I. LINHAS DE PARTIDA
Viseu, Casa de Pasto A Marisqueira, horalmoço de 26 de Setembro de 2008
II. ESTE SÍTIO DAS MANHÃS ME DESPEÇO
Viseu, Café Penedo da Sé, manhã de 26 de Setembro de 2008
III. DE BOTAS
Viseu, perto dos Correios, tarde de 18 de Setembro de 2008
IV. UM HOMEM NEM SEMPRE VÊ
Viseu, Mundial Bar, manhã de 3 de Agosto de 2008
V. OBTUSA LÍRICA DOMINICAL
Viseu, Mundial Bar, fim da manhã de 3 de Agosto de 2008
VI. SETE POEMAS DE ABRIL DE 2008
Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008
VII. EM TERRA DE PAI, ACORDA QUEM É FILHO
Viseu, Café Mundial, tarde de 4 de Agosto de 2008
VIII. FUNCIONAMENTO MARINHO
Viseu, fim da manhã e noite de 8 de Agosto de 2008
IX. DORMIR
De comboio, Pombal-Mangualde, tarde de 12 de Agosto de 2008
X. (NO INTERVALO DAS ÁRVORES)
Viseu e Molelos, tarde de 14 de Agosto de 2008
XI. (FADO A ATIRAR PÓ RELIGIOSO)
Viseu, manhã de 20 de Agosto de 2008
XII. CENTO E MUITOS MORTOS EM BARAJAS
Molelos, tarde de 20 de Agosto de 2008
XIII. TUDO O QUE SABES DESTE HOMEM
Viseu, Bar Estado d’ Alma, fim da manhã de 25 de Agosto de 2008
XIV. SEREI FINALMENTE FINAL
Viseu, Restaurante Colmeia, noite de 25 de Agosto de 2008
XV. GPS COM RIMAS PORTUGUESAS E OLHOS DE MULHER PRÓPRIA
Viseu, Praça do Rossio, tarde de 27 de Agosto de 2008
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I. LINHAS DE PARTIDA
Viseu, Casa de Pasto A Marisqueira, horalmoço de 26 de Setembro de 2008
Estou de partida, vou deixar estas cónegas ruas, estas praças a este sol. Para onde vou (para onde vamos), não sei. Tenho uma ideia, mas não sei: não é isso pensar? É um ciclo que se me fecha. Gostei destas pedras. Viseu é uma cidade onde uma pessoa (ou duas), enfim. Deixo-vos hoje estas muitas linhas. Como todas as que escrevi (como todas as que li), são de partida. É certo que às vezes regressamos: a uma cidade, a um corpo, a um olhar, a uma gare rodoferroviária, a uma linha. Ainda esta manhã pensava nisto. Para não mais pensar, escrevo. Escrevo para não pensar. Serei mais sincero ainda: escrevo para não viver.
Seguem-se linhas. Elas não têm importância. Ou têm uma importância que não vale – ou um valor que não importa. O que me importa, é telefonar de vez em quando à minha Mãe, é procurar nomes de pessoas que já não há para poder nomear personagens de livros que não escrevi. Importa-me uma sardinheira numa mansarda, sobre que uma cabeça de mulher antiga e portuguesa. Importa-me o perfil de um castelo: caligrafia mineral do Tempo: e certificado de duradoura finitude.
Escrevo estas coisas com uma cara muito séria. Hoje, tive de almoçar sozinho. A mulher meteu-me uma nota no bolso, disse-me que viesse aqui comer, eu vim. Lá para onde vamos, que crepúsculos matinais parelhos nos esperarão? Os mesmos outros. Isto é todo o Tempo: estes hojes volvendo-se linhas, partidas.
À minha frente, avó e neta. Populares. A velha, de carrapito capilar apertado a malha de seda-nylon. A púbere, de óculos de plástico escuros como pisaduras. A velha, bacalhau. A nova, febra de porco. A velha, tinto. A moça, coca-cola.
Respiradouros: as linhas respiram, são como aqueles bichos que abrem buracos na onda que recolhe da areia. Respiram a invencível finitude. (Mas sei que vamos para não muito longe do mar.)
De modo que em breve gaivotas. Não já só pombas. Não tem importância.
II. ESTE SÍTIO DAS MANHÃS ME DESPEÇO
Viseu, Café Penedo da Sé, manhã de 26 de Setembro de 2008
Este sítio das manhãs me despeço.
Quando se a ele e elas retornarei
não sei.
Vou ver outras pombas
as mesmas decerto na minha vida mesma.
Os mesmos outros homens antigos
de chapéu-de-chuva aberto ao aberto sol
reterei
lá para onde sigo agora
como antes.
III. DE BOTAS
Viseu, perto dos Correios, tarde de 18 de Setembro de 2008
No pólo sul de uma pessoa vi esta tarde umas botas iguais às que há um ano desejo à passagem pela sapataria da Rua Direita. O melhor atavio da pessoa resultava-lhe daquelas botas. O vestuário era regular: limpo, de cor neutra, sem outra mensagem que a da neutralidade mesma. Casaco escuro, de um azul fechado. Camisa de cor e consistência de casca de ovo. Cinto de matéria sintética e fivela rectangular. Calça castanho-terra, mas de terra sobre que choveu há pouco. E então, magníficas, a sul de tudo, aquelas botas irmãs das minhas, que não tenho.
Segui-as pela cidade. Repeti-lhes os passos, o meu desejo calçando-as. Vi-as esperar enquanto a pessoa comprava um chocolate numa confeitaria que está há anos em trespasse: como todos nós. Vi-as avançando devagar na fila para entrega do boletim do euroloto. Vi-as cercadas de pombas no rossio municipal, sob uma chuva de migalhas de pão. Vi a direita esmagar sem conhecimento uma ampola perdida em frente à gare rodoviária. Depois isto passou – vai daí, era outra a manhã.
IV. UM HOMEM NEM SEMPRE VÊ
Viseu, Mundial Bar, manhã de 3 de Agosto de 2008
Um homem nem sempre vê: é lobo só quando é cego,
é uma condição até triste, só aqui entre nós
que ninguém nos ouve.
Uma mulher, não sei.
Tenho este homem para não ver.
Delicadas faianças expostas em alheias casas
marilynmonroem envelhecidos chás barbitúricos:
do que sobra, cobra
o tempo impropérios e ciprestes:
e impérios e infâncias
e roubos na região.
Ai estas estrofes obtidas a pulso!
Ai tanta malvasia mal cheia alhures!
Não me vem da pulsação qualquer gnosia!
Não me vem da noite manhã nem dia!
Um homem nem sempre é lobo.
É homem sempre um lobo bem filmado.
Sábados de manhã, nos documentários
há crianças antes, ante-têvês.
A vida foi toda tanta há tantos anos,
que uma criança num homem, sábadànoite,
nem procura remédio, nem elixires,
nem descontos especiais antoceanos.
Era ter lido mais o Raul Brandão. E o
da Lisboa em Camisa, o Gervásio Lobato.
Um lobo também precisa de ser gato
ao pé dum pires, sei,
de um império cordato para o preto.
