Jorge de Sena (Lisboa, 2 de Novembro de 1919 — Santa Bárbara, Califórnia, 4 de Junho de 1978)
85. ELA POR ELA
Coimbra, quarta-feira, 6 de Outubro de 2010
O dia amanheceu inglês – baço, de frio ar varredor, chuvoso. Eu, no entanto, estou protegido da intempérie porque colecciono relâmpagos, isto é, versos.
De Poesia de 26 Séculos, a preciosa antologia costurada por Jorge de Sena, estes (co)riscos:
1 – OMAR KHAYYAM (Pérsia, séc. XII)
O mundo imenso: grão de pó no espaço.
Toda a ciência humana só palavras.
As flores e os animais e os povos: sombras.
E teus profundos pensamentos: nada.
2 – DANTE ALIGHIERI (Itália, 1265-1321)
Tanto é gentil e tão honesto é o ar
da minha dama, quando aos mais saúda,
que toda a língua de tremor é muda,
e os olhos não se atrevem de a fitar.
E ela perpassa, ouvindo-se louvar,
vestida de humildade e tão sisuda,
que se diria que, do céu transmuda,
à terra veio milagres comprovar.
E é graciosa tanto a quem na mira
que dá dos olhos tal ternura ao seio,
que entendê-la não pode o que a não sente.
E é como se em seus lábios fora ardente
um espírito suave e de amor cheio
que, sem dizê-lo, às almas diz: – Suspira.
3 – SHAKESPEARE (Inglaterra, 1564-1616)
Porque escrevo eu sempre tão igual ao que era,
mantendo-me fiel ao que inventei,
que cada termo é como se dissera
quanto de mim procede, que o gerei?
*
(Intervalo para vos confessar quanto me agrada esta meteorologia ensimesmada e ensimesmadora, este ar-aquário, este vulcão pluvial, esta redoma maxiatural com uma cidade dentro, esta campânula que prologa e prolonga o pensassentimento de cada instante. Não é já, não, o alto Verão durante que brilho e milho rimam tanto a tão loura altura. É a voz do Inverno Outono adentro, é a homilia hidrófila da quarta-feira. E é estranhamente, também e ainda, a magia de rimarem melancolia e quase-alegria.)
*
(Prolongou-se-me o intervalo por causa do almoço – e do raro apetite por ele. E são já as 17h09m da quarta-feira. Aproveitei os momentos pós-prandiais para conceber e enviar para Santarém a crónica dO Ribatejo, blogcanilei a entrada 83 deste Ideário, não saí de casa rumo ao Atrium antes de atirar uma porção de água e um chocolate-miniatura para as entranhas. Conservei, não sei porquê, o talão – processado por computador – de compra do Cortázar. Na última linha, inscrevem-se hora e data. Com a hora, tudo bem: 15:57. Mas a data refocila-me as tripas: diz que foi no dia 10/09/30. Inevitavelmente, leio: 10 de Setembro de 1930, o que é uma quimera técnica, tanto para mim como o americanóide processador de facturas. I know, I know, tem de se ler ao contrário agora (por paradoxo, à árabe), da direita para a esquerda: 30 de Setembro de 2010. Raios partam a globalização e os US of A. Por isso é que ainda lhes dói o “nainilévãne”. Deveria roer-lhes era o (duplo) “elévãnáine”: porque o 11 de Setembro de 2001 foi muito menos, mas incomparavelmente menos, assassino do que o outro, o de 1973, no Chile, que eles, o zamericanos, instigaram, encomendaram, pagaram e benzeram ao porco-sujo dos pinochets. Dito isto, regressemos à beleza crestomatiada por Jorge de Sena:)
4 – ANGELUS SILESIUS (Alemanha, 1624-1677)
SEM PORQUÊ
Não há porquê da Rosa, é rosa porque é rosa:
Não cuida de ser vista, ou ser de si curiosa.
*
E, por hoje, stop na antologia da Antologia. Amanhã ou assim voltarei aos trechos luminosos que Sena tão porfiada, gentil e sabedoramente arrebanhou.
Agora, preparando-me para a investida/descida/ subida da Noite. O Nosso Café, 18h06m. Precavi-me de camisola e casaco para descer da Solum ao Calhabé, mas é de t-shirt encarnada (duas nódoas feias na barriga) que vigoro à terceira mesa direita de quem entra. Uma espécie de paz: apesar da hipoescassez de dinheiro, apesar de todos os raios que me partam, uma espécie de paz. Afinal, a República pode ter cem anos, mas eu tenho quase metade disso. Portanto.
Portanto, seguir (conseguir) tecendo a emulação da utopia consigo mesmo/a. Digo: concebendo sempre a outra margem (a terceira) do outro Rio: lá onde as ideias, os flashes, a coruscância, a esmeralda – lá onde tudo é possível/passível de ser dito. A Poesia? Pois por que não? Já é tão tarde para cursar anatomia patológica ou silvicultura silvestre ou taxidermia de criaturas volantes ou hidráulica do Mondego… (Olha, pus reticências! Olha, pus ponto de exclamação…)
2 comentários:
Foi menos assassino porquê?
Nem que seja pela comparação do n.º de mortos. Ou pela sistematização da tortura. Ou pelos anos que durou. Ou pelas gerações que devastou. E porque foi pago pelos americanos, os quais também financiaram um tal Bin Laden. Ah poizé.
Enviar um comentário