83. DITO COM A NUCA
Coimbra, segunda-feira, 4 de Outubro de 2010
Outubro já se outona. Não é o frio ainda, não. É o geral embaciamento da montra do ar, a teia pluvial, este global suspiro de terra que deu frutos e agora se prepara para dormir sobre o pão cortado, bebido o vinho novo da nova chuva.
Por mim, acho tudo bem. No café, uma velha enxuta como uma ave empalhada prolonga-se de corpo & alma no guarda-chuva de que se faz preceder. Encontra, prazenteira, uma homóloga etária – põem-se a charlar com uma espécie de delícia babilónica, uma gula que papia, ceceia, numa perene (e invejável) curiosidade atenta às mais comezinhas cozinhas inhas inhas da vida: os remédios de cada uma, os netos de cada uma, as vizinhas de cada uma – e nada naturalmente sobre Milton ou Nick Cave, népias a propósito de Montaigne ou Pétain, nicles quanto a Serrat ou Marías, também para quê Afonso Costa ou Sidónio.
Às 11h48m já chove. A semana começou com um mau telefonema, que faço por arquivar em alguma das mais recônditas reentrâncias do psyché da mente. À tarde, um pouco de trabalho, um quase-nada de ganha-pão. Entrementes, chuva e Cortázar.
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Um cavalheiro reformado e nédio, de impermeável verd’escuro e aros de tartaruga oftálmica, lapija o problema de palavras-cruzadas do dia. O todo dele descamba nuns sapatos castanhos e picotados à antiga, cuja versão prefiro em preto. Tomou café, sobra-lhe um pouco do quartilho de água mineral. Tenho fome, mas é cedo ainda para me deixar de melancolia e literatura em prol de ir comer o esparguete e a sopa. Na televisão, enésima repetição de um Benfica-Braga qualquer. No exterior desta repartição de cafeínos & nicotinos onde escrevivo em silêncio, desmonta-se o circo dos U2. O rapaz que queimou a mioleira com anos de drunfos & afins não veio hoje de casaco de couro castanho. Também não se demora por aí além. Eu sim, um pouco mais ainda, não sei quantos anos.
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Num texto publicado em L’Humanité (Paris, 22 de Agosto de 1977), Cortázar, evocando a sua relação de, então, quase vinte anos com a Cidade-Luz, escreve:
Paradoxo irrisório: quanto mais pertencemos a uma cidade, menos a vivemos.
Espero viver mais (um pouco mais, pelo menos) a minha. Com ou sem paradoxo, que a irrisão é certa.
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Do mesmo Cortázar, em Rayuela:
(…) depois dos quarenta anos a nossa verdadeira face está na nuca, a olhar desesperadamente para trás.
Pois é, digo eu com a minha nuca.
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Ei-la, claro, a velhota zuca à hora do costume (meia tarde, 16h30m). Arara que o Tempo agalinhou, pele facial em estrias de escarpa (ou escamas de carpa), cabelo, hélas!, envernizado de um ouro-verde, pés que seriam de cortiça se a) a cortiça andasse, b) a cortiça fosse branca e deitasse unhas. Está (Deus às vezes existe) calada: uma revista absorve-lhe a mecânica dos fluidos labiais. Antes da revista (somos poucos clientes a esta hora), porém, farolinou derredor olhos de mete-conversa. Periférico, nem ousei içar a corneta e o par de óculos (que ainda não acabei de pagar à Óptica L.) do caderno. Mas já sei que, um destes dias, ela, flibusteira, corsária, me piratareará o silêncio escriba para saber se a) sou casado, b) se ando a estudar, c) sobre que escrevo eu tanto, c) que livro é este que eu ando a ler há tanto tempo, d) que edição é esta tão inesperada e tão póstuma de don Julio Florencio Cortázar. Se tal por desgraça suceder, terei de lhe redarguir que a) na peida, b) no olho é um descanso, c) nos entrefolhos badanantes do cu e que d) é uma edição da Cavalo de Ferro (1.ª ed., Julho de 2010) preparada por Aurora Bernárdez e Carles Álvares Garriga e com tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu.
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Paradoxo irrisório meu, este: publicando-a, tornar mais secreta a face.
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Às 17h20, quatro pós-adolescentes adolescentam uns pós de conversa-capoeira: palram namoradas, eus, cus & mamas, cristianorrónaldo, ar-de-cor, bairro-norton-de-matos, &podes, merdas que há vinte e cinco anos também chalrei, mudados os rótulos aos frascos.
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De tarde, uma solaridade fresca esqueceu as águas da manhã. Mangas curtas por todo o lado. Um homem de camisola afro-verde, porém. Carros cinzento-metalizados, um par de mamas inflacionando uma blusa roxa, um pacote de açúcar degolado, a revista do Noddy (estranha felicidade, a da infância do Norte, por assim: por feliz, por infante e por do Norte), porto-ferreira & brandy-croft, massa térmica para processador, é-assim, tàzaver?, 1-euro-1-euro-e-meio, gigas, o alçapão da mente urdindo o Zunir da Palavra, ontem-domingo-à-varanda-vendo-vento-que-chovia, obliquidade do pescoço na história activa da literatura, na tarde de Coimbra um ciclista-operário de camisola amarela, epifania benigna que me transmuda sem apelo para a visão de Joaquim Agostinho em fuga solitária (n.º 1, n.º 1!) para a Figueira da Foz, à passagem pelo túnel da Estação Velha, a nossa verdadeira face está na nuca, os macacos, a linha de sangue & fogo que baptiza as cidades, a peduncularidade lacustre do coração, a ubiquidade insectófila dos telemóveis e das meias brancas com o par cruzado de raquetes de ténis, as mariposas e as medusas, os anos que andei para isto, os anos que afinal andei para isto, os anos que andei para afinal isto, Martinet & Schaff & Aguiar & Kristeva, Cervantes & Eusébio da Silva Ferreira. O resto da vida parece-me inversão de fotograma: ter feito sol de manhã, estar a chover na antecâmara da noite, do outono, da porra do outono, que sempre foi e é sempre bonito, mas enfim.
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Toca-me como um dedo alheio na bochecha a perfeição por assim dizer cerâmica da fruta exposta em bancas na rua. Ainda agora assim foi: pêssegos-carecas de tão glabra lustralidade, uvas-de-mesa gordas como pérolas de ostras gordas, batatas descomunais como hematomas ou aleijões de gigantismo das feiras de aberrações, nêsperas que não sei se pepitas se chinelos de ouropel. Venho andando nisto, afiado como um lápis sobre papel-manteiga de embrulhar toucinho, as mãos ainda-ilesas, as nádegas nem-tanto e os ossos apesar-de-tudo.
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