Couples that fart together stay together?
http://weblog.datingish.com/datingish/668162620/couples-that-fart-together-stay-together.html
31/07/2008
Agosto no Kentucky - crónica nº 63 da série Rosário Breve (O Ribatejo, www.oribatejo.pt)
A civilização é o berço excelentíssimo das mais refinadas selvajarias. A nossa (pseudo-cristã e deveras ocidental) não escapa, antes a confirma, à regra.
O descalabro ético-moral da globalização e o mate-se-quem-puder da liberalização instalaram-se-nos sem bilhete de retorno no primeiro dia-a-dia do resto das nossas vidas. Uma primeira evidência salta à vista (de quem quer ver): o que antes era Povo, é hoje uma tresmalhada mancha de rebanhos apascentadores de lobos “globais” e “liberais”. Vale-nos que Agosto está à porta, se não para nossa salvação, ao menos para nossa anestesia.
No Kentucky, não sei como fazem os pobres. Na Guatemala, tenho uma ideia. Mas por cá, de Paranhos da Beira a S. Brás de Alportel, sei a anedota de cor: a anestesia fumega de sardinhas esbraseadas em meios bidões de adro de igreja; estralejam no céu de azulejo as flatulências fulminantes e incendiárias do foguetório para o santinho; os emigras passam quinze dias de chinelos a ralhar em avec-cependantês com os netos e outros quinze a dizer mal dos ucranianos; os bairros “sociais” ladram toda a noite “hip-hops” enraizadíssimos na “cultura” étnica e no deus-me-livre de algum dia ter de trabalhar sem ser aos tiros; em mangas de camisa, os deputados descem às berças para lautas almoçaradas com a rapaziada das juntas e a frangalhada das “jotas”.
Quando Setembro retoma a escadaria descendente do Outono, a ressaca é geral e linda: o senhor padre engordou uns quilos, o chefe da junta comprou a si mesmo mais umas manilhas, os “rónáldos” do futebol distrital pastam a erva sintética da promessa eleitoral e as mal-casadas preparam-se para o despedimento colectivo da fábrica dos têxteis, estrutura produtiva que também tinha bandeiras nacionais à janela.
Eu não gosto de Agosto. Nunca gostei. Deve ser porque o único Kentucky com que me dei bem tenha sido aquela marca de mata-ratos que, nos tempos em que havia Povo, era o tabaco do povo.
30/07/2008
29/07/2008
Cavalo em Quebra – uma bonita tristeza de versos
Viseu, Café Lafões, manhã de 29 de Julho de 2008
Regresso à noite como se a casa volvesse.
Chego para ser um cavalo quebrado
nunca mais imune à cutelaria lunar.
Deixo os anjos estacionados à porta,
saio cedo para reconferi-los na manhã
do pequeno comércio, escoando-se a vida
e os demais apetrechos da economia.
Disponho-me então, munido de anjos, a
dizer mal do nosso povo e bem da nossa língua,
sistemática atitude que me estabelece
como um descarado filho-da-puta mais
entre pares muito iguais.
Com um pouco de sorte, a luz muito branca
aleita a respiração, então que contemplo
a mostra de pernas das mulheres pelo verão
das ruas, as pernas tristes e bonitas das mulheres,
como bonitos e tristes são os rostos dos homens,
na sorte mínima.
Os homens são as sombras verticais ante o rio,
que o município calafetou a cimento e
atou com arame para que a sede dure
para sempre.
Os meus anjos tomam-me pela mão esquerda
e derivam-me entre igrejas e casas
de fotocópias, deixo-me levar na corrente
esquerdina dos desagasalhados do coração
dados a versos e a frituras de feira popular,
salvando-se a língua, não o povo.
Tudo se penetra (é uma terça-feira), tudo
é mútuo no Nada: uma ideia cruza um
pórtico de pedra, um sonho embate na
mercadoria exposta, as pernas das mulheres
zebram a camartelo a agonia das próstatas,
duas vizinhas trocam de maridos e de naperões
e de netos e de serviços de chá esbeiçados,
há lasquinhas de esmalte por todos os derredores
do coração.
Ainda a manhã não se acabou na praia de si mesma,
já eu frequento as cabines telefónicas marcando
os números impensáveis a que os anjos
obrigam: então, uma boca cospe encarnado
no chão, entre pontas de cigarro e prospectos
pára-brisas de professores africanos especializados
em destinos mulatos e outros intestinos latos.
A cidade cheira a campo, sobretudo a partir
da imundície dourada do costume: torrefacções
de óleo alimentar, espermas arrefecidos de pais
adoptivos, casos e casas de polícia, tum-tum-
-bares pejados dos atrasados mentais da modernidade,
os que nunca Correia Garção, oh nunca!, muito menos
João Roiz de Castelo-Branco.
Os meus anjos arrulham como galinhas mentais,
toda a vez que, agora eu, os arrasto para uma
onomástica, um filão, uma bibliografia.
Entretanto, a poleiro de algum altar, os autarcas
comem palha e crocitam bruxelas-bruxelas-
-lisboa-lisboa-estrasburgo-armação-de-pêra-
-bruxelas-bruxelas. Já então me dói a
víscera fundamental (funda, mental) do coração: e lembro
entardeceres malvasiados a capilés e palitos-la-reine,
numa infância que os anjos não houveram
e que por tal odeiam.
Para não morrermos de todo nem tanto, eu
e os anjos frequentamos funerais até de estranhos,
participação social que sempre nos torna
um pouco menos desconhecidos nas inaugurações
de grandes superfícies, casas-museus e outros alternes.
Fingimo-nos tristes e bonitos, os rostos calejados
de cal e rictos de giz, ainda não é hoje
que chove.
Entre almedinas, cai então a noite como um papel preto,
levanta-se um vento de conspiração de almas,
zunem telegrafias anciãs os nomes das ruas,
tropeça de bagaço o cavalheiro de óculos escuros que sonha
sodomizar a mulher, pinguinam muito lácteas
as gordas mais baratas da avenida – e então
me quebro como um cavalo ou um verso, os anjos deixados
à porta da noite – como se fora a noite
esta casa adentro, afora o cutelo da Lua.
José Guilherme Lorena - fotografia(s)
Um Céu na Ericeira
Este e outros trabalhos do olhar de José Guilherme Lorena em
http://olhares.aeiou.pt/utilizadores/detalhes.php?id=94090
28/07/2008
Passeio Frio – outro
Viseu, Café Magnólias, tarde de 28 de Julho de 2008
Faleceu há pouco o meu Amigo Né Ferreira
Esta tarde, o Papão quis tocar viola com o meu corpo
e tocou.
O telefone toca nas trevas do pleno dia: diz-me
que o Né etc.
Saio à rua a ensurdecer, o sangue todo na garganta
como um tambor vermelho,
vejo que passam as raparigas em flor,
como as de Proust, que temia as correntes-de-ar
e se dispôs a morrer depois de um
passeio frio.
Eu se calhar preciso da morte dos amigos
para desentender-me totalmente com a vida.
Anda um gajo aqui em terra seca a falar de barcos
e merdas assim – e o corpo é uma viola.
Esta tarde é peremptória: levo o corpo a ver
o comércio, a flor morena das raparigas
que confirmam o sol em risadas de marfim,
de ébano puro os xilofones de seus ossos.
Habito o futuro transitado, um punhado de versos.
Nada tenho a haver da recente onda de assaltos.
Sou filho de meus pais, mesmo não estando
vivos todos eles. Resta-me a língua portuguesa
por habitação.
Esta tarde, o Papão
queima-nos a boca – e em vão
trocaríamos a lua pela terra,
afinal o sol sempre nos franqueia as ruas,
em flor passam as sombrias raparigas
todas leite, todas nascidas do milagre
entre um homem qualquer
e uma qualquer mulher.
Queixei-me do facto ao senhor Germano do café.
Ele ouviu-me, aconselhou-me alguma calma,
reteve a ignorância do nome do amigo
(Né, de Ernesto),
tocou-me num braço, por coincidência eu tinha
vestido de manhã uma camisola preta, penso não ter
deslustrado,
ébano,
a memória dele.
Prece
Viseu, Café Império, fim da manhã de 28 de Julho de 2008
Quanta sombra tivermos sido
em luminosos corações conhecidos,
tanta vida teremos às nossas
acrescentado.
Na boca, o milagre diário da palavra,
rumorosa flor rejuvenescedora
dos dias que a luz bate
em sucessão de delíquios.
Nas mãos dos homens pobres
(todos nós, portanto),
algum retrato reconstrutor
do coração próprio.
Só te peço a vida toda.
A vida toda e que me perdoes
tanto amor por ti,
onde mais me dói.
A biologia tem truques,
um dos quais a poesia.
Vim agora da cidade,
vim para te nascer outra vez.
Sou hoje um pobre homem pobre,
pobre Mãe minha.
Possuo uma lâmina de rio
coalhada de pássaros e versos.
Eu agora possuo isto: assombrosa
e rosa e sombra em prece,
cega a cal das igrejas, negra
a floresta portuguesa da boca.
Onde mora hoje o teu homem,
esse colector de noites acabadas
e frigidíssimos janeiros ásperos?
Onde ele morar, demoraremos
ambos, Mãe. Uma pedra de sal
sob a língua é quanto basta
para supressão das involuntárias
tremuras musculares.