Um cigarro bem fumado antes que os olhos
anoiteçam de todo é tudo quanto olho e peço:
muita gramática se insurgiu
a bordo de baleeiros, esfaqueando a neve
maus irlandeses e piores portugueses.
Hoje, mamas glaucas olham silicónicas
próstatas sem aposentação lupina,
adjectivo aliás mais próprio de raposa.
Eu não vejo, mas olho.
V. OBTUSA LÍRICA DOMINICAL
Viseu, Mundial Bar, fim da manhã de 3 de Agosto de 2008
Abomino mais do que domino, domingo,
o mundo – e, por extensão, a minha vida.
Ainda não é porém grave, entre tanto
modo de vida que nos dominabomina.
Um pouco de Brel pensando olhar água,
a azul de azulejo na barragem, domingo.
Ficar todavia toda a vida aqui, num café quieto,
entre posters do Benfica e cartazes de bailagostos.
A verdade que procuro não é para encontrar.
Frequento por fora o comércio: o das lojas
como o das pessoas, essas boas pessoas
que repetem o fabrico e o consumo e a verdade.
A beleza e a solidão parecem-me gémeas.
O sol não evita a noite em pleno dia.
Da gare rodoviária, três ou quatro almas
inventariam a humanidade toda e arredores.
A própria banha luz na pele dos rostos.
Circumnavega a lustral emigração
da boca para o coração, se penso em ti,
se alguns dos meus mortos por mim te pensa.
Ser o positivo dá homofobia, isso que a História
arrebanha pelos arvoredos municipais.
Na América dita Latina, uma cantina
serve cantigas e sais (mas não sais) minerais.
Perpétuo ensaio clínico, a vida é laboratorial.
Somos portugueses de Portugal: so what?
What-whatson-pedra-holmes
nos lavará, uma à outra, as mãos?
Espera-me à esquina descoroçoado encruzilhar
de cebolas e almas e enforcados e lápis.
Sou todo azul no manto sideral:
orgânico e visceral e velocipedista de beaux mots.
Agora é para sempre desde que nunca mais.
Eu quero uma mágoa domesticável.
Já não presto para este coração, filhas.
Esqueci-me dos rendimentos, não dos cedros.
Gosto de ver as pessoas repetindo-se, tais
ondas do mar fossem: espumosas, claras e,
afinal, invencíveis, as boas frias pessoas
torradas pela Lua Grande deste sertão, deste
ser tão pessoa na desumanidade.
Bailes em Agosto, ele há muitos, não os irei.
Estou recolhido no co-nãodomínio da alma.
Leio ainda palimpsestos e preços da fruta.
Efabulo fracamente, aliás e a lilás.
Gosto de cores: o preto, o branco. A cinza.
Deu(s)-me para isto: ser um anjo
não voador, atento à terminação e ao romanesco.
Francas ruas, encerradas artérias: eu vejo
dos vivos a passante sereia ao farol alteada:
canoro rastilho de doenças vitomortais,
além de Proust muito dandy, muito David Suchet.
Belas palavras. Cruz ilhada bem-querença
ao desumano género que de gatos povoa Lisboa
e a Vida e arredores. Um barco, um bramir,
uma entraciclopèdiada: algum nome, duas datas.
Agora faço sobretudo escrever quadras sobre nada.
É a minha vida, Mãe.
Há-de haver um refúgio (um refugo) nisto:
uma absolvição. Se não, uma insolação.
Trago-te à trela, coração é a única coisa
que me ocorre para dizer corda.
Na Noruega, faria de preto ba(m)bilónico:
nunca, como aqui em casa me perceberiam
as quadras, a obtusa lírica dominical.
Olha a triste beleza: palavras portuguesas:
quadril, cenho, canja, espaldar, cós,
ricto, manjar, tez, borborigmo, anacoreta.
Preta opereta de lustres aurígneos: A Raposinha
Matreira, checa em branco. Reembolsa e
bolça: paga o que deves por ter nascido
de um convulso, como a tosse, amor.
Maio, algures na minha vida. Um salto colector
de margaridas, um lapso e uma elipse,
um desenho absolutamente trabalhador de
cerejas, atenta a obra civil suburpovoadora.
De quantos novembros seremos capazes, humanamente?
Estas pedras históricas, que nos olham na cidade
como oliveiras perpétuas, vitalícias despedidas
iguais a barcos que titanicam tudo
e nada? Ai eu, tu ai. As pessoas reflexas
como verbos de coçar, de caçar, de dizer adeus
a Deus, nós que não cremos nem crimos
nunca todavia e porém, entre tanto
deus-de-aluguer. E se for um cancro?
Haverá ele Segurança Social?
Miríade de telefonopoemas de um lado
(Campo de Ourique) para (Algés) outro?
Isto é tudo tão a sério, que me faz rir.
(A vírgula entre o sério e o que é normativa.)
As pessoas dão-se a não rir rios, perdem
com isso margens (de lucro).
O domingo, olha agora. Treze dias
são um minuto solar: e a Lua
concede passa-emanações de ventre,
atento o relógio das mulheres, o ponteiro dos homens.
Toda a língua quando faltar a boca.
O trânsito ribeirinho pela terra seca.
O Chiado ’té ao Rossio nos anos 30-XX,
nunca menos que trinta. E um.
As pobres bombas carbonárias.
Os mortos da Estrela.
O talhão militar pago a selos.
A estrela navegadora e o gajito magro de Santa Comba.
Disse’l’assim: Não tenho nada pa’ te dizer.
Falei mal, mas disse bem: a mulher
também é de redondos vocábulos, umas
somas agroaciprestes.
Um simples toque de dedo no cérebro molecular.
Ruas a fio proibidas de fumar: Maio-68
dá merdasquerdas pa’ teatros à direita,
o Bronx, o West-End-Ham, o Coventry
de Crystal Garden. Muita chusma, muita
mourama ama não amar Cristo & Pedro &
o Peixe-Catacumba-de-Constantino-o-Créu-
-Burro-como-as-Casas-as-constantes-
-constantinoplas-da-cultura-geral-das-
-palavras-cruzadas-do-Diário-Popular-
-entretanto-extinto: entretanto ex-
-tinto como tudo o que, domingo,
não bebe, nem vive, a vida mesma,
a morte própria: palavras portuguesas,
domingo, virgo, ferrete, álacre lacre, nanja,
canja, espaldar, mino e mina: e azul.
VI. SETE POEMAS DE ABRIL DE 2008
Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008
1. Este Nosso Tempo
Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008
Este nosso tempo vivo ainda é do melhor que temos.
A noite instala seus trâmites arrefecedores, porém pomos à mesa uma fervura de caldo, um pão branco, as quatro mãos.
Laqueamos as janelas, atiramos as mantas: não recordaremos, não hoje.
Este nós vivos no tempo.
2. Câmbio
Ibidem
Já se me velaram muitas coisas, não as palavras, não ainda.
Por elas troquei a família e a vida.
Nunca me valerão quanto, e quem, troquei.
3. Fins
Ibidem
Pelo fim da tarde, pelo fim da vida,
é bom receber, da avenida,
a gorjeada luz, o som tão são
das aves que dão arribação
à melancolia, ao fim da vida e ao fim do dia.
