18/10/2009

A NOITE EM BREVE ou CORUSCAÇÕES NO IMO DE SOMBRAS (uma portugalidade delével) - 22

22

Caramulo, noite de 7 de Setembro de 2007

Não só em Lisboa, também em Leiria.

Mudam-se os cinemas em salões de Cristo Brasileiro pago à dízima.

Recordo 1991, uma das noites desse passado numerado e inumerável.

Fui a pé do Louriçal à Guia.

Entrei no Figueiredo, comi pão com carne frita, bebi vinho e pus-me a fazer como os recém-nascidos e os câmar’ardentes: a esperar.

Apareceram-me o Marrazes e o Álvaro, dois rapazes que a noite liberava como a zéfiros e respectivas folhas caídas.

Bebemos umas coisitas e fomos para Leiria.

Passado um bocado, eu estava em Peniche, mas antes fui ao cinema com o Marrazes, em Leiria.

Era um filme com o Kris Kristofferson, tinha a ver com aviões caídos e ficção científica e tal.

Depois, fui para Peniche.

Antes de ir para Peniche, a mãe dele ofereceu-nos um arroz de safio condimentado pela fervura dos anos: ela já cozinhava há muito, nós vivíamos (ou seja: bebíamos) de mais.

Aquilo passou.

Em 1991, eu tinha tudo. Podia sair à noite, como hoje posso. Podia ir a pé, como hoje vou. Podia perder-me, como hoje não deixo de fazer. Podia ler tudo – só que hoje escrevo.

Escrevo esse Verão de 1991. Fui até Peniche. O vento tomou-me logo de raiz até os dentes. Tinha uma cassete da Amália. Ajudei um homem estranho a mudar móveis, ele era ou estava para ser pai de um menino também chamado Daniel. As coisas escreviam-se-me sozinhas com uma tinta transparente na mão de ninguém. E a minha entrega era absoluta – porque ali era o berço do mar maior – com o aliás mínimo problema de não saber nem ter eu a quê nem a quem.

Perante a Nau dos Corvos, esfumada a Berlenga Grande a torrão de sal azulado, participei dessa religião de toda a pessoa olhando o mar: mas que carago. Devo ter-me lembrado de Ruy Belo comendo ali um frango pago por João Miguel Fernandes Jorge. De certeza que me lembrei de, na cercania da Senhora dos Remédios, de um autocarro de dois andares que, desactivado de quilometragem, albergava um vendedor de bifanas e de spébócks nas madrugadas do Inverno de 1986-87.

A rapidez da beleza impressiona-me muito, ainda: nascemos bebés bonitos e encarnados, morremos velhos vulgares e brancos. Já não aquilo, ainda não isto, meioidado pela absoluta entrega, ainda e também quê?, a isto. A quem? A vós – e a Ruy Belo papando o frango a JMFJ no restaurante ante a Nau dos Corvos, num dia de decerto vento.





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