Para a Ana M. P. Antunes,
criatura que me topou perfeitamente um tal Camilo Ardenas
Lord, I am a surgeon
and music is my knife
it cuts away my sorrow
and purifies my life.
Paul Simon, God Bless the Absentee
Pombal, manhãs de 4, 12, 14 e 16 de Novembro de 2008
I
Olha-me, senhor da minha infância, que envelheço
– e nem sete e meia da manhã são.
Acordei hoje feliz, ó meu senhor da minha infância,
sonhei com nespereiras, respirei o ar que docemente
as viola, é bom acordar de pulmões lavados,
senhor da infância.
Ouço o cantar branco das louças, agora,
a rapariga do balcão é gentil como um lírio inclinado,
o rumor das formigas é engraçado, olha, senhor,
como levam as patitas às chávenas de café com leite,
como aproveitam os bolos, o açúcar.
Não longe, um prédio azul-claro espera advogados,
o dentista, a senhora do balde e da esfregona
– que idade terei quando baterem as oito
no sino que não há da igreja ausente?
Tanta, senhor, e tão pouca gente.
Senhora de casacão grená adquire pastilhas de mentol.
Cavalheiro de sobretudo creme (gola preta) boceja.
Metaliza-se o céu, vai chover na minha idade.
Uma família cigana enegrece a esquina do mercado.
Olha, senhor da infância, a beleza daquele velho
a cavalo em sua bicicleta velha como ele, que
formosa a rosa da sua cabeça única sustentando
o boné de padrão escocês – a que clã pertencerá
o venusto velho ciclista?
Redar-me-ei, hoje e enquanto me houver um sempre,
a rondas columbinas. Da escola de música,
dedos pequeninos emitem notas de piano, essa praia onde
a gaivota Chopin, o albatroz Schubert,
a andorinha Vivaldi, o corvo Monk,
meu senhor.
Rosto de gato: rapariga de jaqueta de napa
com botões de chapa dourada, dedos de fino estuque
com anilhas de pombo-correio, botins de pano francês,
lábio inferior seguro por argola de espúria platina
– quanta beleza, meu senhor da minha infância.
Estralejam isqueiros ante olhos fumadores,
em tão poucas pastelarias se pode agora fumar,
ele há leis muito estúpidas, são as oito e um quarto
– e estou vivo registando os pequenos lumes,
os olhos que fumam, a segunda-feira.
Morrer em vida é que não. Isso não. Recebo cavalheiros
e casais no salão do meu coração, este caderno
onde és presente como um relógio, dos de pêndulo,
que emadeiram o tempo, os anos matinais
e a minha infância que envelhece.
II
O pastor João levou os animais ao pasto e não voltou.
Voltaram os animais a sós pelo entardenoitecer.
O corpo do pastor João jazia esfaqueado por terra.
Longe (muito longe), na capital, banqueiros roubam.
As facas quase nunca são bem dirigidas.
Senhor da minha infância, o mundo não é
mais bonito, agora que não és
agora.
Tenho ouvido muitas coisas, palavras sobretudo.
Estas te digo, senhor.
Buganvílias presidem de cor a viaturas utilitárias.
Garagens com portão levadiço ferram casas.
Órfãos do comunismo branqueiam a esquina do mercado.
Um pouco de atenção basta para melhorar o mundo.
Sou feliz: nesperei-me em sonhos, meu senhor.
Uma vez, era um rio. Curso e corso: águas
da infância senhoreada pelo senhor, quando
o instante, um qualquer instante, era do
teor mesmo da própria eternidade. Creolina expedia
comboios rápidos, vinagre e moscas conviviam.
Olha-me, senhor da infância, que envelheço
– e nem meio-dia e meia é.
Pão quente em olor pela rua onde cobro e sofro
o avanço de uma desdita tão particular e tão geral
quão uma unha, uma unha de mão levada à boca,
esta terça-feira.
Expedem riscos as nuvens pluviais, agora.
Há um batente no latente coração que pensa mais
que bombeia.
Carcaças decepadas como manequins
pendem no talho do meu amigo Adriano, que
cumprimento para rememorarmos sábado.
Hortas inglesas de almanaque verdejam em minhas sinapses,
um prédio cor-de-salmão alberga lojas,
raparigas mal empregadas, pastilhas de mentol.
Hoje, ó senhor da minha infância, volve-se ontem
a cada verso.
É do mundo ser um palavroso: um animal
com vocação para o ruidoso silêncio: um par
de olhos castanhos, uma ortografia, uma pele
de crocodilo enroupando as vísceras, a ordenação
das estrofes e a louça branca.
