© Henrique Medina (18 de Agosto de 1901, Porto - 30
de Novembro de 1988)
Pessoa em carta de Lisboa, 5 de Janeiro de
1914, a Teixeira de Pascoaes:
Passo
a vida a adiar tudo – e para quando?
*
O que mais surdamente pretendo – é não
prota/nem/anta/gonizar o livro que, queira-o ou não, sou. Agonizar também não
quero. Ambiciono a paz e a indiferença – mais o que resulta da fusão de ambas.
Quero muito isto: ficar escrito em paridade com o inefável e o redundante. Ao
cimo, enfim, duas datas no peito de mármore. Ao fundo, um rumor de raízes
obstinadas, voluntariosos vermes e meia-dúzia de versos justificando as ossadas
e as surdas pretensões que nutri em vida.
*
Trabalho
ora com bons materiais: perfilados como de moedas, os rostos das pessoas. A
economia delas: o que gastam sobre a mesa, se sim ou não arranjaram as unhas a
pagar, o calçado que as leva e traz, os óculos e as minuciosas parafernálias
afins. São estas fragmentações que me dão trabalho – e eu nunca voltei o rosto
ao serviço.
*
A felicidade é compósita, é elementar a
tristeza. (Penso isto mesmo.)
*
Outras vezes, acode-me desejar compor os
versos das canções que novas Sereias cantassem para desespero novo de novos
Ulisses.
*
Que poderia ser isto, minhas filhas, em
nosso redor
– senão o manto-de-mágico das estrelas no
veludo tão alto da Noite que cruzais dormindo em transes de açúcar?
– senão a bondade infinita dos olhos dos
cães e das vacas e das mulheres que os homens amam para que filhos e filhas?
– senão três, quatro árvores atoalhando de
sombra de escuro linho a clara relva que grita verdes?
– senão um homem banal a escrever versos de
domingo no Café de todos os dias as noites todas pensando nas filhas?
*
Além, minha cabeça adentro, os legos
humildes do casario ao colo da serra: como crianças de cal, cabelo vermelho,
olhos que o sol doura como a janelas. De que para não precisar de ser feliz
preciso? De coisas cabeça afora. Mas: impõem-se os recados gráficos de
cercanias a que falta um centro – como se a S. Martinho do Bispo e a Lordemão
faltasse, centrípeta, a Torre da Universidade.
*
Vai Junho acabando. Outras coisas vão
começando. Amanhã, reabre a casa-de-pasto Viaduto. Ontem, falei um pouco como
pessoas que não eram eu. Na cama, sentia os carros subindo a Avenida. Hoje é
domingo. No Nosso, a vozearia de um aldeão alcoolizado (marca feirante), de tez
enegrecida pelo courato do esterco, incomoda. Não é o álcool dele que incomoda.
É ele. Agora ladra que é de Figueiró dos Vinhos. O pessoal a ver o
Argentina-México e o fulano a etilizar o cenário. (A propósito, e aos 25m da
primeira parte, injustiça arbitral: golo de Tevez em fora-de-jogo conta na
mesma.) O tição bebedolas, Dieu grâce!, foi-se embora. Resta, ainda assim, um
maduro parvalhóide que noutro dia (durante o jogo Espanha, 2 – Chile, 1) por
aqui apareceu estupidamente com uma estúpida vuvuzela. Ainda cornetou aquela merda, mas impuseram-lhe respeito.
Hoje, está sem a corneta merdosa que o marketing do Mundial sul-africano criou,
mas é como se tudo o que diz e vocifera fosse vuvuzelado na mesma. Amanhã conta
28, este Junho que quando quer arde, quando não quer emana frescuras quase
frias. Penso na minha Mãe. Na cama, como quando fez os filhos e como quando
(n)os pariu. Por estes dias, tem ela, do lado esquerdo, a Vida deitada; do
direito, deitada a Inominável. E eu, que tenho quanta saúde não mereço, faço
por ler livros, por escrever um e por não andar por essas ruas soliloquando
gestos de doidinho letrado. Vai a Mãe acabando: que me interessar pode o começo
de outras coisas?
*
(No frigorífico, restos de sopa de
feijão-verde e de esparguete com calamares. Julgo que uma sobra de creme de
ervilhas também. Mortadela, ainda. As verduras acabaram, os pickles também.
Apetece-me peixe com batatas cozidas, mas não há alho para benzer esse
casamento do mar com a terra. Quando finalmente for à mercearia, hei-de
convocar: uma lata de metades de pêssego em calda; um pacote de margarina e
outro de banha de porco; um frasco de espargos e outro de cebolinhas em
vinagre; tomates e agrião; mais batatas; peixe; carne de porco salgada; leite
condensado, uma latita das pequenas para turvar o chá; dois pares de palmilhas
para as sapatas; uns chinelos de borracha como aqueles com que os brasileiros
já saem calçados das cavas uterinas das mães; pão-de-forma ensacado às fatias;
alho e cebola e tomate com fartura; e um lápis.)
*
Pessoa em carta a Armando Cortes-Rodrigues,
datada de Lisboa, 4 de Outubro de 1914:
Há
dias passava eu de carro na Avenida Almirante Reis. Levantando os olhos por
acaso, leio no cabeçalho de uma loja: Farmácia A. Caeiro.
*
Como o que ontem fomos o não sabemos já,
desconhecemos o que seremos no amanhã que
será.
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