Cigarrelvas
De irregulares mas constantes tempos a tempos, sofro de um
bom, benigno, benévolo e benfazejo convite para almoçar. Vem o convite de um
destes três rapazes: ou do Artur, ou do Leonel, ou do Licínio. Somos
momentaneamente felizes os quatro: o Artur, que é bancário, o Leonel, que
oficia e revê contas, o Licínio, que é administrador hospitalar, e eu, que não
faço nada.
Ao reencontro, abraçamo-nos com mais ou menos discreta
efusão, assentamos as nalgas nos lugares certos (no sentido dos ponteiros do
relógio, Leonel, Licínio, eu, Artur) e começamos logo a insultar-nos uns aos
outros com a maior brandura deste mundo a propósito do vinho que há-de ser, se
as azeitonas prestam ou não, se o queijo de Idanha é ou não melhor do que o
endógeno do Rabaçal, se a empregada de mesa marchava ou não marchava e com qual
de nós.
Lautodeleitamo-nos de seguida com algum monumental cozido,
alguma escabrosa feijoada ou, hélas!,
alguma delicada cabeça de corvina grelhada cómilfô.
A conversa, natural e inapelavelmente, deriva de imediato para os três únicos
assuntos possíveis a quatro almoçadores já maduros e já outonais: a) gajas; b)
futebol; c) Relvas.
Quanto a a), já se sabe: mais é o ladrar do que o morder.
Quanto a b), que o Proença árbitro lá teve o merecido
prémio de roubar tanto o Benfica e que o Cristiano Ronaldo é que come tudo o
referido em a).
Quanto a c), o pio pia mais fino e o fio fia mais a pino:
é que, na generalidade, o plenário afina pelo diapasão de o Relvas desafinar
tudo quanto nos ensinaram que era o fado.
Particularizando: o Relvas matou, pela segunda e última e
derradeira e definitiva e perpétua e vita-mortalícia vez, o Monsieur de La
Fontaine.
Monsieur quem? De La Fontaine, o célebre e celebrado autor
de fábulas imortais como a da Cigarra e da Formiga (autor ou recontador,
aceitando que a história original pertence a Esopo). E matou-o porquê? Matou-o
porque demonstrou que, afinal, a Formiga não tinha razão nenhuma, que trabalhar
todo o Verão da existência para ter que comer no Inverno da vida não leva a
lado nenhum; e porque a Cigarra é que a leva direita, só tocando e cantando em
vez de andar por aí armada em parva a vergar a mola e não cuidando do honesto
estudo, nem da invernia, nem da aposentação, nem do final desamparo minuto a
minuto (des)contado desde que se nasce.
Em termos de b), portanto, o c) dá nisto: La Fontaine, 0 –
Relvas, 1.
Acho que não preciso de esclarecer os meus leitores:
sabeis bem do que estou a falar, bastando-me apontar-vos o que o Negócios Online publicou terça-feira
passada. Isto: “Miguel Relvas viu o seu currículo valorizado depois de ter transmitido à
Universidade Lusófona que tinha sido presidente da assembleia-geral da
Associação de Folclore da Região de Turismo dos Templários, entre outros
elementos do seu percurso profissional.”
Acabado o almoço, o Artur vai trabalhar,
o Leonel vai trabalhar, o Licínio vai trabalhar e eu, que não faço nada, venho
para o café da Rosa e “arrelvo” uma crónica que, se não me dá para o cigarro,
dá de cigarra.
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