07/09/2008

LADO



Fotografia: DO OUTRO LADO, © Sandra Bernardo, Aveiro, 30 de Agosto de 2008
Texto: Viseu, tarde de 6 de Setembro de 2008


Era o que vai ser ainda: a vida quieta de repente.
O ar enquadrado de casas que sei (que ele sabe) vazias, em cujos dentros os móveis e os despojos continuam a emitir memória.

A praça primeira do périplo arde verde na estátua do Rei, que trepou a um pedestal a fazer de homem quieto – como a vida quieto.
Além, uma velha sentada em pedra tira lixo de um dente, seu antepenúltimo farpão.
Um homem de cadeira-de-rodas e um menino num carrinho: a similitude, a ininterrupta facsimilação.

Vê: um homem andou (andarei) pelas ruas despovoadas.
Conhece: é um homem do futuro
(pois que mais futuro pode ser que uma casa vazia?).

Tudo isto já foi.
As pessoas fogem como gases.
Ramalham para ninguém as árvores:
meia dúzia de pássaros, se tanto.

Viseu, um sábado pela tarde.
Uma volta de evanescente corpo.
Têxteis, encadernações, enchidos, loções pós-barba.
Gangas, letras, cartazes, tábuas.
Degraus, toalhas, santos, S. Paulo por todo o lado.
A noite aproxima-se.

E este rumor imanente à condição molar das coisas.
Este por assim dizer gemido das coisas.
Quanta beleza, sinceramente.

Uma senhora configura o Cavalo em andamento.
Outra atira um lençol à luz do primeiro andar.
Uma criança babuja solfejo trinado a solilóquio.
Um rapaz de óculos escuros vai de verde e azul.
Mas vazias estão as ruas e são as casas,
eu sei, ele.

Mas de uma criança os pés nus
são a substanciação da luz.

Isto será o rasto de um trabalho: um ter-vivido-depois.
Elas urdem, elas zunem, barafustam, calam:
as palavras.
E eles: os trabalhos.

E se este homem, uma vez na vida, pudesse convocar não digo os seus espelhos mas as máquinas que imaginam coisas como espelhos e homens.

Então, em vez de este apenas-sábado e de esta apenas-cidade, então todo um rodízio de imagens benignas: as crianças, a nudez luminotécnica dos pés das crianças, os têxteis diversos, as colchas, as toalhas, os lençóis, as mulheres à janela e as janelas exportando o vazio dos móveis que os mortos deixaram para ser retratos emissores.

Antes que tudo arda,
(d)enunciar o que a água fez.

E antes da noite, não muito antes mas antes, a hora a que os homens, quatro a quatro, entram nas casas-de-pasto e ordenam sardinhas fritas e jarros de vinho negro como a noite, mas antes dela.

Ou então permitir que a realidade entre em casa (o corpo) por aspectos de linguagem: conversar de açorda alentejana com reformados ao pé de uma floreira de ferro fundido; desconsiderar a escumalha norte-americana; sonhar sonos entre cedros, numa floresta rumorosa de beira-rio; conjugar um verbo inventado como precariar.

Tudo isto e o nosso (dele, dela) futuro, mescla prévia de passado com olvido e com memória: como móveis numa casa despovoada.

Viseu ou Oslo, no fundo iguais, uma parelha de centelhas de gelo, um riscar de ouro e rubis, os carros na noite anunciada, a anunciar logo, desde antes e para sempre.

Ou isto ou um homem a escrever na tarde que declina – como se declina(ra) um verbo, ou uma luz, ou uma progressiva escassez dela.

E se outro homem (outro ele) diz a este homem (outro eu) que não tem televisor porque não tem casa, porque é num quarto que mora, sessenta e não sei (não diz) quantos anos, então o homem (um qualquer dos dois) há-de olhar portadas que dão ao vento madeiras bandeirantes – e um trecho de rio lunando em solidão, própria e alheia e a mesma.

O trabalho é procurar a palavra que diga o mesmo à vida: qualquer vida, onde for. A palavra é o rasto (é o rosto, é o resto) do trabalho: a criança que começa pelos pés para ser luz.

Uma vez na vida, este homem não quer a fuga, mas o retorno. Não a evasão, mas o encontro. Nem sequer a autognose, mas a montra (têxteis, encadernações, enchidos, loções pós-barba).