A Mãe e os filhos amámos o homem:
esse pássaro quebrado na cabeça,
esse espelho ao sol branco,
essa dor quando nos telefonaram.
Esta é a minha prece: não
espero ser atendido: das igrejas,
colho tão-só a santidade nenhuma
dos negócios, ofícios do fascismo cristão.
Se até hoje alguma coisa pedi, não
foi o amor, que o tive e tenho
em papéis caligrafados por olhares
de tinta de puríssimo pintor,
ele. Suponho-te (é uma segunda-feira)
em a antiga sala da infância,
a tua infância de novo galgando
áleas de pereiras-de-inverno,
mijando-te talvez a incontinência
da memória mais esfarrapada,
um filho aqui, uma filha ali: à luz
que bate sucessivos lírios, delíquios.
Eu dou-me a licores e a janelas,
falo já sozinho pelas ruas baptizadas
por mortos ilustríssimos e esquecidos,
noutra cidade que nem às filhas conto.
Isto é uma prece.
Lobos urdem rasgaduras de coração,
à noite fico sozinho ante montras,
ouço sons de sob a terra.
É o tempo das moscas, vidros negros
bêbedos de sol patinhando imundícies.
Também é o tempo do amor, o tempo
que os nomes usam dentro do silêncio.
Celebrado sacerdócio da tristeza, longa
umbrosa avenida de faias, uma mulher
de chapéu dando pão-de-leite a um gato,
o assador de frangos fumando à porta.
Amanhã todos os meus ontens
terão sido atendidos, espero.
Dirão talvez: foi outra sombra:
mas um luminoso coração também,
lá onde mais lhe doeu, de alegria
puríssima, o pintor e a mulher dele,
à janela, navegando como a alta rosa
de preces atendedora, sozinha na sala
onde as obras completas de Júlio Dinis
encapadas a vermelho e ouro pela
Livraria Civilização e onde os retratos
invencíveis de teus pobres homens pobres.
em luminosos corações conhecidos,
tanta vida teremos às nossas
acrescentado.
Na boca, o milagre diário da palavra,
rumorosa flor rejuvenescedora
dos dias que a luz bate
em sucessão de delíquios.
Nas mãos dos homens pobres
(todos nós, portanto),
algum retrato reconstrutor
do coração próprio.
Só te peço a vida toda.
A vida toda e que me perdoes
tanto amor por ti,
onde mais me dói.
A biologia tem truques,
um dos quais a poesia.
Vim agora da cidade,
vim para te nascer outra vez.
Sou hoje um pobre homem pobre,
pobre Mãe minha.
Possuo uma lâmina de rio
coalhada de pássaros e versos.
Eu agora possuo isto: assombrosa
e rosa e sombra em prece,
cega a cal das igrejas, negra
a floresta portuguesa da boca.
Onde mora hoje o teu homem,
esse colector de noites acabadas
e frigidíssimos janeiros ásperos?
Onde ele morar, demoraremos
ambos, Mãe. Uma pedra de sal
sob a língua é quanto basta
para supressão das involuntárias
tremuras musculares.
A Mãe e os filhos amámos o homem:
esse pássaro quebrado na cabeça,
esse espelho ao sol branco,
essa dor quando nos telefonaram.
Esta é a minha prece: não
espero ser atendido: das igrejas,
colho tão-só a santidade nenhuma
dos negócios, ofícios do fascismo cristão.
Se até hoje alguma coisa pedi, não
foi o amor, que o tive e tenho
em papéis caligrafados por olhares
de tinta de puríssimo pintor,
ele. Suponho-te (é uma segunda-feira)
em a antiga sala da infância,
a tua infância de novo galgando
áleas de pereiras-de-inverno,
mijando-te talvez a incontinência
da memória mais esfarrapada,
um filho aqui, uma filha ali: à luz
que bate sucessivos lírios, delíquios.
Eu dou-me a licores e a janelas,
falo já sozinho pelas ruas baptizadas
por mortos ilustríssimos e esquecidos,
noutra cidade que nem às filhas conto.
Isto é uma prece.
Lobos urdem rasgaduras de coração,
à noite fico sozinho ante montras,
ouço sons de sob a terra.
É o tempo das moscas, vidros negros
bêbedos de sol patinhando imundícies.
Também é o tempo do amor, o tempo
que os nomes usam dentro do silêncio.
Celebrado sacerdócio da tristeza, longa
umbrosa avenida de faias, uma mulher
de chapéu dando pão-de-leite a um gato,
o assador de frangos fumando à porta.
Amanhã todos os meus ontens
terão sido atendidos, espero.
Dirão talvez: foi outra sombra:
mas um luminoso coração também,
lá onde mais lhe doeu, de alegria
puríssima, o pintor e a mulher dele,
à janela, navegando como a alta rosa
de preces atendedora, sozinha na sala
onde as obras completas de Júlio Dinis
encapadas a vermelho e ouro pela
Livraria Civilização e onde os retratos
invencíveis de teus pobres homens pobres.
26/07/2008
As Mães, mas nem Todas
Foto: © Sandra Bernardo, Viseu, tarde de 26 de Julho de 2008
Quadras: Viseu, casa, tarde de 26 de Julho de 2008
As mães viram-se do avesso para que sejamos.
Elas fizeram aquela coisa com algum homem.
Esperamos todos que se não tenham despido todas.
Que o suplício lhes tenha sido breve, já que não leve.
As mães andam na rua e nunca mais foram as mesmas.
Elas animam o comércio e as janelas como vasos comunicantes.
Se não fosse por elas, nenhuma guerra nos faria voltar.
Voltamos e alguém no-las levou, manhã cedo.
As mães participam de coisas para além da física-química.
As que fumam, vêm ao quintal contar as estrelas nocturnas do verão.
Têm todas cauda, todas são caudalosas, manam como rios longos
e muito estreitos, como a angústia na etimologia primeva.
As mães prevêem a chuva com uma pedra na mão.
Elas andam com fotografias cor-de-cinza nas carteiras encarnadas.
Não têm tempo para olhar os barcos em maio, lá onde dormem.
Querem dizer-nos algo e a voz não lhes desce da garganta.
As mães são a única sombra das savanas.
Elas bordam teias que emaranham fábricas desactivadas,
estações de tratamento de águas e resíduos, elas são
os bichos-da-seda casulados nas carruagens ferroviárias.
As mães são os cavalos menos ilusórios do monte.
Dá-lhes o vento na cor e elas correm, as caudas gráficas
empinadas de uma mocidade fibrosa, aerodinâmica, retratista.
Apartam o sal e a merda, as flores de comer e os cheiros do corpo.
As mães nunca iludiram a polícia nem os médicos.
Elas exercem a partir de ministérios invisíveis ao sol.
Só dão de si quando a prata lunar se torna refractária.
E digitam de cor os mapas da fruta, entre cheias de inverno.
As mães podem nunca ter voltado das mães delas.
Cruzes de fogo bermam delas os caminhos montanhosos.
Elas contam raposas onde vêem lobos: nos leitos
das filhas e das mães delas.
As mães são territórios para uma altanaria de galgos.
Folheiam as latas do lixo para que nós enciclopédias.
As mães desfloram as santidades mais corruptas.
Mas nem todas são putas.
Elas fizeram aquela coisa com algum homem.
Esperamos todos que se não tenham despido todas.
Que o suplício lhes tenha sido breve, já que não leve.
As mães andam na rua e nunca mais foram as mesmas.
Elas animam o comércio e as janelas como vasos comunicantes.
Se não fosse por elas, nenhuma guerra nos faria voltar.
Voltamos e alguém no-las levou, manhã cedo.
As mães participam de coisas para além da física-química.
As que fumam, vêm ao quintal contar as estrelas nocturnas do verão.
Têm todas cauda, todas são caudalosas, manam como rios longos
e muito estreitos, como a angústia na etimologia primeva.
As mães prevêem a chuva com uma pedra na mão.
Elas andam com fotografias cor-de-cinza nas carteiras encarnadas.
Não têm tempo para olhar os barcos em maio, lá onde dormem.
Querem dizer-nos algo e a voz não lhes desce da garganta.
As mães são a única sombra das savanas.
Elas bordam teias que emaranham fábricas desactivadas,
estações de tratamento de águas e resíduos, elas são
os bichos-da-seda casulados nas carruagens ferroviárias.
As mães são os cavalos menos ilusórios do monte.
Dá-lhes o vento na cor e elas correm, as caudas gráficas
empinadas de uma mocidade fibrosa, aerodinâmica, retratista.
Apartam o sal e a merda, as flores de comer e os cheiros do corpo.
As mães nunca iludiram a polícia nem os médicos.
Elas exercem a partir de ministérios invisíveis ao sol.
Só dão de si quando a prata lunar se torna refractária.
E digitam de cor os mapas da fruta, entre cheias de inverno.
As mães podem nunca ter voltado das mães delas.
Cruzes de fogo bermam delas os caminhos montanhosos.
Elas contam raposas onde vêem lobos: nos leitos
das filhas e das mães delas.
As mães são territórios para uma altanaria de galgos.
Folheiam as latas do lixo para que nós enciclopédias.
As mães desfloram as santidades mais corruptas.
Mas nem todas são putas.