Repassa o homem da bicicleta, o escocês.
III
A chuva torna levadiço o rio,
é uma quarta-feira.
Casal de mãe & filho, de negro revestidos ambos, em
marcha pela avenida sorumbática.
Não se vê João, hoje não, nem
o senhor da minha infância.
Um perfume a tripas, a estrofes, a remédio.
Cortiçam-se os rostos de uma espécie de
espeleologia: noite em pleno dia.
A mulher do carrinho-contentor recolhe as
oferendas, o tesouro público, papéis congelados,
maços de tabaco amarfanhados por amarfanhadas mãos,
folhetos do hipermercado, folhetos de professores
astroafricanos, olhos de vidro, dedinhos de crianças,
um cachecol do Sporting, uns óculos de sol
que não há.
Gosto da cabeça da mulher do carrinho-contentor:
é toda lenço (toda chita), aquela cabeça;
berlinde encefálico, bolita de passarito,
pérola pobríssima, excedente municipal,
ninharia cósmica, não altiva princesa de baixios,
de manhãs frias, colectora de nossas sombras.
Envelhecem-me as tripas, senhor meu
da infância que me não pertence
excepto pela palavra,
que em ouvir teimo, levadiça,
como tu levadiça e pluvial
como tu, meu senhor.
Ainda ontem:
acabara-se-me a noite, tudo o que tinha
não era mais que uns versos
de Alcipe,
aliás Marquesa de Alorna,
aliás D. Leonor de Almeida,
que morreu de velhice.
Casou-se com um gajo da Prússia,
eu não.
Era num shopping, como agora chamam
às espeluncas onzeneiras.
Uma venezuelana revoava, muito francesa, pelo
átrio do repuxo, em torno do que pasmavam
sentados os pastores da melancolia.
Eu lia.
Respondia Alcipe, aliás Marquesa, aliás Leonor,
a Natércia, dela amiga não filosofista,
antes sentimental.
Era ainda terça-feira, nem se estava ali mal.
Hoje não. Bulem-me as tripas, tenho tosse,
Expilo mucosas mariposas do cavername.
E, meu senhor, antes me nada assim fosse,
nem o tripeiro ranger, nem o ladrar macadame.
(Divirto-me, está visto, meu senhor.
Assim uma manhã discorrer pode um pobre, no
Café Esquina posto à vidraça como imprestável
móvel em montra de insolvente mobiliária.
O rio leva e disse.
IV
Os olhos daquele homem de família, olha, meu senhor,
que absorto e verde é o olhar daqueles olhos.
As pessoas são muito mais bonitas do que não crêem,
digo-to eu, meu senhor da minha infância.
Estou melhor, mas não muito, da tosse, é sexta-feira,
estou no Esquina a ver se o gajo com o Correio da Manhã
mo larga, já largou, afinal era uma gaja, elas
agora vestem calças e pulôveres como nós, sabes.
Estas palavras que leio, digo-tas, meu senhor:
VIDENTE A TRABALHAR COM DR. SOUSA MARTINS
pessoalmente ou à distância.
Um só telefonema pode mudar a sua vida!
Perdeu o seu amor? Ouro, sigilo.
Menina árabe 21 aninhos!! Zinco, desemprego.
Para não fazer mas sim para fazer.
Alfragide, Alentejo, Aljustrel, Alcochete.
Corroios, Évora, Peniche, Caminha.
Fresca ou conservadora: as duas coisas.
Liverpool, Vegas, Estoril, Wimbledon.
Inês, Sara, João, Xavier.
Iniciativa, Torres Vedras, balcão, Salvaterra de Magos.
Pesados e articulados: ministros e hectares.
Empresas sem dívidas aos bancos: oferece-se.
Tudo numa casa, como um carneiro.
Deverão possuir mãos de fada e propostas nacionais.
Chinesas e japonesas correm éditos em Ceira, Coimbra.
Valor inferior a um serrote marca BERLINEER HBP 500.
Anúncio dos Anjos locais comporta luxos próprios.
Conhecimento é um crime público que atende em privado.
Monterrey em Tallin, Azerbaijão em Dumbria.
Quatro meses e foi um inferno.
Paixão de Fialho custa um milhão.
Cumprir o ESCORPIÃO também.
Mais alternativas: à espera.
Cedo o jornal a um cavalheiro de casaco verde
que me soslaiolhava, estranhado, tanta cópia-caligrafia.
Tomo um hausto muito fresco, à porta do Esquina.
Saio.
