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Caramulo, entardenoitecer de 7 de Setembro de 2007
Um dia vai-se embora mais, da nossa vida, fazendo-nos remar para o futuro. Continuamos a haurir a áurea luz, antes da noite em breve. Esperamos da Lua um poema de lobos.
Trabalhei de manhã na pastelaria, depois de ir ao barbeiro a que me cortasse o cabelo. Almoçámos sopa e uma lata de mexilhões com pão fresco. Bebemos gasosa. A senhora tinha ido a Viseu, eu nunca saio daqui. À tarde, trabalhei em casa, recebi um telefonema de Pombal, era o Adelino Leitão, fartámo-nos de rir e de dizer mal do (des)Governo da Nação. Então, a tarde inclinou-se sozinha como um lenço de prestidigitador. Saí de casa, percorri como um peixe os cantos aquários da vila-montanha, assentei praça neste caderno e aqui estou ainda, os pássaros pretos nos ombros, saudades do farol que diz aos barcos para não chegarem nuncanuncanuncamais.
Macia e lenta é a macilenta melancolia de quarentão apostólico de sua roma privada, já sem reis nem magos, numa república de coliseus, pão e circo.
Uma mulher morena, de olhos orientamendoados, traz a roupa castanha para o âmbito da visão redactora. É bonita, baixinha, de correcto miudinho andar de gueixa que se não queixa. Bebe chá com nipónica parcimónia, sorri para dentro como os místicos atormentados pelo excesso da Beleza. Não a conhecemos daqui. Pode ser só uma visão (uma epifania) – e, nestes tempos, uma visão pode ser tudo o que é preciso. Um ser feminino, completo, moreno: uma tomadora de chá, um fantasma talvez, que sorri para dentro. Dela tomo nota em ademanes de assexuada hipercorrecção, posto que dela a carnação aura-se nimbada de uma gaze que não é para tocar. Vai-se embora, dissipa-se través a porta, eis que já não é nem há.
Reencontrei e estantei o meu exemplar sem capas de Varanda de Pilatos, de Mestre Vitorino Nemésio. Adquiri-o numa casa semiabandonada das cercanias de Coimbra na tarde do dia 23 de Agosto de 1986, três meses exactos sobre a morte do meu Irmão Jorge. Maravilha: o exemplar foi autografado pelo Autor em 1927. É meu, só meu, só das minhas meninas, um dia. Estou a esvaziar sacos e caixas em casa há quase uma semana. Sou muito feliz. O Hemingway continua a ir a touradas e a matar-se com um tiro de caçadeira. A dispepsia do Antero não o impede de voltar a ser jovem e a moer a cabeça ao vascograçamoura do tempo dele, a besta do Pinheiro Chagas tão elogiado-dá-cá-o-beijo-no-anel pelo cegueta do Castilho. O Juan Ramón Jiménez continua a adorar a humanidade do burro Platero, em insuperáveis prosas capitulares iluminadas a vermelho pelo desenho do grande Bernardo Marques. Tenho livros do Roussado Pinto enquanto ele e enquanto o outro-nele, o Ross Pynn. Idem para o Dinis Machado/Dennis McShade. Tenho o Fuentes de O Velho Gringo, que comprei em Peniche há vinte anos. Gosto desta vidinha de estantes de prédio urbano. Lá em cima, na mansarda da crítica, está o adiposo Gaspar Simões em plena glória: O Mistério da Poesia, exemplar de 1931 para minha glória de filatelista sem selos. Cá em baixo, desconfiam-se duas mulheres do outro mundo: a senhora Woolf e a senhora Yourcenar. Tenho uma data de cowboys: Caldwell, Sinclair (o Lewis), Updike (o Sinclair), Schulberg, Mailer, Capote, Anderson (maravilhoso Sherwood), Faulkner, Fitzgerald, Dos Passos, Heller (o do Catch 22, que deu filme com Art Garfunkel, em muito novo, e Orson Welles, em já não tanto), Hammett, Chandler, Hillerman. Tenho o negro Walter Mosley. Estão lá Pai e Filho Veríssimos: Erico e Luiz Fernando. Edilberto Coutinho, João Ubaldo Ribeiro, José Mauro de Vasconcelos e Fernando Sabino – Brasil profundo. O muito meu Ferreira de Castro dá-se bem com o meu muito Alves Redol. Tenho Torga e Eugénio de Andrade, claro, mas não simpatizo com as poses: que a terra lhes seja leve, enfim. Vingo-me com Bernardo Santareno, Luís Filipe Costa, António Gedeão, Daniel Filipe, Gastão Cruz, António Osório, João Miguel Fernandes Jorge. E dou por mim tirando os olhos da biblioteca e a olhar para toda a Espanha e alguma França: Javier Tomeo e Albertine Sarrazin. Que a vida é breve – quem o nega? Que a escadaria dela pode ser alta – quem o recusa? A minha escadaria é destes degraus feita. Degrau a degrau enche o galeitor o papo, enfim.
Noite feita. Alumbra-se nos lares o fogo das ceias. Gatos vadios a casa domesticam regressos, cheios de fome e de aventura saciada. Os louva-a-deus tiram o chapéu e as botas, patinham pelos soalhos na articulada ergonomia mutante que nunca muda. Deitam-se as árvores, sobe ao lugar delas a sombra delas. O céu presépia-se em inversa bacia côncava: papipipiluzem estrelinhas poderosas de manto de mágico: azul e prata e ouro e frio: tudo siderado, tudo sideral. Vou morrer esta noite, depois de comer e antes de me levantar à manhã, pela alba, amanhã.
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