Alguém Foi
Viseu, casa, manhã de 26 de Julho de 2008
a vocação
de transformar o tempo em rostos
Carlos de Oliveira,
Tempo Variável, III, ENTRE DUAS MEMÓRIAS
de transformar o tempo em rostos
Carlos de Oliveira,
Tempo Variável, III, ENTRE DUAS MEMÓRIAS
Rostos, tudo o que se pode, é sonhá-los para que existam,
uns; para que resistam, também, outros,
outros e uns nimbados do lunar estanho das molduras.
Os retratos, tudo o que se pode, é aceitá-los: janelas a que os
decapitados, os sem-corpo, esmolam a memória e a persistência dos sonhos.
Temos de confiar aos mortos toda a caleidoscopia: é
de uma justiça elementar resignarmo-nos
a que os rostos deles sigam sendo aviadores
a bordo de mínimos aviões de vidros coloridos,
orvalhados de olhos que pensam ainda
amanhã.
Eu confio toda a caleidoscopia aos rostos: existo
ainda neles, inútil me foi encerrá-los
em gavetas, as mesmas, afinal, em que guardar
os papéis escritos como apelos de arrendamento
a janelas
de casas sem-corpo.
Já houve tantos rostos e nós só com dois ou três ou
quatro mortos
para passar a vida.
Nós com animais em casa para que as palavras
dos mortos voltem a ser
os sons do início.
E tudo o que se pode é inicial para sempre,
na cama, do lado de cá da janela,
nós já retratos, já estanhados, coloridos e mínimos já,
voando como papéis escritos,
alguém deixou a janela aberta, não
fui eu.
uns; para que resistam, também, outros,
outros e uns nimbados do lunar estanho das molduras.
Os retratos, tudo o que se pode, é aceitá-los: janelas a que os
decapitados, os sem-corpo, esmolam a memória e a persistência dos sonhos.
Temos de confiar aos mortos toda a caleidoscopia: é
de uma justiça elementar resignarmo-nos
a que os rostos deles sigam sendo aviadores
a bordo de mínimos aviões de vidros coloridos,
orvalhados de olhos que pensam ainda
amanhã.
Eu confio toda a caleidoscopia aos rostos: existo
ainda neles, inútil me foi encerrá-los
em gavetas, as mesmas, afinal, em que guardar
os papéis escritos como apelos de arrendamento
a janelas
de casas sem-corpo.
Já houve tantos rostos e nós só com dois ou três ou
quatro mortos
para passar a vida.
Nós com animais em casa para que as palavras
dos mortos voltem a ser
os sons do início.
E tudo o que se pode é inicial para sempre,
na cama, do lado de cá da janela,
nós já retratos, já estanhados, coloridos e mínimos já,
voando como papéis escritos,
alguém deixou a janela aberta, não
fui eu.
25/07/2008
Porizemplo
Crónica nº 62 da série Rosário Breve, n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt) de hoje, 25 de Julho de 2008
******
O senhor Presidente da República pode promulgar quantos acordos ortográficos quiser. Cavaco Silva nunca ligou muito a estas coisas, aliás. Quando ainda primeiro-ministro, não sabia quantos cantos tinha (e tem) a epopeia de Camões. Saberá, hoje, quantos?
Eu não alinho nesta ortografia premiadora da ignorância. Comigo, muitos milhares de portugueses não vão abrasileirar-se por razão alguma. Falar e escrever correctamente são vinculativos da vera nacionalidade. E não, eu não disse “nacionalismo”. Disse “nacionalidade” – é diferente.
A riqueza de uma língua (qualquer língua) está na sua diversidade natural, não na sua artificiosa “unidade” artificial. Sei muito bem que o evoluir de um idioma está sujeito ao mesmo princípio físico do menor esforço. Mas não é por isso que a rapaziada da Costa do Marfim se lembra de ir a França ensinar os franceses a escrever… francês. Nem ao-zamericanos, lerdos como são, passa pela corneta chegarem ao pé de Sua Majestade britânica e tentar convencê-la a escrever, como eles escrevem, “center” em vez do inglês “centre”. Pois não é assim? É.
Atente-se, a título de fundamentado exemplo fonético, nos fenómenos de acrescentamento e nos de supressão de sons na oralidade: prótese, epêntese, paragoge; e aférese, síncope, haplologia e apócope. “Depois” pode ser, na fala, “ódespois”. E “estou” é muitas vezes “tou”. Mas atenção: isto é na oralidade. À norma escrita cumpre a vigilância regulamentar destes atropelos, afinal naturais pelo menor esforço, à ortoépia. Sim, à ortoépia.
Senhores: em português de Portugal, a humidade do adjectivo “húmido” está toda no “h”. Não está no Brasil? Paciência. Eles que escrevam “úmido”.
A Escola primacial (para não dizer “primária” nem “básica”) deveria voltar a ensinar a ler e a escrever (ou seja, a pensar). Já chega de “pedagogias” da irresponsabilidade, de “estratégias” pró-ignorância e de procrastinações da treta: é ver o desnível ortográfico e sintáctico dos estudantes universitários nacionais de hoje em dia.
E, senhor Presidente, “Os Lusíadas” é coisa para 10 cantos. (Escreve-se “dez”, não “dés”. Até porque “dés” é a primeira sílaba de “déspota”, porizemplo.)
******
O senhor Presidente da República pode promulgar quantos acordos ortográficos quiser. Cavaco Silva nunca ligou muito a estas coisas, aliás. Quando ainda primeiro-ministro, não sabia quantos cantos tinha (e tem) a epopeia de Camões. Saberá, hoje, quantos?
Eu não alinho nesta ortografia premiadora da ignorância. Comigo, muitos milhares de portugueses não vão abrasileirar-se por razão alguma. Falar e escrever correctamente são vinculativos da vera nacionalidade. E não, eu não disse “nacionalismo”. Disse “nacionalidade” – é diferente.
A riqueza de uma língua (qualquer língua) está na sua diversidade natural, não na sua artificiosa “unidade” artificial. Sei muito bem que o evoluir de um idioma está sujeito ao mesmo princípio físico do menor esforço. Mas não é por isso que a rapaziada da Costa do Marfim se lembra de ir a França ensinar os franceses a escrever… francês. Nem ao-zamericanos, lerdos como são, passa pela corneta chegarem ao pé de Sua Majestade britânica e tentar convencê-la a escrever, como eles escrevem, “center” em vez do inglês “centre”. Pois não é assim? É.
Atente-se, a título de fundamentado exemplo fonético, nos fenómenos de acrescentamento e nos de supressão de sons na oralidade: prótese, epêntese, paragoge; e aférese, síncope, haplologia e apócope. “Depois” pode ser, na fala, “ódespois”. E “estou” é muitas vezes “tou”. Mas atenção: isto é na oralidade. À norma escrita cumpre a vigilância regulamentar destes atropelos, afinal naturais pelo menor esforço, à ortoépia. Sim, à ortoépia.
Senhores: em português de Portugal, a humidade do adjectivo “húmido” está toda no “h”. Não está no Brasil? Paciência. Eles que escrevam “úmido”.
A Escola primacial (para não dizer “primária” nem “básica”) deveria voltar a ensinar a ler e a escrever (ou seja, a pensar). Já chega de “pedagogias” da irresponsabilidade, de “estratégias” pró-ignorância e de procrastinações da treta: é ver o desnível ortográfico e sintáctico dos estudantes universitários nacionais de hoje em dia.
E, senhor Presidente, “Os Lusíadas” é coisa para 10 cantos. (Escreve-se “dez”, não “dés”. Até porque “dés” é a primeira sílaba de “déspota”, porizemplo.)
23/07/2008
22/07/2008
Jaco Pastorius anoitece hoje connosco
Jaco Pastorius no Anoitecer ao Tom Dela de hoje, 22 de Julho de 2008.
Ele e outros grandes nomes, tais como: Fabrizio Bosso, Luz Casal, Herbie Hancock, Joni Mitchell etc. etc.
Obrigado, Rui. Obrigado, Fernando Jorge.
Entre as 20 e picos e as 24h00 em
www.emissoradasbeiras.radios.pt
Blog do programa: www.anoiteceraotomdela.blogspot.com
Ele e outros grandes nomes, tais como: Fabrizio Bosso, Luz Casal, Herbie Hancock, Joni Mitchell etc. etc.
Obrigado, Rui. Obrigado, Fernando Jorge.
Entre as 20 e picos e as 24h00 em
www.emissoradasbeiras.radios.pt
Blog do programa: www.anoiteceraotomdela.blogspot.com
21/07/2008
Antes que Tudo Arda
Fotografia: © Jan Fabre, Castillo Tivoli
Texto: Viseu, manhã de 21 de Julho de 2008
Texto: Viseu, manhã de 21 de Julho de 2008
I
Houve cânticos no palácio na noite.
Vaporosas entre rosas vieram defuntas infantas
reflectir-se sem corpo em os espelhos-de-água
que o jardim amestra do céu.
Transparências de gamos e raposas aguarelaram
a insonoridade: espectros de espectros, sombras
de sombras.
De mármore é o peito dos recordados:
o velho senhor com seus galgos tristes,
o mordomo artrítico tossindo discretíssimo sangue na luva esquerda,
a alvíssima menina ao piano nigérrimo,
o jovem senhor abandonado à hemofilia e à numismática.
Corredores e salas, tudo devastado pelos ventos
privados do palácio onde outrora pernoitou
um rei de cartolina como um duque de paus.
Zéfiras graças levíssimas coloriram fora de portas
transparências faladas: gamos, raposas, infantas.