Ou Nuremberga – ou Moimenta da Beira: algures os homens que esvaziam as ruas, que enchem de vazio as casas extintas, dando de bandeiras madeiras ao vento negro que cresce do mar de dentro – ou uma beira-rio brincando aos comboios e aos ciganos e aos reclamos luminosos que entontecem o olhar como miríades de diamantes pluviais.

E uma revoada de nomes sem corpo pauta o silêncio gentil: Horácio, Porfírio, Antunes, Cleto, Serafim; Maria, Luísa, Emília, Saraiva, Dolores.
E a cidade: imo de aldeias sem filhos, na cidade perdidos.

Décadas.
E o cimo do sino do sono do sonho do sim.
Somos? Fomos.

E se como aves outonais revoarem frases antigas,
o futuro todo se mexerá neste mesmo papel,
neste sábado mesmo. Haja dignidade, senhores,
porém: que a tristeza é digna, insigne até.

Também ninguém tem de falsear os signos:
eles são viver e morrer. E talvez nascer:
amanhã-antes (os pés de luz).

A evidência dos bebés, a dignidade dos animais (o Cavalo, o Cão, o Gato):
as facsimilações.

E esse tempo que o homem gastou a amar, relojoeiro de seus instantes dérmicos, suas mínimas atenções panificadoras, seu ter-sido-filho-agora-pai: ser um adulto dentro da criança
moritura,
Jesus.

Outras vidas, de tão anteriores, farão futuro:
a linha de corredores correndo gasolineiras;
os que tomaram tambores em manhãs armistícias;
a manhã de amanhã dos tocadores, dos ladrões.

Volta o canteiro de rosas no reverso,
experimenta fazê-lo: os cabogramas
de nossos pais-irmãos-filhos militares,
África, 1961-1974.
Volta a língua, corta as barbas grandes
(loções-pós-barba-marca-444).
Ouve Supertramp e Tony de Matos.
O homem que esvazia de simimesmo
uma mesma casa é homem: e é ar.

Num toque raro, os nomes cemitérios
são semi-sérios: rir metade é possível,
ante as ausendas, os borges, os almeidas,
as deolindas. Ou:

HORÁCIO; PORFÍRIO; ANTUNES; CLETO; SERAFIM;
MARIA; LUÍSA; EMÍLIA; SARAIVA; DOLORES.

Viseu, um sábado à tarde na noite de Oslo.
A grandiloquência do silêncio, os ramalhetes de secas papoilas.
Os retratos de Oslo, os dos que vão viver pós-mortos (como os nossos progenitores), nas casas vazio-viseias.
’tás a ver?

O toque do dia todo: uma pessoa ser só de si
própria e mesma e antes como depois, em bronze
como D. Duarte, o verde, o azul, o palavroso – e
idiomático: e estranho,
já agora,
iniciático de périplos e de pèzinhos de luminocrianças.

Tocam os sinos sua brônzea noite interior, a pátria não egrégia se igreja. Cai o veludo da noite em gaseadas veludações.
Quem tem homomulher a mulheromem beija.
Ele há labiações, ele há colhões.

Perdão!

Ele há homens sozinhos em ruas
vazias cheias de gente vazia.
E depois como antes o mesmo outro dia.

3 comentários:

Anónimo disse...

Telefone. Preciso de um número de telefone, porra.

Anónimo disse...

Comprei o seu livro e vim ver o seu blogue. Pensei que não existia e que o nome Daniel Abrunheiro fosse um pseudónimo que ocultasse alguma personagem brilhante das nossas letras. O seu Português é uma pequena descoberta da América, uma viagem ao desconhecido, uma "viagem ao fim da noite" porque, como se escreve na abertura deste último "Esta nossa viagem é inteiramente imaginária. Eis a sua força".
Um livro tão intrépido como este passa ao lado da nossa crítica timorata, não havendo, que eu saiba, qualquer notícia nos jornais. Estes continuam como Karl Kraus os descreveu: "o jornalista, porém, é sempre alguém que, depois, soube tudo antes". Pergunto-me se terá a terra de desabar primeiro...
P. Pereira

Daniel Abrunheiro disse...

Tanta gentileza. Obrigado.

Canzoada Assaltante