4. Chega e Volta
Ibidem
Chegou-me a homem uma tristeza de menino
o sol raia ainda luminações melanc(o)ólicas
não sou já rapaz capaz de fazer o pino
nem o meu destino de alegrias eólicas.
Mas sinto o vento. Isso sinto. Sinto muito aliás
os funerais e as inaugurações de rotundas.
Aos domingos chego mesmo a ser audaz mas
rabo entre as pernas volto a casa por vielas imundas.
Volto. Volto sempre a casa. Ond’ela é isso não sei
que voltar volta-se sempre pelo pinhal qu’El-Rei
semeou para defender do mar a terra aonde voltar.
Uma tristeza de menino vai-me chegar.
5. A Minha L. M.
Ibidem
Isto nas minhas mãos: a minha vida.
Tão igual a um farrapo dourado, a um bilhete de comboio.
Tão como a tua precisa: e sem ambas precisão.
Isto além das minhas mãos: o meu mármore.
Isto além do meu amor: o meu nascimento.
Isto na minha vida: a minha língua manual.
6. Memória de um Menino Bem Comportado
Ibidem
As mulheres são os combatentes veros.
Os homens, combatidos e batidos, esperneiam gases,
intoxicações patrióticas, anemias ópticas.
As mulheres controlam o mercado.
Os homens, varridos a versos adversos, dão-se a agonias
nem sempre malfazejas: dependem da cal e das igrejas.
As mulheres buscam, caçam, prendem.
Os homens não as entendem.
7. Não É Mau é Meu
Viseu, tarde de 24 de Abril de 2008
(Pai, catorze anos sem)
I
Tenho a vida sentada no meu amor
não é mau que assim seja
sento-me aqui tomo um licor
sento-me e tomo uma cerveja
tenho o amor assente na minha vida
não toda a perderei. Assim seja.
II
O meu tempo é feito de coisas simplicíssimas
como viver e como morrer.
Nada está profundamente errado.
Tenho uma língua tenho um coração.
Não ando aqui a enganar ninguém.
Amo o que amo amo quem amo
mais desprezo do que odeio
o dia pôs-se bonito
mesmo chovendo não seria feio.
III
Escrevi há pouco um texto para a minha Mãe.
A revista estava no fecho, tinha de ser rápido.
Fui rápido a escrevê-lo, lento a senti-lo.
Era afinal um texto sobre a mulher da minha vida.
VII. EM TERRA DE PAI, ACORDA QUEM É FILHO
Viseu, Café Mundial, tarde de 4 de Agosto de 2008
Acordei esta manhã como se nasce: tarde.
Acordei tarde e iluminado pela certeza de morrer mais um pouco.
A outra vida dos móveis rumorejava no quarto, alastrando pela casa como um bolor musical.
A mulher existia a vida das mulheres: na invencível recordação para a frente.
Os retratos, que não olhei, olharam-me como cães muito cinzentos.
Um pouco de lixo e um pouco de ouro: uma casa normal: mal e norma e bem.
O carinho alimentar das gatas zunia comichões dorsais.
A língua mora-me (já-é-de-tarde) rente a um dente apodrecido.
Na madrugada, assisti aos fotogramas da concubinante solidão de Norma Jean, vulgo Marilyn, Monroe de nome de mãe.
Era outra vez isto.
Também vos digo que me pus de imediato a recolher informações: perto dos Correios, a maré láctea dos decotes das senhoras, o titubear sonífero dos toxis, a predadora navegação dos táxis, as vontades avinagradas pela existência real, um tudo ser outro, nisto, à vez.
(Eu ponho muita morte nos poemas porque o sexo me vai passando. Daqui que a minha poesia possível seja possivelmente boa para uma assexuação de bonecos sem genitália, embora o Google nos roube as filhas.)
Muito cedo na minha vida, levaram-me a Antuzede ao funeral de um senhor.
Ele tinha envelhecido tudo de repente.
Entre Deus e o cemitério, tiveram de poisá-lo como um pássaro ao sol ardente.
Recordo esse clarão.
Percebi de imediato que, quando me sucedesse o ingressar no rol de coisas a pegar, deveria ter escrevisto dotes mamários, consumpções, heroilíricas e versos.
Esta manhã, portanto, acordei em Antuzede.
VIII. FUNCIONAMENTO MARINHO
Viseu, fim da manhã e noite de 8 de Agosto de 2008
Suponho que a esta hora, alhures, o mar esteja em funcionamento.
Não o reverei hoje, tão depressa o não reaverei.
Perdi-me dele em terra que sobe pedras ao céu, esse outro mar de peixes de diamante povoado.
Outrora segui as passadas dos pássaros na areia.
Como se dirigia eles a lado nenhum, me dirigi eu a lado algum.
Ainda fecho os olhos entre pedras para frequentar os círculos deles, quando sobrevoam o mar que perdi, que não reverei nem reaverei.
IX. DORMIR
De comboio, Pombal-Mangualde, tarde de 12 de Agosto de 2008
O meu Pai está a dormir há alguns anos dentro da terra, eu estou na terra descalço.
Ele ensinou-me a atirar pedras às árvores, eu atiro pedras às árvores.
O meu Pai é um homem que está a dormir.
O meu Pai é um homem muito bonito dentro do sono, apesar de seus defeitos.
O meu Pai está a dormir dentro da terra, eu escrevo-o a ele dentro de um comboio, eu estou acordado dentro do dormir dele, pode ser que por causa de ele ter amado tanto os meninos que se descalçam na terra.
O meu Pai é um homem a dormir a partir de um retrato.
Os mortos exercem sempre uma autoridade fotográfica.
Qualquer homem num comboio tirou o bilhete para o Pai.
Ele não vem.
O comboio vai.
X. (NO INTERVALO DAS ÁRVORES)
Viseu e Molelos, tarde de 14 de Agosto de 2008
Somos as presas da floresta dos dias.
Não o semelhamos talvez, mas somo-lo decerto.
Lavamo-nos com água azul e sabão frio,
saímos a preencher os lugares (dos) cativos:
as estações gasolineiras, as dos caminhos-de-ferrro,
as dos anos: outono, inverno, outono e inverno.
O nosso mal não é nunca o menor,
o amor entre os quais principais.
Quem me dera revoar paradamente,
ter um emprego nos Correios, aceitar
as cartas das pessoas que ainda
escrevem.
É muito bom o sol nas praças, o incêndio
termonuclear das estátuas cada vez mais e mais
verdes, como nós envelhecendo, verdes.
Que bonitas são as descuidadas raparigas
melhorando o próprio leite pelas frescas
sombras da rua que desce de buganvílias
até onde o santo tocou os animais e o rio.
Ainda outro dia me aconteceu falar sozinho
perto da praça de táxis: aproveitei todas
essas frases para um poema que não pude
’inda escrever porque agora é a vez deste,
verde.
Somos o intervalo das árvores, idem do
carros. A cidade precisa de nós por razões
estratégicas, que vão da grelha estatística
à gastronomia regional: precisa de
nós para que aceitemos as reses, os planos
dormitórios, a menstruação dos vereadores.
