38. ALICE PROCURA DONO
Coimbra, domingo, 11 de Julho de 2010
Às sete da manhã, as ruas de Coimbra são mais minhas ainda que de costume. A um domingo, então, chega a ser avassalador, eu tão dono e senhor de nada, senão do ar que respiro e das solas que gasto. No chão, um fragmento de papel:
ALICE PROCURA DONO
O resto do anúncio desapareceu. Alguém que queria dar uma cadela ou uma gata com nome de gente. País das maravilhas, o nosso, onde até as alices são de borla.
O calor do princípio da semana passada deu-nos tréguas. Faz um tempo bom para ser isto: um príncipe deserdado, caminheiro, incondicional e lírico.
Recebo as frases, às vezes de maciça assentada. Chegam-me já buriladas, fazem-me quase feliz, a páginas tantas. Ando por aqui, estou vivo (estou vivo?), filtro os urdumes prosaicos da Realidade da idade real do Mundo, seja ela quanta for, seja ele quanto for.
Tenho de: ir ver a minha Mãe ao lar clínico onde doravante ela exerce a sua solidão descomunal, ir ao Rio e ao Mar, acabar a leitura do Pedro Dias, acabar a leitura daquele número de O Ponney, preparar o outono da minha vida.
Tudo é muito belo, muito grave é tudo. Sinto coisas: lances oblíquos, bolas de borracha ecoando infâncias de pátio, olhos de uma higiene magoada, mulheres sassaricando como bandeiras ao vento mais alto, sinto as aves urbanas da minha terra, melros, rolas, caudas-de-príncipe, pardais, pombas, patos, mulheres-bandeiras, sim, eu sinto e quase não minto. Pretendo tão-só não ser malfazejo para ninguém. Nunca virar, no entanto, a cara ante quem não presta, quem é nocivo, quem dissemina a putrefacção cancerígena, quem não lê Cesário Verde.
(...)
Terá Alice já dono, entretanto?
*
O Quarto-Casa tem uma cama, duas mesas pequenas, três cadeiras, meia-dúzia de livros, um candeeiro. É uma Nave, a nave em que viajo no continuum Espaço-Tempo. Dá para a rotunda relvada onde os patos vicejam. É onde (e de onde me) recolho (de) as palavras de cada dia. Sento-me ante a máquina e transcrevo. Recomponho na máquina cada dia. Não é um onanismo. É a silvicultura que posso. É ser Alice.
*
Barcos, como nenúfares de madeira, coalham
a marina já sem piratas, só tainhas.
Os ansiosos corações, é no mar que trabalham.
E as noites são régias – e as manhãs, rainhas.
Aquele homem é pobre, perdeu-se da mulher.
Agora anda ao sargaço, pode ser que morra.
Não a outra deseja, não a outra ele quer.
E não há quem lhe valha, nem quem o socorra.
Sou o que s’avenida ao longo do cais.
Sou quem o redige, sou seu mesmo arrais.
Sou o das gaivotas, eu quero um anis.
Às vezes não venho e outras não vou.
Sou a velha tainha, é isso que sou.
Pudesse, era barco – e seria feliz.
*
Depois, as fábricas fecham portas, é precário amar de borla os campos em volta, o Sol fustiga e desanima, raros táxis passam, o padre descuida os linhos da capela, os cães pianolam magros pelas ruas esburgadas, o Rogério anda amarelo, tem o mal dentro roendo roendo-o, ali era a casa do senhor Marques, hortas pernaltam couves incomestíveis, a ferrugem da nespereira sabe a morte-da-avó, entulharam o poço, degrada-se a nora.
E só já a rosa-dos-ventos ao vento vigora, alísea.
Ou Alícea.
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