Retorno
Viseu, tarde de 14 de Setembro de 2008
Estendidos nodosos troncos de árvore sob pele: as veias das mãos do homem velho.
Vi-o passar, mesmo, agora, o olhar noutro tempo, não no nosso, no meu sim.
Fendido lagarto dele o rosto: máscara e tempo e máscara e tempo.
Muito limpo, muito correcto: a jaqueta impoluta de terileno-creme, a calça fazendeira de vinco-tíbia, os sapatos espelhados a negro de graxa como uma sideração cósmica.
Um pardal, por assim dizer.
Eu amo a visão dos homens velhos.
Ele mostram-me como vai ser.
Eles dão-nos recados da soludissolução.
Pó ao pó, cinza à cinza: matéria estelar.
Na estela (na esteira), duas datas, um nome.
Um domingo qualquer: ter vivido tudo antes.
Gás e árvores e luz e sobremaneiras: atenta atitude comedora, a dos pombos, a dos velhos.
Uma velha vi eu hoje rechupando o carioca de café: lavada, ela também, a blusa cinza (à cinza), o ouro nas mãos.
O ouro nas duas mãos, o decote sardento, a laca imobilizadora de cançonetista anos-60.
Eu vejo dentro.
O passeio dos senhores que ao domingo.
O tempo que se prepara no cimento e na geografia.
Passamos pessoas umas pelas outras como vento-árvores.
Ramalhamos, fazemos cocó cor-de-chumbo, pipilamos vozes pede-migalhas.
Ao poema de ontem retorno para primeiras
rosas últimas.
Partida
Viseu, tarde de 13 de Setembro de 2008
Um dia colherás por último as primeiras rosas
que a manhã orvalhou na tua doença jardineira.
Esse dia será de noite, pela manhãzinha.
Terás franco acesso ao desespero, essa feira
que merca corações desavindos de peitos.
Toda a agonia é uma literatura portátil,
pessoalíssima e intransmissível.
E tu rumarás à alba-cinza-lunar.
Fala, porém, enquanto vivo, com teus mortos.
Eles te dirão a grande poesia de esquecer.
Dir-te-ão como às defuntas putas tornou a virtude.
Protege-te da chuva ácida de chorar.
Se de tal te protegeres um dia, aquele outro dia
te não doerá tanto.
Uma das fontes da cabeça marulha borborigmos:
água da intestina saudade dos vivos
que amar te foi possível, entre vidros.
Os vivos todos: as pessoas mortas, os animais
que correram por alegria à tua sombra.
O número da casa pintado em azulejo.
E a garagem onde a primeira sexualidade
te condenou ao lego da solidão.
Aquela álea de pereiras-de-inverno.
A almácega vitrificada de gelo e de sombras de rolas.
A infância: o instante total.
E este pedir-de-morrer-aos-versos.
A volta nocturno pelos bebedouros, a poesia.
O Clark Gable a diz
Frankly, my dear, I don’t give a damn.
Aquela álea de pereiras-de-inverno.
Um dia tu verás sem ter de olhar.
As mamas lubrificadas de seiva das mulheres.
A condição gansa da puberdade.
A tua e nossa Mãe mijando-se sozinha na sala.
As Obras Completas de Júlio Dinis pela Civilização Editora.
Os frascos de tinta em pó, tudo cerâmica.
O berro do parido contra os azulejos.
Tu verás quando fores cego.
Rosas pulsando verniz no vidro matinal.
Crianças rindo a felicidade estrangeira da infância.
Esta mão amarrando o coração como um estojo.
Este olhar cada árvore como a um relicário.
E este calvário.
Um dia atarás a sangria dos sonhos.
Terás livre-trânsito para o dealbar azul-frio
das manhãs dos outros, quando tiveres sido.
Serás um homem e uma mulher – e nada disso,
quando as tais terminais rosas
iniciais.