Nenhuma hora e todo o tempo:
Mors non brevis.
II
Vaporosas entre rosas vieram defuntas infantas
reflectir-se sem corpo em os espelhos-de-água
que o jardim amestra do céu.
Transparências de gamos e raposas aguarelaram
a insonoridade: espectros de espectros, sombras
de sombras.
De mármore é o peito dos recordados:
o velho senhor com seus galgos tristes,
o mordomo artrítico tossindo discretíssimo sangue na luva esquerda,
a alvíssima menina ao piano nigérrimo,
o jovem senhor abandonado à hemofilia e à numismática.
Corredores e salas, tudo devastado pelos ventos
privados do palácio onde outrora pernoitou
um rei de cartolina como um duque de paus.
Zéfiras graças levíssimas coloriram fora de portas
transparências faladas: gamos, raposas, infantas.
Nenhuma hora e todo o tempo:
Mors non brevis.
II
Que tudo seja porcelana, é a humana graça possível
contra a fereza puríssima da pedra dos montes.
Casebre embora, palácio é cada corpo: jardim
incluso seu derredor, sua fantasmática
memória atroz, à frente da palavra.
Quem puder, salve-se do deserto
e ferocissimamente corra a paz
pútrida dos dias embestando cavalos
e cavaleiros, mais tarde
em cromo cerâmico fixados
à louça almoçadeira.
Sim (ita): razias e dias em noites de chá
e palacianos cânticos.
Como de pombas, largadas de ninfos donzéis
esfarrapam os ares frementes
que os espelhos-de-água recatam
tão virginalmente.
Frechas assobiem fendendo vísceras e recordações,
na recordação dos pergaminhos
copistas da aquém-vida não vivida
e antes de nada como que morta.
Um poeta saiba dizer uma imagem.
E seus versos moldurem gravuras.
III
Do palácio, arcadas de som: falas e tinidos
suspiros – não gente alguma, só retratos.
Nenhuma concupiscência e desejo algum
outro que o pela arte fotonarrativa.
Sempre de noite,
tudo.
IV
(Mitigo o meu pão e a minha mão
na manhã brutal nova: julho
frita em pleno voo os pássaros portugueses,
encalmadas velhas minimercam especiarias,
arautos de megafone anunciam um cristo por dia,
esgotos a céu-aberto fervem cancros,
mínimos cadáveres juncam a existência ribeirinha,
tramita rosas a minha mão panificadora,
ressinto da manhã a brutalidade carnal,
nenhuma gravura (nenhum verso) me
salvará do sorteio-de-cegos
megafonado como um ladrar de mastins,
marulha o pequeno comércio seus borborigmos,
uma mulher na rua fala só como nos fala
uma dor secreta, pensar
que mesmo velhas as mulheres
enfermam ainda da patologia dos cisnes,
imagino campinas onde a pérola negra de um touro,
e dele o harém de vacas alvinegras como
manhãs nocturnas, como
palavras cruzadas sem solução,
que pensa com a boca o próprio chão.)
contra a fereza puríssima da pedra dos montes.
Casebre embora, palácio é cada corpo: jardim
incluso seu derredor, sua fantasmática
memória atroz, à frente da palavra.
Quem puder, salve-se do deserto
e ferocissimamente corra a paz
pútrida dos dias embestando cavalos
e cavaleiros, mais tarde
em cromo cerâmico fixados
à louça almoçadeira.
Sim (ita): razias e dias em noites de chá
e palacianos cânticos.
Como de pombas, largadas de ninfos donzéis
esfarrapam os ares frementes
que os espelhos-de-água recatam
tão virginalmente.
Frechas assobiem fendendo vísceras e recordações,
na recordação dos pergaminhos
copistas da aquém-vida não vivida
e antes de nada como que morta.
Um poeta saiba dizer uma imagem.
E seus versos moldurem gravuras.
III
Do palácio, arcadas de som: falas e tinidos
suspiros – não gente alguma, só retratos.
Nenhuma concupiscência e desejo algum
outro que o pela arte fotonarrativa.
Sempre de noite,
tudo.
IV
(Mitigo o meu pão e a minha mão
na manhã brutal nova: julho
frita em pleno voo os pássaros portugueses,
encalmadas velhas minimercam especiarias,
arautos de megafone anunciam um cristo por dia,
esgotos a céu-aberto fervem cancros,
mínimos cadáveres juncam a existência ribeirinha,
tramita rosas a minha mão panificadora,
ressinto da manhã a brutalidade carnal,
nenhuma gravura (nenhum verso) me
salvará do sorteio-de-cegos
megafonado como um ladrar de mastins,
marulha o pequeno comércio seus borborigmos,
uma mulher na rua fala só como nos fala
uma dor secreta, pensar
que mesmo velhas as mulheres
enfermam ainda da patologia dos cisnes,
imagino campinas onde a pérola negra de um touro,
e dele o harém de vacas alvinegras como
manhãs nocturnas, como
palavras cruzadas sem solução,
que pensa com a boca o próprio chão.)
V
Agora um pouco de eternidade: um
palácio na noite, azulejos de luz de febre
no veludo cenográfico da visão, um
gamo, uma
raposa, outra
infanta em defunção,
água e espelho e céu,
nenhum som no vasto jardim
de altos nigérrimos cedros
tais códigos de barras.
Sem virilhas os etéreos anjos venéreos
que a algum coito desamoroso subjazeram,
como os dois de que resultaram
a menina pianista e o senhor-menino hemofílico.
Sépias gravuram os Romanov, o Bertie-Eduardo VII,
o unto vilaviçoso do cinegético Carlos I e Último,
Cascais-anos-40 à espanhola para imitação de Guernica,
mas sem bombas francas,
muito Bourbon e muito Jack Daniel’s
e muito espumante cor-de-rosa
para entreter as meninas e
as monarquias de sapatilha-vela.
Agora um pouco de eternidade: um
palácio na noite, azulejos de luz de febre
no veludo cenográfico da visão, um
gamo, uma
raposa, outra
infanta em defunção,
água e espelho e céu,
nenhum som no vasto jardim
de altos nigérrimos cedros
tais códigos de barras.
Sem virilhas os etéreos anjos venéreos
que a algum coito desamoroso subjazeram,
como os dois de que resultaram
a menina pianista e o senhor-menino hemofílico.
Sépias gravuram os Romanov, o Bertie-Eduardo VII,
o unto vilaviçoso do cinegético Carlos I e Último,
Cascais-anos-40 à espanhola para imitação de Guernica,
mas sem bombas francas,
muito Bourbon e muito Jack Daniel’s
e muito espumante cor-de-rosa
para entreter as meninas e
as monarquias de sapatilha-vela.
VI
(Ainda assim, na manhã de Viseu, julho-me
visões versejáveis, quebrados os rostos do vulgo beirão
em prol da inteireza numismática, fantasmática,
de efígies de coroa sem cara
vislumbradas na barra do código.)
(Ainda assim, na manhã de Viseu, julho-me
visões versejáveis, quebrados os rostos do vulgo beirão
em prol da inteireza numismática, fantasmática,
de efígies de coroa sem cara
vislumbradas na barra do código.)
VII
Pinta-se de azul a água vertical – e é
a alba.
Sardaniscam as últimas estrelas.
Papoilas, olhemo-las: a cor escarlate feita ímpeto
de lacre não álacre: tossida mão esquerda
de mordomo enluvado a branco.
Nigérrimos cânticos em lugar de amarelas valsas:
a música prostitui pretéritos, cardioarritmias,
baronesas sobrinhas de duquesas tias,
de quanta beleza é feita a tristeza
de um olho na noite mental.
Um dia esta casa arderá e será de noite,
carburados os gamos,
flamejadas as raposas,
reflectidas enfim as infantas,
que eu ardo
em vossa presente assistência,
esta manhã,
brevis.
Pinta-se de azul a água vertical – e é
a alba.
Sardaniscam as últimas estrelas.
Papoilas, olhemo-las: a cor escarlate feita ímpeto
de lacre não álacre: tossida mão esquerda
de mordomo enluvado a branco.
Nigérrimos cânticos em lugar de amarelas valsas:
a música prostitui pretéritos, cardioarritmias,
baronesas sobrinhas de duquesas tias,
de quanta beleza é feita a tristeza
de um olho na noite mental.
Um dia esta casa arderá e será de noite,
carburados os gamos,
flamejadas as raposas,
reflectidas enfim as infantas,
que eu ardo
em vossa presente assistência,
esta manhã,
brevis.
ACREDITO PIAMENTE QUE A ÚNICA ALTERNATIVA À POESIA SEJA O JAZZ
Fotografia: Movimento, © Sandra Bernardo,
Viseu, entardenoitecer de 16 de Julho de 2008 (Viseu-Caramulo)
TÁBUA
I. TERCETOS PARA UM DOMINGO DE JULHO
– registo de propriedades: uma anacroasia, enfim
Viseu, Café Avenida, manhã de 20 de Julho de 2008
II. MÚSICA PARA JAZZ EM INGLÊZAMERICANO DE NEWARK
Viseu, Café Paris, tarde de 20 de Abril de 2008
******
I. TERCETOS PARA UM DOMINGO DE JULHO
– registo de propriedades: uma anacroasia, enfim
Viseu, Café Avenida, manhã de 20 de Julho de 2008
O nosso rosto multiplicado em solidão
multiplica o inverno das praias
em pleno estio, em pleno passado.