Talvez não seja ainda hoje o dia
que a noite escolha para nos levar
a dormir perto de água-sabão azul e fria.
Estes golpes no gongo do coração,
o sangue mineral gaseificando as têmporas,
a ansiedade rondando a barriga da presa.
Os casais de turistas consumindo café com leite
e coisas com mostarda. Mas: uma álea de
pereiras-de-inverno no reverso da ideia,
a resistência floral dos ossos da cara: e a
cara quando sobe a ser rosto, norte
das nossas mãos tão portuguesas, tão bonitas.
Vamos lá a ver uma coisa: a vida, pagamo-la
com a vida – e nem troco nos dão, também
quem no-lo daria, senão nós? Viva mas é
a beleza, apesar de tudo tanta ainda: o
sol na praça onde já choveu e choverá,
os pés muito brancos das mulheres: como
se calçassem neve. Esta morrinha perpétua
de pensar a vida em vez de vivê-la, isto terá
de acabar. Calma. Com um pouco de imaginação,
é-nos possível ver alguma ponte ardendo de luz
no azul muito puro da imaginação, tão
melhor fundamentada do que a realidade.
Bitter afternoon endings were the daytime they’ve
chosen to a lesser bitter bit of a conversation,
and a drink or two or twelve – por assim
dizer, embora fora mais bem dizer
nigh’time instead. Tudo uma questão de
terminações (de anjos) – por assim dizer.
Sim, as presas somos – e, pessoas, umas
às outras presas: e predatórias.
Um derradeiro assomo de primeira lucidez
nos acode: e que é o de a língua portuguesa
ser a última oportungalinidade – por
assim dizer.
(Se me perguntasses se quero dormir,
responder-te-ia sabão e água e frio e azul.
E o rosto a norte e as mãos a sul.
E ainda assim, ó florestal, sorrir:
que a muito sobe quem a rosto aurou
quanta e cada cara olhou.)
(Uma mulher descalça e civilizada,
a seu fortuito animal pessoal domesticada:
a ela quero ainda, menino não de todo ido
às pastagens demográficas da mortal estatística.
Se um menino aprende um idioma,
a presa apreende um idioma.)
Transitamos ruas de traça medieval,
ardem auríferos os bolos de bacalhau,
os pedintes portam um boné da Selecção Nacional
por um cêntimo, mas de preferência um euro,
a senhora vereadora desce a chefe de gabinete,
são cada vez mais fáceis os divórcios e os amores.
Esta é a floresta dos dias: estes os cafés de província,
onde bigornar a poesia e a sede a duros martelos
ferradores da hora crua, estes os homens e estes
os animais e estas as mulheres como árvores de figo
dando a áspera gota de leite dulcíssimo,
onde as crianças repetem o terror e a luz.
A vida às vezes desaparece – e ficamos
só nós sós nos intervalos dela, isso a que
é possível chamar interlúdios para disfarçar.
O papel do ardendo-lhe de luz os cantos,
torrando-se os laranjais, o budismo das hortas,
um ribeiro gelando os dentes maravilhosamente.
XI. (FADO A ATIRAR PÓ RELIGIOSO)
Viseu, manhã de 20 de Agosto de 2008
Movediça comoção concorre ao som do sino
da branca torre antiga provindo.
Dá a crua manhã o dia por findo
– e a noite se devolve a destino.
Viseu, hora de almoço, última ceia.
Iscariota-se vagamente pelas vielas.
Josés piolham a areia arimateia.
Marias mui se tunicam amarelas.
Passa um camelo, um vago mago rei.
Deus sempre foi Menino p’ra isto:
operado a um tumor morre dum quisto
um padre cujo nome já nem sei.
Votiva-se a usuras relicárias
o ardente tesouro espoliado
na manhã de fés tão urticárias
quão várias as letras deste (en)fado.
XII. CENTO E MUITOS MORTOS EM BARAJAS
Molelos, tarde de 20 de Agosto de 2008
Cento e muitos mortos em Barajas, Madrid.
O avião fez-se bola de fogo ao cabo da pista.
Neste café, uma grávida fuma em plena placidez.
Há caracóis, diz-me um papel, mas tenho as moedas contadas para o gasóleo, que sempre arde menos do que a gasolina de avião.
A vida vai-se fazendo disto e desfazendo disto também.
Esta é uma sala aprazível, a dos fumadores.
Há uma lareira: boca negra que é bom ver carburar o ouro íntimo da lenha, no inverno.
Agora ainda é verão, mas isto passa.
Há muita mosca nesta altura, os televisores dos cafés estão todos ligados à TVI, não vivemos tempos fáceis.
Envelhecer pode não ser uma opção sensata, na vida.
(Digo isto mas já fumo menos, assim como quem não quer a coisa.)
Às dezanove e vinte e cinco arranco o cu da cadeira e faço-me à estrada.
Chego ao cimo da serra, ainda é dia.
Ponho a rádio naquela estação dos pianos e dos violoncelos e vou fazendo por não pensar de mais no nada do costume.
Vou com atenção à estrada e ao ponteiro do depósito.
Apesar de tudo, a vida sempre é uma coisa que merece atenção, embora nem sempre.
(Isto digo mas nunca deixo de colher a fruta que as árvores mais extremas dos quintais abandonam pelo chão, como se foram rainhas dadoras de pão.)
Já estive em Barajas duas vezes, mas uma à (v)ida e outra à vi(n)da.
Não conto lá voltar.
XIII. TUDO O QUE SABES DESTE HOMEM
Viseu, Bar Estado d’ Alma, fim da manhã de 25 de Agosto de 2008
Tudo o que sabes deste homem cruzando a praça
não passa disto: nasceu e morrerá.
Canoras papoilas são os ruivos pássaros
que fazem chilrear as árvores municipais.
Orquestra de cordas claras é a fonte,
luminosa de água canora ela também.
Pega na minha mão, aprecia quão
pobre estrela ela é, ainda assim aberta.
Pega na mão desse homem cruzando a praça,
não passa de uma mão de homem, uma estrela.
XIV. SEREI FINALMENTE FINAL
Viseu, Restaurante Colmeia, noite de 25 de Agosto de 2008
Serei finalmente final e velho
quando o corpo de todas as mulheres
for igual ao da minha Mãe
quando já nenhuma sede
e água nenhuma.
Serei velho
então
e então
estarei prontíssimo
para morrer
ou
digamos
para renascer.
XV. GPS COM RIMAS PORTUGUESAS E OLHOS DE MULHER PRÓPRIA
Viseu, Praça do Rossio, tarde de 27 de Agosto de 2008
Rola o planeta repletamente pleno
de animais não isentos de humanidade:
a pomba económica, o cão esmoler
e um gato cujos olhos são azuis e iguais
aos da minha mulher.
Fartam-se os municípios de estoirar recursos
e reservas ecológicas com putas de aluguer:
mas gatos há neste planeta de iguais e azuis olhos
aos da minha mulher.
Muito pode a concentração das petroleiras.
Muito pode a filhassimplesdeputice.