Bebé velho, ultimador de notícias,
colector de pacotes de açúcar e de azias.
Homem e mulher e cão e rosa.
Frequentador do inviolável celibato da poesia.
Músico mudo, utente de peles despidas,
amador de estrofes e de
áleas de pereiras-de-inverno, tu,
you sexy thing.
E Aquilino Ribeiro e Amelia B. Edwards,
lidos à noite quando chove no mundo.
Os lobos invernosos e o chá cardíaco.
A delícia do terror, a extrema educação.
Os barcos orlando de azul o horizonte branco.
Dar sapos vivos aos ciganos.
Cagar no Neville Chamberlain e em Munique e na Checoslováquia
1938.
Aquela álea rosas-de-inverno, quando olhares.
Quando vires os panos pretos, a grisa alba.
Quando vires a infância irrepetível dos mortos:
dos teus amores.
Quando olhares deitado a catarata,
o azul niágara dos mortos e de
Júlio Dinis pela Civilização.
E o Clark Gable e as primeiras rosas.
E a ínclita doçura dos amargos-de-boca.
E a amável infância dos cães e dos mortos.
E o poder todo-musical da poesia.
E ser de noite dia e quem no-lo diria.
E o trevo mijão acidulando a refrega do lembrar
O carácter descartável do amor.
A mulher que foi vista de azul num comboio.
E as mamas aos pares: um mal nunca vem só.
Quando recordares a frígida alegria de um decote,
tu suturado de pontos ventrais
atirando leite e remorsos.
Eu digo-te a pequena música.
Eu faço-te ver.
Tu olhas nos espelhos, nas partituras.
Há bares abertos toda a noite, todo o dia.
Tu amargo e tu também açúcares.
Tu és a pêra-de-inverno.
Tu és o cão.
Eu sou o cão.
As you lay dying
recorda as estrelas de osso das mãos dos reformados.
Os pobres falidos ricos de vida
nas merendas das casas-de-pasto.
A graça: a vida: o deitar-se.
Ao cemitério municipal de Viseu
fui eu
ver por ti a palração onomástica dos deitados:
os sargentos, as marias-das-conceições,
os bancários e os banqueiros,
os silvas e os tenreiros,
os anjos frágeis e eternos como louça,
as pétreas rosas pátrias
que pela manhã,
como sempre,
são rosas deitadas a anjos, a nomes.
Tu serás esse homem, essa mulher.
Esse nome de que a fraca tinta
guardará fragmentado nome:
riscos breves, duas datas.
(D. Duarte, El-Rei de Portugal,
1391-1438: tão pouco.)
Um sabor de raparigas rindo-se
través laranjeiras e limoeiros:
recordarás, depois, as
you lay dying.
As vozes dos homens da tua rua,
respeitando o comércio e a educação.
E a pele do nascido placentada no cheiro a terra chovida.
E as fábricas encerradas e J.S. Bach.
Um sabor de raparigas indo-se
na corrente das pequenas ácidas alegrias
(sabor a napa, de banco traseiro de automóvel),
luzes de Paris em doméstica
circunvalação portuguesa.
E o arrefecimento das farmácias,
suas cruzes verdes na noite como se de igrejas químicas.
E crescer para o fim.
Quero viver no teu sono.
No teu mármore olharei dentro.
O que me ofendia em criança era não ter conhecido vivos os mortos
antes de mim,
por exemplo a ti,
Manuel Mota,
nome-número mecanográfico xis e tal
da guerra colonial,
da família Mota da minha aldeia de Portugal,
os canaviais lá em baixo zunindo tensos ventos,
e tu,
senhor Manuel,
adormecido a tiro não sei se em Angola se em Moçambique,
a água dos olhos bebida pelas chilras rosas do
campo-santo.
Poesia, poesia: um dia colherás,
um dia as olharás, albas, azuis, frias:
e elas te beberão os olhos –e também serás
Manuel,
Maria da Conceição.