O nosso fechar de olhos para ver
o mais fundamente a ossatura
dos móveis mortos por toda a casa.
As nossas mulheres masculinas
forçadas ao economato e ao recato
e ao gato e ao rato.
Os nossos homens ridicularizados em bicicleta
nos domingos-manhãs municipais,
tudo p’la saúde do contribuinte e p’la regionalização.
As nossas ruídas casas de árvores roídas,
na mesma intemporal manhã
feita de tanto defunto unto futuro.
O nosso alude portátil ante encostas
de serra torrada de sol argênteo
e branco e de cal e dado a febres.
A nossa estupidez civil toda dotada
de alfarrabista coração: entre linhas
de ferro e mica: arrenda-se quartzo.
O nosso tungsténio, o nosso volfrâmio p’ra nazis,
a propriedade hebraica do fado,
o em arabesco rumor da formiga negrárabe.
O nosso móvel (morto) da sala, onde
os historiadores mortos passam ’inda
a história, que nos não contempla.
As nossas-senhoras de baquelite
dando colo aos nossos-cristos de estearina:
e um vermute prò papá e um gelado prà menina.
A nossa ânsia refogada a barbiturismos,
as pessoas no palco esperando públicos,
a intermitência do reclamo das farmácias.
A nossa propriedade da morte
em contrato-promessa e palavra de honra:
interjeição prima de placenta, gritada.
Os nossos fórceps guiando a desmesura:
a alimentar, a erótica, a lírica.
A desmesura lírica, errática, aquém-mentir.
A nossa extrema pureza antes da sonora,
a seiva dos adolescentes como leite-de-figo:
e os psychés d’antigamente rangendo tranças e retratos.
A nossa naftalina traça viuvezes pretas pretéritas,
tais a barra de sabonete entre anáguas
e segredos do pai com a mãe e com o vinho.
As nossas melhoras febrilmente desejadas
por fabris famílias dormitórias.
E em torno o ar em sol maior do que a vida.
As nossas mulheres fabrilmente ensejadas
por fabris mobílias dormictórias.
E em corno o bar em sol menor do que o devido.
A nossa purista extremista concernindo os clássicos:
o Maranhão de Vieira, a tesúria de Bocage,
Herberto no Café Gelo, Martim Codax sabe Deus.
As nossas crianças tornando-se delas só e
depois só e sós como, afinal, nós:
e a beleza delas vivendo-nos nossos outonos.
Os nossos telemóveis esperando uma graça
prometida na bíblia dos engates, dos empregos,
do tio-damérica, do programa da noite.
Os nossos vídeos sem áudio
pedindo desculpa pela interrupção, talvez
o programa siga adentro os momentos.
A nossa derradeira oportunidade entre pássaros
absolutamente comedores como municípios,
atento o pão velho, o velho lar.
A nossa espera que dança sem spes nem dança.
A nossa barbitúrica, a nossa barbie, a nossa úrica
única condição terceteira – e actual.
O nosso preto no nosso branco: além,
na palavra por dizer, branco e negro.
Mas querendo, como nós, alguma paleta.
O nosso reversível recordar tanto:
julhos de areias granulando finissimamente
as cavas bolsas entre dedos-pés.
O nosso choque azulibranco ante o verde
mar de repente: gritos pobres: o do senhor-dos-gelados,
o da senhora-dos-bolos, o do cristo-psyché.
A nossa bola-nívea subindo a tostões
a cal azul do sol anil, daniel:
apropria-te desse julho, desse 1970.
A nossa tão pouca paciência para
ter lido (e sido, já agora) ’té aqui:
a nossa tão pouca vida tanta.
A nossa multiplicação da nossa praia,
o nosso invernamento de estios não já nossos:
e nós sermos do verso, da carne e dos ossos.
A nossa não-sesta (ninguém dorme) da noss’ esta
manhã: julho dá-se a longes sem mar.
mica, quartzo, tungsténio: importa exportar.
A nossa ida à praça e a nossa vida à pressa.
E Eça e Derrida e Foucault todo de cabedal
gayíssimo entre as palavras e os coisos.
A nossa consciência-mas-só-agora
de o António Variações rumo a New York
com a bênção de Deolinda de Jesus.
A nossa luz babando sombra (: um pouco
de talento ajuda à resino-fixação dos
pretéritos fundadores, como o amor.)
A nossa multiplicação, a tão vossa solidão
à nossa tão parecida, por outras palavras:
as mesmas ou não, as mesmas ou não?
O nosso não virem mais os nossos
mas irmos nós para quem eles não são
já – é uma porra, pensando bem.
A nossa arte sozinha: o nosso tanque
de cimento em enferrujada varanda.
E o nosso império – quando nada há.
O nosso-nada-há quando tudo
nos despertence graças-a-deus,
a começar pelo vosso rosto:
pouco provável aliás agosto
de algum julho que a menor sol
se traia e subtraia.
A nossa circunvalação covardíssima
a nosso mesmo coração: rotundo
lixo pulsador, entre lapsos e entardenoiteceres.
O nosso ter uma mãe viva entre cegonhas
que mortas embora voam e vão e vêm:
e vêem, caleidoscópicas, nosso furto de cores.
Os nossos instrumentos tocando ’inda
vosso infantil solfejo de coro eglísio,
que não tão ínclito quão isso.
As nossas não nossas quintas vistas de fora,
nossos alheios solares por falta de pecúnio sangue:
e a nossa colecção de mortos sem casa.
A nossa universidade seguindo a televisão,
entre telenovelas programando torgas
e andrades e sujeição.
E o nosso nada dadentro nos-olharmos,
nosso perlimpimpim cabocoimbrão:
o “problema” continua a ser a “produção”.
O nosso marce-dois éles-caetano,
o nosso abóbora-do-belenenses,
a nossa pidesca popularia fatimante.
A merda de país que somos.
A merda de país que somos.
A merda de país que somos.
A nossa barrosã esquerdice
dó-lá-ré-sol baladeira:
e a nossa fund’ afinal covardia.
A nossa área dá mais rotundas
que ministérios educativos, ai,
antónios-vieiras, que joões-roízes.
A nossa deixação-de-andar, o nosso
julho, o nosso não-ler, a vossa
igual sobremultiplicada indiferença.
Por nós, porém, é ’inda o nosso rosto
que em vez, em voz,
por nós pensa.
Chama-se, a multiplicação, Língua Portuguesa.
Chama-se, o rosto, Língua Portuguesa.
Chama-se, a solidão, Língua Portuguesa.
A Língua Portuguesa febrilmente nos enseja, deseja.
(Mas somos um país de merda, um país de merda
somos, somos, somos, somos todos um país de merda.)
Durante um julho qualquer, façamo-la nossa,
que a ela pertencemos, somos, estamos,
ruímos, roemos, aluímos, aludimos.
Somos somos somos
nossos ossos
sós, muito muito muito sós.
******
II. MÚSICA PARA JAZZ EM INGLÊZAMERICANO DE NEWARK
Viseu, Café Paris, tarde de 20 de Abril de 2008
de lírios o júbilo branco
e calçadas desertoras
o cheiro a aves voadoras
delírios e júbilo e branco
uma estrela de mão
de trás um banco de carro
frase queimando um cigarro
o inverno em pleno verão
minha mão esquerda
tua mãe no teu retrato
miudinha chuva de rato
mas merda mas que merda
sábados volvem saturninos
espetados mindinhos pinguem
ginjas anéis coralinos
somos tanta gente ninguém
brava heroína da dança
suor perla decote
nem p’la vida nem p’la morte
não desiste só se cansa
dominó só som acrílico
petrifica a minha vida
faz-me pau faz-me fálico
traz lírios prà despedida
(trompetista sentado apogiatura
trémulas aves tão bemóis
que da lunar estelada altura
soam cristalinos sóis)
há pastéis de salmão
não cuspam mais na serradura
a vida é dura loucura a condição
do salmão a vida é dura
na noite um brilho azul
é dos olhos da senhora
jesus-menino manjedoura
mares do norte mares do sul
(piano descompassa a apresentação
silêncio tacet
quase indignado
do resto da banda
o piano:
coração-chove-cerejas-sangra-tardes-sangra-morango-nunca-te-perdoarei-o-domingànoite-final-de-todos-os-meus-inícios-todos-os-meus-precipícios-sou-um-só-um-sóssábado-na-noite-do-mais-recenteterno-domingo)
tules lacas líquenes
oxímoros úmeros números
ossos fácioneuros rictorítmicos
há menos líquenes oxiúros
venha chegue engorde a renda de casa
venha a gente quer morar por depósito
venha o saxtenor a dar compósito
ao grão à asa ao grão na casa
a vulva da mulher é pudimdama
é poronde vai sendo mulher dona de cama
o toque de um homem é de bares
já viu aeroportos e rodogares
(entra, contra, abaixo, o digital é
como a guitarra de portugal
mas mais e no mais em portugal
entra o contrabaixo:
zum zam dedo dedo digital
isté jazz base portugal
isté cromática diferença
jazz nunca é coisa que se pensa
lourença marquescoisa ana luanda
cidade da praia da mais branca
anda e não anda
sabor do oceano
é ter tempo e momento
é respirar ó se ano
qual ano qual ano qual ano)
20/07/2008
A Seguir
A seguir, alguns tercetos próprios de um dia vinte, de um mês de julho e de um ano qualquer, como este.
