29/09/2008

Fala a Boneca Partida

© Clarence John Laughlin - A Strange Situation, 1938





Viseu, manhã de 29 de Setembro de 2008






Às vezes consigo recordar sonhos como o de ter nascido.
Apareço nesse sonho como uma boneca partida.
O corpo vibra muito para ser uma árvore, um rio, uma coisa assim.
Desperto na luz crua, deixaram a janela do quarto aberta,
o frio entra duro pela luz como uma pedra, uma coisa assim.

As palavras musselinam-se todas nas cortinas, vestem senhoras
brancas de olhos esvaziados na cor do céu, longe como o mar.
Entro na taberna e não escrevo, quase não vejo, escuto
a história da humidade nas paredes, as garrafas de ginja,
o amor pátrio, o hálito avinagrado dos peixes deitados na morte.

Retiro as minhas conclusões e perco o sonho, o nascimento.
Envelheço na sombra física, queres-fiado-toma.
Aqui na terra não há escritores, foram todos para a Suíça.
Às vezes quero falar com alguém, mas alguém fechou a janela.
Deito-me no quarto e espero renascer, os olhos abertos no escuro.

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Canzoada Assaltante