Pouco pode Alice ante suas mesmas autistas
maravilhas (tanto Alice quanto nossas filhas).
Mas quando Alice for mulher,
há-de querer, e até crer, ter iguais olhos
aos azuis da minha mulher.
Por aqui ando, no planeta breve
do poder local, cancro pouco benigno
do poder revolucionário que mal houve em Portugal.
Passa o vereador idiotizado
por mesmerismo de televisão.
Passa o assessor, que é assessor
e cabrão – por atributo de funções,
que mais se assessora quem mais troca a
própria senhora
por colhões.
Rola o planeta plenamente repleto:
e abaixo o acordortográfico que é
um peido obsoleto.
Pela minha vida, breve tal vossa por igual,
olhos de mulher, ortografia de Portugal:
Portugal, ó pátriazinha, azul, mor(t)al
e azul e minha.
Portugal, minha pátria nossa que, quando quer,
tem iguais olhos azuis aos da minha mulher.
I. LINHAS DE PARTIDA
Viseu, Casa de Pasto A Marisqueira, horalmoço de 26 de Setembro de 2008
Estou de partida, vou deixar estas cónegas ruas, estas praças a este sol. Para onde vou (para onde vamos), não sei. Tenho uma ideia, mas não sei: não é isso pensar? É um ciclo que se me fecha. Gostei destas pedras. Viseu é uma cidade onde uma pessoa (ou duas), enfim. Deixo-vos hoje estas muitas linhas. Como todas as que escrevi (como todas as que li), são de partida. É certo que às vezes regressamos: a uma cidade, a um corpo, a um olhar, a uma gare rodoferroviária, a uma linha. Ainda esta manhã pensava nisto. Para não mais pensar, escrevo. Escrevo para não pensar. Serei mais sincero ainda: escrevo para não viver.
Seguem-se linhas. Elas não têm importância. Ou têm uma importância que não vale – ou um valor que não importa. O que me importa, é telefonar de vez em quando à minha Mãe, é procurar nomes de pessoas que já não há para poder nomear personagens de livros que não escrevi. Importa-me uma sardinheira numa mansarda, sobre que uma cabeça de mulher antiga e portuguesa. Importa-me o perfil de um castelo: caligrafia mineral do Tempo: e certificado de duradoura finitude.
Escrevo estas coisas com uma cara muito séria. Hoje, tive de almoçar sozinho. A mulher meteu-me uma nota no bolso, disse-me que viesse aqui comer, eu vim. Lá para onde vamos, que crepúsculos matinais parelhos nos esperarão? Os mesmos outros. Isto é todo o Tempo: estes hojes volvendo-se linhas, partidas.
À minha frente, avó e neta. Populares. A velha, de carrapito capilar apertado a malha de seda-nylon. A púbere, de óculos de plástico escuros como pisaduras. A velha, bacalhau. A nova, febra de porco. A velha, tinto. A moça, coca-cola.
Respiradouros: as linhas respiram, são como aqueles bichos que abrem buracos na onda que recolhe da areia. Respiram a invencível finitude. (Mas sei que vamos para não muito longe do mar.)
De modo que em breve gaivotas. Não já só pombas. Não tem importância.
II. ESTE SÍTIO DAS MANHÃS ME DESPEÇO
Viseu, Café Penedo da Sé, manhã de 26 de Setembro de 2008
Este sítio das manhãs me despeço.
Quando se a ele e elas retornarei
não sei.
Vou ver outras pombas
as mesmas decerto na minha vida mesma.
Os mesmos outros homens antigos
de chapéu-de-chuva aberto ao aberto sol
reterei
lá para onde sigo agora
como antes.
III. DE BOTAS
Viseu, perto dos Correios, tarde de 18 de Setembro de 2008
No pólo sul de uma pessoa vi esta tarde umas botas iguais às que há um ano desejo à passagem pela sapataria da Rua Direita. O melhor atavio da pessoa resultava-lhe daquelas botas. O vestuário era regular: limpo, de cor neutra, sem outra mensagem que a da neutralidade mesma. Casaco escuro, de um azul fechado. Camisa de cor e consistência de casca de ovo. Cinto de matéria sintética e fivela rectangular. Calça castanho-terra, mas de terra sobre que choveu há pouco. E então, magníficas, a sul de tudo, aquelas botas irmãs das minhas, que não tenho.
Segui-as pela cidade. Repeti-lhes os passos, o meu desejo calçando-as. Vi-as esperar enquanto a pessoa comprava um chocolate numa confeitaria que está há anos em trespasse: como todos nós. Vi-as avançando devagar na fila para entrega do boletim do euroloto. Vi-as cercadas de pombas no rossio municipal, sob uma chuva de migalhas de pão. Vi a direita esmagar sem conhecimento uma ampola perdida em frente à gare rodoviária. Depois isto passou – vai daí, era outra a manhã.
IV. UM HOMEM NEM SEMPRE VÊ
Viseu, Mundial Bar, manhã de 3 de Agosto de 2008
Um homem nem sempre vê: é lobo só quando é cego,
é uma condição até triste, só aqui entre nós
que ninguém nos ouve.
Uma mulher, não sei.
Tenho este homem para não ver.
Delicadas faianças expostas em alheias casas
marilynmonroem envelhecidos chás barbitúricos:
do que sobra, cobra
o tempo impropérios e ciprestes:
e impérios e infâncias
e roubos na região.
Ai estas estrofes obtidas a pulso!
Ai tanta malvasia mal cheia alhures!
Não me vem da pulsação qualquer gnosia!
Não me vem da noite manhã nem dia!
Um homem nem sempre é lobo.
É homem sempre um lobo bem filmado.
Sábados de manhã, nos documentários
há crianças antes, ante-têvês.
A vida foi toda tanta há tantos anos,
que uma criança num homem, sábadànoite,
nem procura remédio, nem elixires,
nem descontos especiais antoceanos.
Era ter lido mais o Raul Brandão. E o
da Lisboa em Camisa, o Gervásio Lobato.
Um lobo também precisa de ser gato
ao pé dum pires, sei,
de um império cordato para o preto.
Um cigarro bem fumado antes que os olhos
anoiteçam de todo é tudo quanto olho e peço:
muita gramática se insurgiu
a bordo de baleeiros, esfaqueando a neve
maus irlandeses e piores portugueses.
Hoje, mamas glaucas olham silicónicas
próstatas sem aposentação lupina,
adjectivo aliás mais próprio de raposa.
Eu não vejo, mas olho.
V. OBTUSA LÍRICA DOMINICAL
Viseu, Mundial Bar, fim da manhã de 3 de Agosto de 2008
Abomino mais do que domino, domingo,
o mundo – e, por extensão, a minha vida.
Ainda não é porém grave, entre tanto
modo de vida que nos dominabomina.
Um pouco de Brel pensando olhar água,
a azul de azulejo na barragem, domingo.
Ficar todavia toda a vida aqui, num café quieto,
entre posters do Benfica e cartazes de bailagostos.
A verdade que procuro não é para encontrar.
Frequento por fora o comércio: o das lojas
como o das pessoas, essas boas pessoas
que repetem o fabrico e o consumo e a verdade.