Viseu, tarde de 14 de Setembro de 2008
Estendidos nodosos troncos de árvore sob pele: as veias das mãos do homem velho.
Vi-o passar, mesmo, agora, o olhar noutro tempo, não no nosso, no meu sim.
Fendido lagarto dele o rosto: máscara e tempo e máscara e tempo.
Muito limpo, muito correcto: a jaqueta impoluta de terileno-creme, a calça fazendeira de vinco-tíbia, os sapatos espelhados a negro de graxa como uma sideração cósmica.
Um pardal, por assim dizer.
Eu amo a visão dos homens velhos.
Ele mostram-me como vai ser.
Eles dão-nos recados da soludissolução.
Pó ao pó, cinza à cinza: matéria estelar.
Na estela (na esteira), duas datas, um nome.
Um domingo qualquer: ter vivido tudo antes.
Gás e árvores e luz e sobremaneiras: atenta atitude comedora, a dos pombos, a dos velhos.
Uma velha vi eu hoje rechupando o carioca de café: lavada, ela também, a blusa cinza (à cinza), o ouro nas mãos.
O ouro nas duas mãos, o decote sardento, a laca imobilizadora de cançonetista anos-60.
Eu vejo dentro.
O passeio dos senhores que ao domingo.
O tempo que se prepara no cimento e na geografia.
Passamos pessoas umas pelas outras como vento-árvores.
Ramalhamos, fazemos cocó cor-de-chumbo, pipilamos vozes pede-migalhas.
Ao poema de ontem retorno para primeiras
rosas últimas.
Partida
Viseu, tarde de 13 de Setembro de 2008
Um dia colherás por último as primeiras rosas
que a manhã orvalhou na tua doença jardineira.
Esse dia será de noite, pela manhãzinha.
Terás franco acesso ao desespero, essa feira
que merca corações desavindos de peitos.
Toda a agonia é uma literatura portátil,
pessoalíssima e intransmissível.
E tu rumarás à alba-cinza-lunar.
Fala, porém, enquanto vivo, com teus mortos.
Eles te dirão a grande poesia de esquecer.
Dir-te-ão como às defuntas putas tornou a virtude.
Protege-te da chuva ácida de chorar.
Se de tal te protegeres um dia, aquele outro dia
te não doerá tanto.
Uma das fontes da cabeça marulha borborigmos:
água da intestina saudade dos vivos
que amar te foi possível, entre vidros.
Os vivos todos: as pessoas mortas, os animais
que correram por alegria à tua sombra.
O número da casa pintado em azulejo.
E a garagem onde a primeira sexualidade
te condenou ao lego da solidão.
Aquela álea de pereiras-de-inverno.
A almácega vitrificada de gelo e de sombras de rolas.
A infância: o instante total.
E este pedir-de-morrer-aos-versos.
A volta nocturno pelos bebedouros, a poesia.
O Clark Gable a diz
Frankly, my dear, I don’t give a damn.
Aquela álea de pereiras-de-inverno.
Um dia tu verás sem ter de olhar.
As mamas lubrificadas de seiva das mulheres.
A condição gansa da puberdade.
A tua e nossa Mãe mijando-se sozinha na sala.
As Obras Completas de Júlio Dinis pela Civilização Editora.
Os frascos de tinta em pó, tudo cerâmica.
O berro do parido contra os azulejos.
Tu verás quando fores cego.
Rosas pulsando verniz no vidro matinal.
Crianças rindo a felicidade estrangeira da infância.
Esta mão amarrando o coração como um estojo.
Este olhar cada árvore como a um relicário.
E este calvário.
Um dia atarás a sangria dos sonhos.
Terás livre-trânsito para o dealbar azul-frio
das manhãs dos outros, quando tiveres sido.
Serás um homem e uma mulher – e nada disso,
quando as tais terminais rosas
iniciais.
