ano depois. Nem bom nem mau de mais, tal meu tempo – passou, não volta, puta-que-o-pariu.   






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Canzoada Assaltante