19/07/2008
TODA A CAUTELA É MUITA
Fotografia: © Sandra Bernardo, Viseu, manhã de 19 de Julho de 2008
Texto: Viseu, Casa, tarde de 19 de Julho de 2008
Todas as gerações são uma só geração
só.
Assim
um homem é todos os homens
em toda a geração.
Todas as mulheres e todos os homens andam
num homem: e por ele
falam todas as línguas
em um verso
único e só e total.
2
As muitas imagens únicas do mundo
aclaram a noite da fala.
A fala é esse vento das árvores
pulmonares.
Um cauteleiro é tudo
de quanto precisamos para
gerar uma humanidade
só.
Urdir uma humanidade é
como urdir uma rosa
dos ventos.
18/07/2008
Uma crónica para a Sojormédia: O Ribatejo, Região de Leiria, Jornal da Bairrada e Jornal do Centro
Recordações e pássaros para o Inverno
Todos os verões colecciono nomes para dizer no Inverno.
A meio do corrente Julho, os escritores Anthony Burgess e Lawrence Ferlinghetti juntaram-se-me já ao rol. Eles e o tão glorioso quão trágico Jaco Pastorius, que muita e muito boa gente considera ainda, quase 21 anos decorridos da sua morte prematura, um dos mais geniais músicos do século XX.
Não o faço por ócio nem por negócio. Faço-o porque não posso evitar fazê-lo. Aprender obras e vidas alheias é adquirir uma memória complementar, que enriquece sobremaneira a corrente precária da existência. Trata-se, naturalmente, de um tesouro simbólico, posto que me não põe o pão na mesa nem me atesta de gasóleo o carro. Mas protege-me no Inverno, quando, à janela vendo o que chove, sinto a companhia destes e doutros nomes do mundo (i)memorial.
Noutros estios, foi-me chegando uma multidão. Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, quis acreditar à força toda em patranhas mediúnico-espirituais. Aquilino Ribeiro deu-se de corpo e alma à detecção e à redacção de faunos, lobos e raposinhas. A Manuel Vásquez Montalbán, falhou o coração no aeroporto de Banguecoque, cidade que romanceou com pássaros tailandeses. Rui Jordão, gazela ponta-de-lança de Benfica, Sporting e Vitória de Setúbal, é hoje pintor de arte e não vai em futebóis. E o senhor Carlos Henrique Silva Oliveira, que integrava a Direcção da Federação Ornitológica Nacional Portuguesa, integra agora a Federação Necrológica Nacional Portuguesa, posto que faleceu na página 51 do JN de terça-feira, 15 de Julho de 2008.
No ocaso da última manhã da primeira e penúltima quinzena do corrente Julho, sou aguardado em casa pela onomástica futura de um Inverno prévio para sempre. Por causa do calor, hei-de cerrar os estores em umbroso subsídio da pedra e das madeiras que me conformam a habitação. Depois de um almoço frio (conservas, feijão-frade, tomate e gasosa espanhola traçando tinto de cooperativa íncola), irei à janela ver o que não chove. Será então que o Inverno me retomará as unhas e os dentes e o resto do corpo e toda a alma. Fá-lo-á munido do aleatório rol do costume – alinhando nomes sem corpo por todas as divisões da casa, quase inquietando a sesta das gatas: os nomes que acima vos deixei e outros que, em baixo, nunca mais me deixarão, como tiveram os pássaros de fazer quanto a Manuel Vásquez Montalbán e ao senhor Carlos Henrique Silva Oliveira.
Todos os verões colecciono nomes para dizer no Inverno.
A meio do corrente Julho, os escritores Anthony Burgess e Lawrence Ferlinghetti juntaram-se-me já ao rol. Eles e o tão glorioso quão trágico Jaco Pastorius, que muita e muito boa gente considera ainda, quase 21 anos decorridos da sua morte prematura, um dos mais geniais músicos do século XX.
Não o faço por ócio nem por negócio. Faço-o porque não posso evitar fazê-lo. Aprender obras e vidas alheias é adquirir uma memória complementar, que enriquece sobremaneira a corrente precária da existência. Trata-se, naturalmente, de um tesouro simbólico, posto que me não põe o pão na mesa nem me atesta de gasóleo o carro. Mas protege-me no Inverno, quando, à janela vendo o que chove, sinto a companhia destes e doutros nomes do mundo (i)memorial.
Noutros estios, foi-me chegando uma multidão. Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, quis acreditar à força toda em patranhas mediúnico-espirituais. Aquilino Ribeiro deu-se de corpo e alma à detecção e à redacção de faunos, lobos e raposinhas. A Manuel Vásquez Montalbán, falhou o coração no aeroporto de Banguecoque, cidade que romanceou com pássaros tailandeses. Rui Jordão, gazela ponta-de-lança de Benfica, Sporting e Vitória de Setúbal, é hoje pintor de arte e não vai em futebóis. E o senhor Carlos Henrique Silva Oliveira, que integrava a Direcção da Federação Ornitológica Nacional Portuguesa, integra agora a Federação Necrológica Nacional Portuguesa, posto que faleceu na página 51 do JN de terça-feira, 15 de Julho de 2008.
No ocaso da última manhã da primeira e penúltima quinzena do corrente Julho, sou aguardado em casa pela onomástica futura de um Inverno prévio para sempre. Por causa do calor, hei-de cerrar os estores em umbroso subsídio da pedra e das madeiras que me conformam a habitação. Depois de um almoço frio (conservas, feijão-frade, tomate e gasosa espanhola traçando tinto de cooperativa íncola), irei à janela ver o que não chove. Será então que o Inverno me retomará as unhas e os dentes e o resto do corpo e toda a alma. Fá-lo-á munido do aleatório rol do costume – alinhando nomes sem corpo por todas as divisões da casa, quase inquietando a sesta das gatas: os nomes que acima vos deixei e outros que, em baixo, nunca mais me deixarão, como tiveram os pássaros de fazer quanto a Manuel Vásquez Montalbán e ao senhor Carlos Henrique Silva Oliveira.
Dísticos para Fados, para Filmes e para demais Florestações
Fotografia: © Brassaï (pseudonym of Gyula Halász), House of Illusion, from Paris by Night, 1933
Texto: Esplanada do Café Mundial, noite de 17 de Julho de 2008
nem este homem ao mal.
Não tem mal algum que ele saia sozinho na noite
e de noite confira quanto pode o dia:
por exemplo, pode fundir as flores
a bibliotecas: a páginas tantas, tantas
folhas escritas nas árvores pelos cantores
pássaros gráficos ao vento recordado,
livroárvores que desengelham badanas de sombra,
a sombra que quando toda é a noite.
Que mal assacar deveras a este homem
atento às janelas amarelas dos outros,
aos filhos dos outros algaraviando o perfume
invencível da infância descuidada de florestas
e de bibliotecas? Nenhum mal.
Nem mal algum à verdade dos pássaros
escritores, que, se cantam, o cantam
por cio ou predação, dá o mesmo.
Nenhuma cidade será outra para este homem
sem mal: que nenhuma outra é
deveras outra, quando se é um homem só
ou tão-só um homem. Aqui uma farmácia
igual a todas, um pouco mais um bar,
uma tipografia, uma churrasqueira e
um polícia detido por tédio a meio da carreira. A Lua,
cheia de mal algum, urde sua baba de prata,
da sacerdotal sombra é este candeeiro
o acólito magro e pernalta, putas há
que avenidam seus hálitos a alho, suas
conas murchas, seus roedores íntimos agravos.
Que mal tem nem sábado seja? Outro virá
mesmo: um sábado, um homem sá-
bado-só. Quebrado pela espinha, um jornal
esfarela-se como um pólen de borboleta: mal
não tem que as palavras e as imagens
retornem ao lixo de que provieram.
Nada conta que, tal folha de árvore,
esta de jornal pagine a par a segunda
mão dos carros e na ímpar a ímpar
necrologia parente dadontendamanhã.
Mal nenhum e nenhum bem. Pilritam
os lembrados pássaros cristalinas letrinhas:
c-i-o, p-r-e-d-a-ç-ã-o, h-o-m-e-m.
Pedras portuguesas tossem lascas chãs:
vielas que descem gatos úricos e reumatismos
felinos, joelho velho, coelho vermelho.
A tinta azul de uns olhos, escurecidos agora
na polução nocturna, a mão no bolso roto.
Agora o estrabismo vertical dos semáforos,
faróis sem barcos para mar nenhum.
Nenhum mal vos ocorrerá deste homem,
que mal não quer nem leva senão o de
condenado às galés do futuro descendente
aliás comum à demais gente.
Açucenas, ralos e cegarregas adoçam
rostos de rápidos estios: todos queimados
em a água de sucedentes invernos,
estendia o estanho das cheias seus afogados
de moldura pró-viúvos lares oblíquos
e recordados, enquanto caminha.
Outras vezes, deste homem a boca toda
músculo, másculo todo o morder
em quem, quem e em que cidade?
É verão ’inda, é já outono:
e nem a bênção do sono o acontece
fundo dentro em algum lar de gente:
que a vida confirma a identidade,
na cidade, do idêntico diferente.
