IV
Souto, manhã de 20 de Novembro e
Viseu, manhã de 3 de Julho de 2008
Cristalino Vicente adoece por quatro noites com seus dias. A febre ferve sonhos. Vê cavalos.
Pela alba, os cavalos rompem o rossio e adentram o parque municipal chamados pela sucosidade da erva arrefecida de orvalho. Saciam-se e tomam as ruas do comércio mais antigo da cidade, as mesmas por onde cada um toca a sua melancolia portátil. A alba dá vez a um azul quase completo: uma mulher solitária exceptua a branco o céu muito puro. Os cavalos correm como um só corpo, um só furor, castanho orientado pela voz colectiva do destino. Vejo-os correr da janela do meu consultório de ajuda espiritual.
Cristalino Vicente teme, na ressaca dos cavalos, a possibilidade de um homem dentro dele ter vivido fora dele: numa cidade com rossio. A improbabilidade do matador recrudesce na febre.
V
Tudo idem
Na segunda noite,
Pela alba fria, não são centauros, nem unicórnios, nem faunos – nem homens. São cavalos em tropel como batidas de coração na garganta, como palavras de metal no xilofone dos dentes. Vejo-os da janela da mesa do canto do café, onde atendo as pessoas desgovernadas que pagam para acreditar em amarração e desamarração, bons e maus olhados, potência e impotência, praga e benesse, virgindades negra e branca, desvio e aproximação, belzebu e vizinho do lado. E a angústia, vendo os cavalos, só me toma porque não fui capaz de prevê-los – como nada de facto prevejo (já tudo foi), pois que tudo já foi visto e feito e desfeito e esquecido e agora sonhado outra vez.
Na pedra do lar, cinzas. O olhar do cão espera o do homem, que fecha os olhos para a terceira noite.
VI
Ibidem
Na véspera dos cavalos, ele não é Cristalino Vicente, mas Manuel Damas, o espiritualista que finalmente recebe uma cliente. Três meses (trezentos anos) a fio sem que ninguém respondesse ao apito volante dos papelinhos que abandona sem esperança nos pára-brisas dos carros por toda a cidade – até que ela chama Manuel pelo telemóvel, aceita o pré-pagamento justificado pela magia supernegra de Xamã com laivos da superbranca de Olin. Aparece no consultório (“Há Tostas Mistas”) às nove da noite, pede um ice-tea e um pastel de nata e conta-lhe de o marido a ter traído com um colega de escritório. Nem perante tal evidência, ante tal claridade rutilante de epifania, Manuel Damas é capaz de prever os cavalos chamados pelo orvalho da alba.
Pela alba fria, não
VII
Idem e idem
A febre acaba-se como a escuridão, no catre de Cristalino Vicente. Mas Manuel Damas resiste, já que ela é
Ela é uma mulher mínima: um feixe de nervos cingido por um cinturão de napa. Calça mocassins dourados como as estrelas de papel-de-Belém. A cabecita oscila empalada por um pescoço de felosa. Mas os olhos são duros como vidro quebrado, enquanto as mãos arabescam a caligrafia da decepção e do conhecimento absoluto das maldades do mundo e do marido. Os músculos faciais fremem-lhe involuntárias frituras: mas nem assim me é dado antever que pela alba seguinte os cavalos nos vão tomar as ruas e a melancolia e o orvalho e todo o comércio humano.
Cristalino ergue-se, o cão Mondego lambe-lhe a mão direita, a mesma que o regressado Vicente leva à boca para inserir sob a língua uma pedra de sal, panaceia ideal para a contenção dos estremeções neuromusculares.
1 comentário:
(re)publicado na incomunidade
abraço
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