A beleza e a solidão parecem-me gémeas.
O sol não evita a noite em pleno dia.
Da gare rodoviária, três ou quatro almas
inventariam a humanidade toda e arredores.
A própria banha luz na pele dos rostos.
Circumnavega a lustral emigração
da boca para o coração, se penso em ti,
se alguns dos meus mortos por mim te pensa.
Ser o positivo dá homofobia, isso que a História
arrebanha pelos arvoredos municipais.
Na América dita Latina, uma cantina
serve cantigas e sais (mas não sais) minerais.
Perpétuo ensaio clínico, a vida é laboratorial.
Somos portugueses de Portugal: so what?
What-whatson-pedra-holmes
nos lavará, uma à outra, as mãos?
Espera-me à esquina descoroçoado encruzilhar
de cebolas e almas e enforcados e lápis.
Sou todo azul no manto sideral:
orgânico e visceral e velocipedista de beaux mots.
Agora é para sempre desde que nunca mais.
Eu quero uma mágoa domesticável.
Já não presto para este coração, filhas.
Esqueci-me dos rendimentos, não dos cedros.
Gosto de ver as pessoas repetindo-se, tais
ondas do mar fossem: espumosas, claras e,
afinal, invencíveis, as boas frias pessoas
torradas pela Lua Grande deste sertão, deste
ser tão pessoa na desumanidade.
Bailes em Agosto, ele há muitos, não os irei.
Estou recolhido no co-nãodomínio da alma.
Leio ainda palimpsestos e preços da fruta.
Efabulo fracamente, aliás e a lilás.
Gosto de cores: o preto, o branco. A cinza.
Deu(s)-me para isto: ser um anjo
não voador, atento à terminação e ao romanesco.
Francas ruas, encerradas artérias: eu vejo
dos vivos a passante sereia ao farol alteada:
canoro rastilho de doenças vitomortais,
além de Proust muito dandy, muito David Suchet.
Belas palavras. Cruz ilhada bem-querença
ao desumano género que de gatos povoa Lisboa
e a Vida e arredores. Um barco, um bramir,
uma entraciclopèdiada: algum nome, duas datas.
Agora faço sobretudo escrever quadras sobre nada.
É a minha vida, Mãe.
Há-de haver um refúgio (um refugo) nisto:
uma absolvição. Se não, uma insolação.
Trago-te à trela, coração é a única coisa
que me ocorre para dizer corda.
Na Noruega, faria de preto ba(m)bilónico:
nunca, como aqui em casa me perceberiam
as quadras, a obtusa lírica dominical.
Olha a triste beleza: palavras portuguesas:
quadril, cenho, canja, espaldar, cós,
ricto, manjar, tez, borborigmo, anacoreta.
Preta opereta de lustres aurígneos: A Raposinha
Matreira, checa em branco. Reembolsa e
bolça: paga o que deves por ter nascido
de um convulso, como a tosse, amor.
Maio, algures na minha vida. Um salto colector
de margaridas, um lapso e uma elipse,
um desenho absolutamente trabalhador de
cerejas, atenta a obra civil suburpovoadora.
De quantos novembros seremos capazes, humanamente?
Estas pedras históricas, que nos olham na cidade
como oliveiras perpétuas, vitalícias despedidas
iguais a barcos que titanicam tudo
e nada? Ai eu, tu ai. As pessoas reflexas
como verbos de coçar, de caçar, de dizer adeus
a Deus, nós que não cremos nem crimos
nunca todavia e porém, entre tanto
deus-de-aluguer. E se for um cancro?
Haverá ele Segurança Social?
Miríade de telefonopoemas de um lado
(Campo de Ourique) para (Algés) outro?
Isto é tudo tão a sério, que me faz rir.
(A vírgula entre o sério e o que é normativa.)
As pessoas dão-se a não rir rios, perdem
com isso margens (de lucro).
O domingo, olha agora. Treze dias
são um minuto solar: e a Lua
concede passa-emanações de ventre,
atento o relógio das mulheres, o ponteiro dos homens.
Toda a língua quando faltar a boca.
O trânsito ribeirinho pela terra seca.
O Chiado ’té ao Rossio nos anos 30-XX,
nunca menos que trinta. E um.
As pobres bombas carbonárias.
Os mortos da Estrela.
O talhão militar pago a selos.
A estrela navegadora e o gajito magro de Santa Comba.
Disse’l’assim: Não tenho nada pa’ te dizer.
Falei mal, mas disse bem: a mulher
também é de redondos vocábulos, umas
somas agroaciprestes.
Um simples toque de dedo no cérebro molecular.
Ruas a fio proibidas de fumar: Maio-68
dá merdasquerdas pa’ teatros à direita,
o Bronx, o West-End-Ham, o Coventry
de Crystal Garden. Muita chusma, muita
mourama ama não amar Cristo & Pedro &
o Peixe-Catacumba-de-Constantino-o-Créu-
-Burro-como-as-Casas-as-constantes-
-constantinoplas-da-cultura-geral-das-
-palavras-cruzadas-do-Diário-Popular-
-entretanto-extinto: entretanto ex-
-tinto como tudo o que, domingo,
não bebe, nem vive, a vida mesma,
a morte própria: palavras portuguesas,
domingo, virgo, ferrete, álacre lacre, nanja,
canja, espaldar, mino e mina: e azul.
VI. SETE POEMAS DE ABRIL DE 2008
Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008
1. Este Nosso Tempo
Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008
Este nosso tempo vivo ainda é do melhor que temos.
A noite instala seus trâmites arrefecedores, porém pomos à mesa uma fervura de caldo, um pão branco, as quatro mãos.
Laqueamos as janelas, atiramos as mantas: não recordaremos, não hoje.
Este nós vivos no tempo.
2. Câmbio
Ibidem
Já se me velaram muitas coisas, não as palavras, não ainda.
Por elas troquei a família e a vida.
Nunca me valerão quanto, e quem, troquei.
3. Fins
Ibidem
Pelo fim da tarde, pelo fim da vida,
é bom receber, da avenida,
a gorjeada luz, o som tão são
das aves que dão arribação
à melancolia, ao fim da vida e ao fim do dia.
4. Chega e Volta
Ibidem
Chegou-me a homem uma tristeza de menino
o sol raia ainda luminações melanc(o)ólicas
não sou já rapaz capaz de fazer o pino
nem o meu destino de alegrias eólicas.
Mas sinto o vento. Isso sinto. Sinto muito aliás
os funerais e as inaugurações de rotundas.
Aos domingos chego mesmo a ser audaz mas
rabo entre as pernas volto a casa por vielas imundas.
Volto. Volto sempre a casa. Ond’ela é isso não sei
que voltar volta-se sempre pelo pinhal qu’El-Rei
semeou para defender do mar a terra aonde voltar.
Uma tristeza de menino vai-me chegar.
5. A Minha L. M.
Ibidem
Isto nas minhas mãos: a minha vida.
Tão igual a um farrapo dourado, a um bilhete de comboio.
Tão como a tua precisa: e sem ambas precisão.
Isto além das minhas mãos: o meu mármore.
Isto além do meu amor: o meu nascimento.