Bebé velho, ultimador de notícias,
colector de pacotes de açúcar e de azias.
Homem e mulher e cão e rosa.
Frequentador do inviolável celibato da poesia.
Músico mudo, utente de peles despidas,
amador de estrofes e de
áleas de pereiras-de-inverno, tu,
you sexy thing.
E Aquilino Ribeiro e Amelia B. Edwards,
lidos à noite quando chove no mundo.
Os lobos invernosos e o chá cardíaco.
A delícia do terror, a extrema educação.
Os barcos orlando de azul o horizonte branco.
Dar sapos vivos aos ciganos.
Cagar no Neville Chamberlain e em Munique e na Checoslováquia
1938.
Aquela álea rosas-de-inverno, quando olhares.
Quando vires os panos pretos, a grisa alba.
Quando vires a infância irrepetível dos mortos:
dos teus amores.
Quando olhares deitado a catarata,
o azul niágara dos mortos e de
Júlio Dinis pela Civilização.
E o Clark Gable e as primeiras rosas.
E a ínclita doçura dos amargos-de-boca.
E a amável infância dos cães e dos mortos.
E o poder todo-musical da poesia.
E ser de noite dia e quem no-lo diria.
E o trevo mijão acidulando a refrega do lembrar
O carácter descartável do amor.
A mulher que foi vista de azul num comboio.
E as mamas aos pares: um mal nunca vem só.
Quando recordares a frígida alegria de um decote,
tu suturado de pontos ventrais
atirando leite e remorsos.
Eu digo-te a pequena música.
Eu faço-te ver.
Tu olhas nos espelhos, nas partituras.
Há bares abertos toda a noite, todo o dia.
Tu amargo e tu também açúcares.
Tu és a pêra-de-inverno.
Tu és o cão.
Eu sou o cão.
As you lay dying
recorda as estrelas de osso das mãos dos reformados.
Os pobres falidos ricos de vida
nas merendas das casas-de-pasto.
A graça: a vida: o deitar-se.
Ao cemitério municipal de Viseu
fui eu
ver por ti a palração onomástica dos deitados:
os sargentos, as marias-das-conceições,
os bancários e os banqueiros,
os silvas e os tenreiros,
os anjos frágeis e eternos como louça,
as pétreas rosas pátrias
que pela manhã,
como sempre,
são rosas deitadas a anjos, a nomes.
Tu serás esse homem, essa mulher.
Esse nome de que a fraca tinta
guardará fragmentado nome:
riscos breves, duas datas.
(D. Duarte, El-Rei de Portugal,
1391-1438: tão pouco.)
Um sabor de raparigas rindo-se
través laranjeiras e limoeiros:
recordarás, depois, as
you lay dying.
As vozes dos homens da tua rua,
respeitando o comércio e a educação.
E a pele do nascido placentada no cheiro a terra chovida.
E as fábricas encerradas e J.S. Bach.
Um sabor de raparigas indo-se
na corrente das pequenas ácidas alegrias
(sabor a napa, de banco traseiro de automóvel),
luzes de Paris em doméstica
circunvalação portuguesa.
E o arrefecimento das farmácias,
suas cruzes verdes na noite como se de igrejas químicas.
E crescer para o fim.
Quero viver no teu sono.
No teu mármore olharei dentro.
O que me ofendia em criança era não ter conhecido vivos os mortos
antes de mim,
por exemplo a ti,
Manuel Mota,
nome-número mecanográfico xis e tal
da guerra colonial,
da família Mota da minha aldeia de Portugal,
os canaviais lá em baixo zunindo tensos ventos,
e tu,
senhor Manuel,
adormecido a tiro não sei se em Angola se em Moçambique,
a água dos olhos bebida pelas chilras rosas do
campo-santo.
Poesia, poesia: um dia colherás,
um dia as olharás, albas, azuis, frias:
e elas te beberão os olhos –e também serás
Manuel,
Maria da Conceição.
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