Se alguma coisa amo, é este carrossel:
a ambulância, cuja passagem aos gritos alvoroça os velhos,
as inumeráveis folhas enumerando as árvores
(muitas se sustiveram outono adentro, ora inverno),
a notícia aromática desta senhora de luvas,
o decapitado manequim desgenitalizado,
a tostadeira a preço de rebaixa pré-natalícia,
o vento dando alto nas mansardas,
os varandins de madeira lacrados a sardinheiras,
uma menina toda vestida de verde (os olhos castanhíssimos),
a mosca triangular como um caça,
um maço de guardanapos visto de lado como um livro,
a negação gravítica da respiração da cerveja no copo,
um ser de casaco amarelo colhendo morangos,
(as laranjas, também de estufa, dourando a banca),
o cristo-rei de um poste de alta-tensão,
os meus sapatos camurçando a calçada azulibranca,
o tango dos passaritos pelo chão,
toda a renúncia e denúncia nenhuma,
os matrimónios-galheteiros vinagrazeitando as clínicas,
uma mulher a fumar sentada no muro do hospital,
um chinesito a sugar um tetrapak de leite achocolatado,
uma ideia simples na cabeça,
o médico que passa como se o levassem de andor,
o bêbado oficial da cidade gettysburgando aos peixes,
a unção ainda não extrema da melancolia,
o jogo de luzes de dois gatos assanhando-se,
uma folha de pedra cor-de-leite-creme,
as mãos do meu senhor da minha infância dele
(na minha cabeça infante, este exacto instante),
uma ânsia educadíssima,
covilhã-manchester-portuguesa-aveiro-veneza-portuguesa,
formosuras gordas nadegando esquinas,
viverei enquanto amar, DR. SOUSA MARTINS.
V
Olha-me, senhor da infância, que amanheço
– tenho ouvido muitas coisas, a chuva, os rostos,
os olhos daquele homem de família,
mais alternativas.
Acordei hoje açúcar, sou feliz, meu senhor.
Um só telefonema para não fazer.
Fresca espera,
um sempre.
A que clã voltaram os animais?
Olha-me:
a chuva torna:
de vidro os olhos.
Acordar não longe,
sou o pastor João
hoje,
meu senhor da minha espeleologia, num shopping.
Pequenos lumes, uma unha,
pão quente que não há quarta-feira.
Inês, Sara, sem dívidas, um milhão.
O tango dos sapatos pela cabeça.
Rondas de pombo-correio
pessoalmente ou à distância.
Levadiça Leonor, Natércia conservadora,
ontem.
A mulher do carrinho-bicicleta,
o verde-escocês do homem do tesouro,
pérola inferior a um serrote
princesa de Ceira, Coimbra.
Ainda a cavalo nas tripas,
a tosse de olhos castanhos,
tudo numa casa,
nem se estava ali.
Casal de moscas, estrofes de vinagre,
um pouco de atenção aos órfãos,
a ordenação da Prússia
e estas que digo ao meu senhor:
o DOUTOR SOUSA MARTINS lá está
no Largo Mártires da Pátria,
que foi Campo de Santana e da bola,
coitado, todo dejectado de moscas, pombas e orações,
a Marquesa de Alorna, não sei onde está,
sei que viveu uma data de anos e depois deixou-se disso,
as sardinheiras rutilam altas nas mansardas ’inda,
a gripe catarra as manhãs de alcatrão pessoal,
quem me dera lavar tudo, pulmões, coração, laranjas,
meu senhor da minha infância,
infância minha afinal mais tua que minha,
que mais é de pai & mãe, porque a ganham,
que do filho a infância, porque a perde,
assoo-me a livros como a lombadas de guardanapo,
o território nacional é sobrevoado por caças e por moscas,
continuo a gostar das bicicletas artesanais dos homens,
da revolução proletária ambulante de toda a mulher,
mesmo as que fumam, mesmo as que usam calças,
mesmo as que casam gajos da Prússia,
mesmo as que nunca ouviram Thelonious Monk,
às vezes dou por mim a pensar no pastor João do jornal,
um velho sai com os animais e não volta,
coisa que aliás me fizeste também, meu senhor,
e nem no jornal saiu coisa que se visse,
teria como eu degustado o castanhíssimo dos olhos
daquela menina toda verde em outra manhã,
o mundo aí o temos todo para serrar em versos
como serra o pão um tal Cristalino Vicente
que ando a compor por ócio e melancolia,
não sei pintar mas não há cor que me escape,
o preto da tinta, o branco do papel,
isto de me chamarem agora nas lojas, também,
senhor e Daniel,
meu senhor da minha infância,
ainda ontem.
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