24/10/2009

Rosário Breve nº 127 (republicação) - www.oribatejo.pt

Tesouro

Vi os olhos do meu pai na cara de um homem que passava na rua.

Durou pouco, o regresso desse olhar de cão batido.

O homem olhou-me com um olhar que já era o dele.

Fiquei parado na rua.

Fazia sol.

O meu destino, que na altura era ir ao multibanco, tinha perdido o sentido, como todos os destinos.

Os olhos do meu pai, caramba.

Estes anos todos sem ele, e ali estavam os olhos.

Preciso sempre de uma explicação.

Preciso sempre de saber tudo.

Continuei parado ao sol, à espera de perceber.

Não durou muito, a explicação.

Eu tinha parado diante de uma montra espelhada.

O sol devolvia-me todo um corpo de vidro e luz parecido comigo.

Olhei-me os sapatos, os joelhos, a aba do casaco, a gravata, a cara.

Nessa cara alheia, lá estava outra vez o olhar do meu pai.

Nunca mais volto ao multibanco.

Nunca mais vou precisar de dinheiro.

Um tesouro olha por mim.

3 comentários:

Rui disse...

Por isso é que percebeste certa canção do Chet Atkins. Dir-mas-ia assim: dores de partir. Paridas como as de parto, mas paradas.

esse disse...

Brutal, como sempre, Daniel. Olhar nos olhos e descobrir o nosso código genético é reconhecer o pin da alma que vendemos ao multibanco.

Abraço,

Carlos

Daniel Abrunheiro disse...

Bem posto, Carlos. Obrigado.

Canzoada Assaltante