Biblioteca afinal também ela, a portuguesa
cidade: tão dada a livros esquecidos
mas repetidos no homem só que só sai,
sábado ou não, a ler pássaros que não
há no papel muito preto das janelas
amarelas. Nisto, ocorre um crime:
tinònis azulam algum bairro social
(mas mal algum, qual quê, algum
mal num saquito de erva cotado a navalhas, num
fungo de pó branco, numa altercação cigana?
Nenhum mal, mal algum.) Corta-se
à direita – ruínas de um solar,
aliás em ruínas como todo
o agregado familiar.
Palmeiras anacronizam tunísias
de importação, um cão de ninguém
ladra nem por mal nem por bem.
A grande Lua dá-se, hóstia, ao incréu
palato do impenitente como à demais
gente. Pousa, final, o homem seus ossos
mesmos em uma bossa de terra mole
e descansa. Amanhã será outro
ontem. Entretanto, da cidade já ida
(luzes poucas laranjam o pomar de pedra),
uma espécie de beleza alvora-se d’anil.
Anil, não mal, mal algum, bem nenhum.
Vestem já jaqueta de escritor os passaritos,
ondulalbam as bibliotecas já, a páginas tantas.
17/07/2008
Comoventes Desumanidades
História nº 74 da rubrica 1002 Noites
"Mariazinha" é interpretado por MARIANA.
Produção do Anoitecer ao Tom Dela
para a Emissora das Beiras
– 3ª hora do Anoitecer (entre as 20 e as 24 horas, de 2ª a 6ª feiras).
Sonorização de José Eduardo Saraiva.
Comoventes Desumanidades
Caramulo, tarde de 17 de Abril de 2007
1
Esta manhã, o ar era de cera pura. Uma granada de oiro ampliava a luz. Recordei a tarde de anteontem, quando me deitei, ao sol, no banco junto à fonte. O pulmão da fonte cantava espuma transparente. Vi, de baixo, as nuvens desenhando-se umas às outras, muito lânguidas, cheias de uma comovente desumanidade.
2
Esta manhã, estive sozinho perante o parque. Não entrei no parque. Fiquei deste lado da estrada, emprenhando-me de textos rumorosos que depois são animaizinhos larvares, pretos, no papel. Peixes vermelhos num tanque sem dono – estes, por assim dizer, versos.
3
Tinha o coração na garganta. Tinha as pedras subindo do chão – como um nevoeiro de quilogramas. Os pássaros apitavam. Eu tinha uma cauda: de nomes, de noites. Vi a mulher amarela ao balcão da ponte: eu e ela, de olhos fechados. O outro homem, atrás de nós, de olhos abertos.
4
A carroça dos legumes parada em frente ao sanatório. O homem da carroça, de botas castanhas por fora das calças, apeando sacos de cenouras, caixas de couves, batatas, nabos, rabanetes. O encarregado pesando a comida numa balança estragada.
5
Mas havia o oiro – a granada. As horas passavam-se como páginas. Na estação dos Correios, três idosos recebiam a pensão de reforma. Sorriam a amargura dos pedintes. Lá em baixo, na água negra, os peixes vermelhos.
6
Toda a manhã não vi uma criança. Os pássaros desciam pelas pedras que pontuavam o ar. Vinham catar pão à terra, vinham catar larvas e palavras, vinham cantar.
7
À tarde, sentei-me no muro atrás da casa. Passavam na estrada raparigas de boca muito vermelha: como se sangrassem uma papoila pelos dentes, como se falassem de um tanque negro. Era tudo tão terrível quanto a terra ao sol.
8
Este é o tempo em que me vou sentando. Um rasto de homens (e de noites; e de nomes) escurece as folhas escritas pelas árvores. Alguns animais passam, monarquizados pelo silêncio competente dos animais – quando eles parecem pessoas que só pensam e não dizem.
9
Nunca assisti, mas garantem-me que, noutros verões, crianças se descalçavam para afogar os pés muito brancos na água vermelha de peixes negros, em baixo, no tanque. As sombras avolumavam-se nas costas das crianças.
10
Devo ter chegado tarde – devo partir cedo. Não é aqui, ainda, a última fogueira. As manhãs ardem, é certo. É certo que as noites queimam. Os pássaros recolhem os casacos, nem duas palavras dizem à despedida. Se as direi eu? Fecho os olhos – e o dia.
Homem Desorientado com Chapéu (para ler enquanto o cão ladra em cima)
História nº 72 da rubrica 1002 Noites
(NB: há pontuais discrepâncias entre o dito e o escrito - façamos de conta que é de propósito.)
Produção do Anoitecer do Tom Dela
para a Emissora das Beiras
– 3ª hora do Anoitecer (entre as 20 e as 24 horas, de 2ª a 6ª feiras).
Sonorização de José Eduardo Saraiva.
Viseu, manhã de 4 de Abril de 2007
1
A manhã de Abril não conseguia decidir-se. O nevoeiro e o sol alternavam como o veludo e o diamante. O comércio e a religião já estavam disponíveis: lojas e igrejas franqueavam os pórticos. Os transportes de mercadorias e os de pessoas evoluíam no aperto multitudinário da quarta-feira. Pombas trepavam ao rebordo da fonte luminosa para beber, perto de que brincavam crianças ciganas. Um polícia de trânsito sorria ao receber os documentos de uma automobilista solteira.
2
O homem desorientado andava em pleno Rossio caligrafando passos de uma incerteza total. Derivou pelo corredor de colunas da Caixa de Depósitos, parou à entrada do jardim, voltou para trás, espreitou pela porta de vidro da Câmara Municipal, voltou para trás e acabou sentando-se no rebordo da fonte luminosa, aspergido pela poalha de água.
3
O homem desorientado era protegido pela dupla indiferença da urbe e da manhã. Só não estava a salvo da literatura. Na viela descendente, uma casa de churrascos ardia frangos aromáticos. O homem parou do lado de fora e ficou a assistir à dança circular e terminal da comida. Quatro meliantes que passavam com maneirismos de hip-hop deram-lhe uma palmada no chapéu, que caiu no chão sujo de molho picante.
4
O homem voltou-lhes as costas e continuou a descer, em cabelo, a viela começada pela churrasqueira. O polícia de trânsito tinha visto tudo. Soprou no apito. Já não sorria, o agente. Mandou parar o quarteto de macacos e ordenou ao da palmada que recolhesse do chão o chapéu do homem.
5
A cidade parou ao silvo policial. O quarteto interdito mal se atrevia, na expectativa, a respirar. O polícia e os quatro gajos desceram a viela até o ponto em que o homem desorientado parara também. Era em frente a uma retrosaria. O homem desorientado olhava luvas de lã e cachos de fita elástica.
6
Os quatro delinquentes tiveram de apresentar, um por um e em língua nacional, um pedido de desculpas ao homem desorientado. Ele respondeu:
– Está bem. Agora o chapéu.
O da palmada deu-lhe o chapéu. Sem uma palavra mais, o homem desorientado saiu de cena. O polícia virou-se para o quarteto e disse:
– Andor.
7
A cidade começou a envelhecer de repente. Tinha passado a hora de almoço. As igrejas couraçavam-se de sombra, ases de pedra na manga de Deus. Nos pátios do bairro social, mulheres ciganas descascavam favas e depenavam pombas. Sem sapatos, uma lojista vestia um manequim na montra. O reforço dos collants escurecia-lhe a cera dos calcanhares. Um farrapo de jornal francês trapejava pelo chão à mercê da brisa.
8
Catrapilos tripulados por eslavos mastigavam pirâmides de terra para que o novo hipermercado, antes ainda do Verão, pudesse botar seus ovos de ouro falso. Aposentados mirones e taxistas afectos ao antigo regime relatavam a obra de cotovelos oxidados na grade de ferro do passadiço. Mulheres do campo, aleijadas de seiras, galinhavam na paragem da carreira.
9
A Europa é mais acima. A tarde escolheu o sol, que já sangra roxuras a ocidente. Enferrujam a seis metros de altura os antigos depósitos de água da estação do caminho-de-ferro. A noite é sempre contemporânea – e é noite, agora, como foi e há-de ser.
10
Talvez eu devesse ter tido, ao menos, uma palavra de reconhecimento para com o senhor polícia. Mas as palavras desorientam-me. Calo-me para não perder tudo. Calo-me para não perder tudo de vez. Hoje, com o chapéu, funcionou.
Sonorização de José Eduardo Saraiva.
Viseu, manhã de 4 de Abril de 2007
1
A manhã de Abril não conseguia decidir-se. O nevoeiro e o sol alternavam como o veludo e o diamante. O comércio e a religião já estavam disponíveis: lojas e igrejas franqueavam os pórticos. Os transportes de mercadorias e os de pessoas evoluíam no aperto multitudinário da quarta-feira. Pombas trepavam ao rebordo da fonte luminosa para beber, perto de que brincavam crianças ciganas. Um polícia de trânsito sorria ao receber os documentos de uma automobilista solteira.
2
O homem desorientado andava em pleno Rossio caligrafando passos de uma incerteza total. Derivou pelo corredor de colunas da Caixa de Depósitos, parou à entrada do jardim, voltou para trás, espreitou pela porta de vidro da Câmara Municipal, voltou para trás e acabou sentando-se no rebordo da fonte luminosa, aspergido pela poalha de água.