Isto na minha vida: a minha língua manual.
6. Memória de um Menino Bem Comportado
Ibidem
As mulheres são os combatentes veros.
Os homens, combatidos e batidos, esperneiam gases,
intoxicações patrióticas, anemias ópticas.
As mulheres controlam o mercado.
Os homens, varridos a versos adversos, dão-se a agonias
nem sempre malfazejas: dependem da cal e das igrejas.
As mulheres buscam, caçam, prendem.
Os homens não as entendem.
7. Não É Mau é Meu
Viseu, tarde de 24 de Abril de 2008
(Pai, catorze anos sem)
I
Tenho a vida sentada no meu amor
não é mau que assim seja
sento-me aqui tomo um licor
sento-me e tomo uma cerveja
tenho o amor assente na minha vida
não toda a perderei. Assim seja.
II
O meu tempo é feito de coisas simplicíssimas
como viver e como morrer.
Nada está profundamente errado.
Tenho uma língua tenho um coração.
Não ando aqui a enganar ninguém.
Amo o que amo amo quem amo
mais desprezo do que odeio
o dia pôs-se bonito
mesmo chovendo não seria feio.
III
Escrevi há pouco um texto para a minha Mãe.
A revista estava no fecho, tinha de ser rápido.
Fui rápido a escrevê-lo, lento a senti-lo.
Era afinal um texto sobre a mulher da minha vida.
VII. EM TERRA DE PAI, ACORDA QUEM É FILHO
Viseu, Café Mundial, tarde de 4 de Agosto de 2008
Acordei esta manhã como se nasce: tarde.
Acordei tarde e iluminado pela certeza de morrer mais um pouco.
A outra vida dos móveis rumorejava no quarto, alastrando pela casa como um bolor musical.
A mulher existia a vida das mulheres: na invencível recordação para a frente.
Os retratos, que não olhei, olharam-me como cães muito cinzentos.
Um pouco de lixo e um pouco de ouro: uma casa normal: mal e norma e bem.
O carinho alimentar das gatas zunia comichões dorsais.
A língua mora-me (já-é-de-tarde) rente a um dente apodrecido.
Na madrugada, assisti aos fotogramas da concubinante solidão de Norma Jean, vulgo Marilyn, Monroe de nome de mãe.
Era outra vez isto.
Também vos digo que me pus de imediato a recolher informações: perto dos Correios, a maré láctea dos decotes das senhoras, o titubear sonífero dos toxis, a predadora navegação dos táxis, as vontades avinagradas pela existência real, um tudo ser outro, nisto, à vez.
(Eu ponho muita morte nos poemas porque o sexo me vai passando. Daqui que a minha poesia possível seja possivelmente boa para uma assexuação de bonecos sem genitália, embora o Google nos roube as filhas.)
Muito cedo na minha vida, levaram-me a Antuzede ao funeral de um senhor.
Ele tinha envelhecido tudo de repente.
Entre Deus e o cemitério, tiveram de poisá-lo como um pássaro ao sol ardente.
Recordo esse clarão.
Percebi de imediato que, quando me sucedesse o ingressar no rol de coisas a pegar, deveria ter escrevisto dotes mamários, consumpções, heroilíricas e versos.
Esta manhã, portanto, acordei em Antuzede.
VIII. FUNCIONAMENTO MARINHO
Viseu, fim da manhã e noite de 8 de Agosto de 2008
Suponho que a esta hora, alhures, o mar esteja em funcionamento.
Não o reverei hoje, tão depressa o não reaverei.
Perdi-me dele em terra que sobe pedras ao céu, esse outro mar de peixes de diamante povoado.
Outrora segui as passadas dos pássaros na areia.
Como se dirigia eles a lado nenhum, me dirigi eu a lado algum.
Ainda fecho os olhos entre pedras para frequentar os círculos deles, quando sobrevoam o mar que perdi, que não reverei nem reaverei.
IX. DORMIR
De comboio, Pombal-Mangualde, tarde de 12 de Agosto de 2008
O meu Pai está a dormir há alguns anos dentro da terra, eu estou na terra descalço.
Ele ensinou-me a atirar pedras às árvores, eu atiro pedras às árvores.
O meu Pai é um homem que está a dormir.
O meu Pai é um homem muito bonito dentro do sono, apesar de seus defeitos.
O meu Pai está a dormir dentro da terra, eu escrevo-o a ele dentro de um comboio, eu estou acordado dentro do dormir dele, pode ser que por causa de ele ter amado tanto os meninos que se descalçam na terra.
O meu Pai é um homem a dormir a partir de um retrato.
Os mortos exercem sempre uma autoridade fotográfica.
Qualquer homem num comboio tirou o bilhete para o Pai.
Ele não vem.
O comboio vai.
X. (NO INTERVALO DAS ÁRVORES)
Viseu e Molelos, tarde de 14 de Agosto de 2008
Somos as presas da floresta dos dias.
Não o semelhamos talvez, mas somo-lo decerto.
Lavamo-nos com água azul e sabão frio,
saímos a preencher os lugares (dos) cativos:
as estações gasolineiras, as dos caminhos-de-ferrro,
as dos anos: outono, inverno, outono e inverno.
O nosso mal não é nunca o menor,
o amor entre os quais principais.
Quem me dera revoar paradamente,
ter um emprego nos Correios, aceitar
as cartas das pessoas que ainda
escrevem.
É muito bom o sol nas praças, o incêndio
termonuclear das estátuas cada vez mais e mais
verdes, como nós envelhecendo, verdes.
Que bonitas são as descuidadas raparigas
melhorando o próprio leite pelas frescas
sombras da rua que desce de buganvílias
até onde o santo tocou os animais e o rio.
Ainda outro dia me aconteceu falar sozinho
perto da praça de táxis: aproveitei todas
essas frases para um poema que não pude
’inda escrever porque agora é a vez deste,
verde.
Somos o intervalo das árvores, idem do
carros. A cidade precisa de nós por razões
estratégicas, que vão da grelha estatística
à gastronomia regional: precisa de
nós para que aceitemos as reses, os planos
dormitórios, a menstruação dos vereadores.
Talvez não seja ainda hoje o dia
que a noite escolha para nos levar
a dormir perto de água-sabão azul e fria.
Estes golpes no gongo do coração,
o sangue mineral gaseificando as têmporas,
a ansiedade rondando a barriga da presa.
Os casais de turistas consumindo café com leite
e coisas com mostarda. Mas: uma álea de
pereiras-de-inverno no reverso da ideia,
a resistência floral dos ossos da cara: e a
cara quando sobe a ser rosto, norte
das nossas mãos tão portuguesas, tão bonitas.
Vamos lá a ver uma coisa: a vida, pagamo-la
com a vida – e nem troco nos dão, também
quem no-lo daria, senão nós? Viva mas é
a beleza, apesar de tudo tanta ainda: o
sol na praça onde já choveu e choverá,
os pés muito brancos das mulheres: como
se calçassem neve. Esta morrinha perpétua
de pensar a vida em vez de vivê-la, isto terá
de acabar. Calma. Com um pouco de imaginação,
é-nos possível ver alguma ponte ardendo de luz
no azul muito puro da imaginação, tão
melhor fundamentada do que a realidade.
Bitter afternoon endings were the daytime they’ve
chosen to a lesser bitter bit of a conversation,
and a drink or two or twelve – por assim
dizer, embora fora mais bem dizer
nigh’time instead. Tudo uma questão de
terminações (de anjos) – por assim dizer.
Sim, as presas somos – e, pessoas, umas
às outras presas: e predatórias.
Um derradeiro assomo de primeira lucidez
nos acode: e que é o de a língua portuguesa
ser a última oportungalinidade – por
assim dizer.
(Se me perguntasses se quero dormir,
responder-te-ia sabão e água e frio e azul.
E o rosto a norte e as mãos a sul.
E ainda assim, ó florestal, sorrir:
que a muito sobe quem a rosto aurou
quanta e cada cara olhou.)
(Uma mulher descalça e civilizada,
a seu fortuito animal pessoal domesticada:
a ela quero ainda, menino não de todo ido
às pastagens demográficas da mortal estatística.
Se um menino aprende um idioma,
a presa apreende um idioma.)
Transitamos ruas de traça medieval,
ardem auríferos os bolos de bacalhau,
os pedintes portam um boné da Selecção Nacional
por um cêntimo, mas de preferência um euro,
a senhora vereadora desce a chefe de gabinete,
são cada vez mais fáceis os divórcios e os amores.
Esta é a floresta dos dias: estes os cafés de província,
onde bigornar a poesia e a sede a duros martelos
ferradores da hora crua, estes os homens e estes
os animais e estas as mulheres como árvores de figo
dando a áspera gota de leite dulcíssimo,
onde as crianças repetem o terror e a luz.
A vida às vezes desaparece – e ficamos
só nós sós nos intervalos dela, isso a que
é possível chamar interlúdios para disfarçar.
O papel do ardendo-lhe de luz os cantos,
torrando-se os laranjais, o budismo das hortas,
um ribeiro gelando os dentes maravilhosamente.
XI. (FADO A ATIRAR PÓ RELIGIOSO)
Viseu, manhã de 20 de Agosto de 2008
Movediça comoção concorre ao som do sino
da branca torre antiga provindo.
Dá a crua manhã o dia por findo
– e a noite se devolve a destino.
Viseu, hora de almoço, última ceia.
Iscariota-se vagamente pelas vielas.
Josés piolham a areia arimateia.
Marias mui se tunicam amarelas.
Passa um camelo, um vago mago rei.
Deus sempre foi Menino p’ra isto:
operado a um tumor morre dum quisto
um padre cujo nome já nem sei.
Votiva-se a usuras relicárias
o ardente tesouro espoliado
na manhã de fés tão urticárias
quão várias as letras deste (en)fado.
XII. CENTO E MUITOS MORTOS EM BARAJAS
Molelos, tarde de 20 de Agosto de 2008
Cento e muitos mortos em Barajas, Madrid.
O avião fez-se bola de fogo ao cabo da pista.
Neste café, uma grávida fuma em plena placidez.
Há caracóis, diz-me um papel, mas tenho as moedas contadas para o gasóleo, que sempre arde menos do que a gasolina de avião.
A vida vai-se fazendo disto e desfazendo disto também.
Esta é uma sala aprazível, a dos fumadores.
Há uma lareira: boca negra que é bom ver carburar o ouro íntimo da lenha, no inverno.
Agora ainda é verão, mas isto passa.
Há muita mosca nesta altura, os televisores dos cafés estão todos ligados à TVI, não vivemos tempos fáceis.
Envelhecer pode não ser uma opção sensata, na vida.
(Digo isto mas já fumo menos, assim como quem não quer a coisa.)
Às dezanove e vinte e cinco arranco o cu da cadeira e faço-me à estrada.
Chego ao cimo da serra, ainda é dia.
Ponho a rádio naquela estação dos pianos e dos violoncelos e vou fazendo por não pensar de mais no nada do costume.
Vou com atenção à estrada e ao ponteiro do depósito.
Apesar de tudo, a vida sempre é uma coisa que merece atenção, embora nem sempre.
(Isto digo mas nunca deixo de colher a fruta que as árvores mais extremas dos quintais abandonam pelo chão, como se foram rainhas dadoras de pão.)
Já estive em Barajas duas vezes, mas uma à (v)ida e outra à vi(n)da.
Não conto lá voltar.
XIII. TUDO O QUE SABES DESTE HOMEM
Viseu, Bar Estado d’ Alma, fim da manhã de 25 de Agosto de 2008
Tudo o que sabes deste homem cruzando a praça
não passa disto: nasceu e morrerá.
Canoras papoilas são os ruivos pássaros
que fazem chilrear as árvores municipais.
Orquestra de cordas claras é a fonte,
luminosa de água canora ela também.
Pega na minha mão, aprecia quão
pobre estrela ela é, ainda assim aberta.
Pega na mão desse homem cruzando a praça,
não passa de uma mão de homem, uma estrela.
XIV. SEREI FINALMENTE FINAL
Viseu, Restaurante Colmeia, noite de 25 de Agosto de 2008
Serei finalmente final e velho
quando o corpo de todas as mulheres
for igual ao da minha Mãe
quando já nenhuma sede
e água nenhuma.
Serei velho
então
e então
estarei prontíssimo
para morrer
ou
digamos
para renascer.
XV. GPS COM RIMAS PORTUGUESAS E OLHOS DE MULHER PRÓPRIA
Viseu, Praça do Rossio, tarde de 27 de Agosto de 2008
Rola o planeta repletamente pleno
de animais não isentos de humanidade:
a pomba económica, o cão esmoler
e um gato cujos olhos são azuis e iguais
aos da minha mulher.
Fartam-se os municípios de estoirar recursos
e reservas ecológicas com putas de aluguer:
mas gatos há neste planeta de iguais e azuis olhos
aos da minha mulher.
Muito pode a concentração das petroleiras.
Muito pode a filhassimplesdeputice.
Pouco pode Alice ante suas mesmas autistas
maravilhas (tanto Alice quanto nossas filhas).
Mas quando Alice for mulher,
há-de querer, e até crer, ter iguais olhos
aos azuis da minha mulher.
Por aqui ando, no planeta breve
do poder local, cancro pouco benigno
do poder revolucionário que mal houve em Portugal.
Passa o vereador idiotizado
por mesmerismo de televisão.
Passa o assessor, que é assessor
e cabrão – por atributo de funções,
que mais se assessora quem mais troca a
própria senhora
por colhões.
Rola o planeta plenamente repleto:
e abaixo o acordortográfico que é
um peido obsoleto.
Pela minha vida, breve tal vossa por igual,
olhos de mulher, ortografia de Portugal:
Portugal, ó pátriazinha, azul, mor(t)al
e azul e minha.
Portugal, minha pátria nossa que, quando quer,
tem iguais olhos azuis aos da minha mulher.
1 comentário:
Frenético (como costumo dizer num certo tempo de mim e dos outros) "ainda bem".À vida (não dou conselhos) não temos outra saída.
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