3
O homem desorientado era protegido pela dupla indiferença da urbe e da manhã. Só não estava a salvo da literatura. Na viela descendente, uma casa de churrascos ardia frangos aromáticos. O homem parou do lado de fora e ficou a assistir à dança circular e terminal da comida. Quatro meliantes que passavam com maneirismos de hip-hop deram-lhe uma palmada no chapéu, que caiu no chão sujo de molho picante.
4
O homem voltou-lhes as costas e continuou a descer, em cabelo, a viela começada pela churrasqueira. O polícia de trânsito tinha visto tudo. Soprou no apito. Já não sorria, o agente. Mandou parar o quarteto de macacos e ordenou ao da palmada que recolhesse do chão o chapéu do homem.
5
A cidade parou ao silvo policial. O quarteto interdito mal se atrevia, na expectativa, a respirar. O polícia e os quatro gajos desceram a viela até o ponto em que o homem desorientado parara também. Era em frente a uma retrosaria. O homem desorientado olhava luvas de lã e cachos de fita elástica.
6
Os quatro delinquentes tiveram de apresentar, um por um e em língua nacional, um pedido de desculpas ao homem desorientado. Ele respondeu:
– Está bem. Agora o chapéu.
O da palmada deu-lhe o chapéu. Sem uma palavra mais, o homem desorientado saiu de cena. O polícia virou-se para o quarteto e disse:
– Andor.
7
A cidade começou a envelhecer de repente. Tinha passado a hora de almoço. As igrejas couraçavam-se de sombra, ases de pedra na manga de Deus. Nos pátios do bairro social, mulheres ciganas descascavam favas e depenavam pombas. Sem sapatos, uma lojista vestia um manequim na montra. O reforço dos collants escurecia-lhe a cera dos calcanhares. Um farrapo de jornal francês trapejava pelo chão à mercê da brisa.
8
Catrapilos tripulados por eslavos mastigavam pirâmides de terra para que o novo hipermercado, antes ainda do Verão, pudesse botar seus ovos de ouro falso. Aposentados mirones e taxistas afectos ao antigo regime relatavam a obra de cotovelos oxidados na grade de ferro do passadiço. Mulheres do campo, aleijadas de seiras, galinhavam na paragem da carreira.
9
A Europa é mais acima. A tarde escolheu o sol, que já sangra roxuras a ocidente. Enferrujam a seis metros de altura os antigos depósitos de água da estação do caminho-de-ferro. A noite é sempre contemporânea – e é noite, agora, como foi e há-de ser.
10
Talvez eu devesse ter tido, ao menos, uma palavra de reconhecimento para com o senhor polícia. Mas as palavras desorientam-me. Calo-me para não perder tudo. Calo-me para não perder tudo de vez. Hoje, com o chapéu, funcionou.
16/07/2008
A Mesma Coisa - para ler enquanto o gajo fala
História nº 81 da rubrica 1002 Noites
Produção do Anoitecer do Tom Dela
para a Emissora das Beiras
- 3ª hora do Anoitecer (entre as 20 e as 24 horas, de 2ª a 6ª feiras).
Produção do Anoitecer do Tom Dela
para a Emissora das Beiras
- 3ª hora do Anoitecer (entre as 20 e as 24 horas, de 2ª a 6ª feiras).
Sonorização de Sandra Bernardo.
A Mesma Coisa
Viseu, Café Avenida, tarde de 26 de Junho de 2008
1
Os mortos preferem o lado solar das ruas, por onde passam acalmados pela sarça ardente que junho é no fim dos dias. Passam o resto da eternidade com os ossos cheios de terra gelada, coitados, de modo que preferem o lado solar das ruas, por onde passam ardentes à calma. Nós, os vivos do comércio, cosemo-nos à sombra de bocas abertas como peixes, como engolidores de fogo. E o pó e a cal desenham-nos os olhos – e na calma somos egípcios, egípcios devorados pela areia.
2
Numa tarde de um junho, a luz era tanta, que nenhum ano do Senhor lhe correspondia. Era além do tempo, aquém da contagem, o cá era longe e o além era a mais próxima virtude, digamos, do coração. Os mortos e os vivos transitavam em ruas com bilhete de sol & sombra como nas touradas. Eu estava de ambos os lados – decerto por causa da não coincidência entre, digamos, o coração e a cabeça. Na tarde, à calma ardente, vi ao mesmo tempo uma casa em ruínas e um prédio em construção – e eram a mesma coisa.
3
Acontece que envelhecer é só ter anos terminados mas não meses determinados – muito menos tardes, ruas muito menos. Falo-vos do trânsito dos mortos numa tarde interminável (interminável enquanto escrevo) de um junho cujo ano não sei, nunca pude saber, sabereis talvez vós qual foi – ou será. Interminável e indeterminável – é a mesma coisa.
4
Então, aconteceu uma coisa maravilhosa. Pensei (dizendo de melhor maneira: senti) que amanhã podia ser. Senti que o amanhã podia ser. Que podia ser que fosse – ou viesse a ser – amanhã. Era por causa da luz. Era por causa da luz a ser. As ruas, estabelecidas pelo comércio de sol & sombra entre mortos & vivos, vincavam panos pretos, laranjas de puro oiro, água nas veias, rápidas lápides, ríspidas cúspides – a árida avidez da ávida vida que há a haver. A haver e a ver – é a mesma coisa maravilhosa.
5
Nessa cidade interminada e indeterminada que tanto podia ser, sei lá, Viseu como Santarém como outra cidade qualquer, recordei, vendo os mortos passar à calma dos vivos, a casa-de-pasto onde, criança de outro junho e de ano algum, a família me levou a conhecer um galo de cabidela cujas tíbias apontavam o céu de madeira da sala-de-jantar. Era numa casa de família que servia veraneantes pobres. Éramos antes o Verão e éramos pobres – mas tínhamos para o galo e para ter ido ver a água. Eu vejo isto passar, à calma.
6
Comemos o galo, houve daquelas graças privadas que são o código das famílias, os indetermináveis anos terminais transitaram outros junhos e os novembros mesmos, cresci, estamos aqui todos a esta mesa vendo os panos pretos das ruas, onde os vivos, e os dourados, onde os mortos. Isto já foi e isto vai ser – com outros jogadores, as mesmas cartas e as mesmas regras: e a mesma coisa.
7
Nisto, o coração e a cabeça morrem e vivem. Nascem muito, ambos, perto da refrigéria fonte, da diamantina estatelação, digamos, de constelações, de estatelamento de firmamento, digamos. E a noite das preocupações habita a tarde flava, a fulva véspera, a estiva da roda dos estios, fundos os altos poços da montanha, até por recordação ser dar corda ao coração – por repetição da mesma coisa.
8
O sol arde mais do vivo nome dos mortos que passam ficando. Eles preferem o lado solar, têm os ossos plenos de terra congelada, coitados, estão tão sozinhos na permanência das tardes sem anos numeráveis. Nós, os vivos, os do comércio que há-de morrer quando de novo chover como antigamente, nós abrimos as bocas e engolimos fogo e somos peixes na natação do nada – que é tudo o que podemos.
9
Nasce uma criança para lados do poente, o parto é tremendo em casa, mulheres acorrem à mulher soerguida na cama de ferro, trazem água quente, linhos lavados como a luz, a figueira do pátio uiva como um lobo subido à montanha da lua, onde junho interminável abriu uma cratera de recordações futuras. A nova criança há-de ser um dos mortos mais solares que os vivos puderem recordar. Ou recordares tu, à calma.
10
Peço-me e despeço-me de ti, convosco. Não mudarei de rua, mas de lado dela. Tenho bilhete para a tourada. Umbroso solário, ominoso e uno – que não vário –, recordo o galo pobre cujos perónios apontavam o firmamento de madeira da humílima casa-de-pasto rés-da-barragem em outro junho mesmo que este. Nisto, então, ou agora para sempre, um dos mortos vive-me, a gelada mão direita, a que escreve na boca que fala, erguida em sinal de saúde ou de, o que é a mesma coisa, até mais não ver.
A Mesma Coisa
Viseu, Café Avenida, tarde de 26 de Junho de 2008
1
Os mortos preferem o lado solar das ruas, por onde passam acalmados pela sarça ardente que junho é no fim dos dias. Passam o resto da eternidade com os ossos cheios de terra gelada, coitados, de modo que preferem o lado solar das ruas, por onde passam ardentes à calma. Nós, os vivos do comércio, cosemo-nos à sombra de bocas abertas como peixes, como engolidores de fogo. E o pó e a cal desenham-nos os olhos – e na calma somos egípcios, egípcios devorados pela areia.
2
Numa tarde de um junho, a luz era tanta, que nenhum ano do Senhor lhe correspondia. Era além do tempo, aquém da contagem, o cá era longe e o além era a mais próxima virtude, digamos, do coração. Os mortos e os vivos transitavam em ruas com bilhete de sol & sombra como nas touradas. Eu estava de ambos os lados – decerto por causa da não coincidência entre, digamos, o coração e a cabeça. Na tarde, à calma ardente, vi ao mesmo tempo uma casa em ruínas e um prédio em construção – e eram a mesma coisa.
3
Acontece que envelhecer é só ter anos terminados mas não meses determinados – muito menos tardes, ruas muito menos. Falo-vos do trânsito dos mortos numa tarde interminável (interminável enquanto escrevo) de um junho cujo ano não sei, nunca pude saber, sabereis talvez vós qual foi – ou será. Interminável e indeterminável – é a mesma coisa.
4
Então, aconteceu uma coisa maravilhosa. Pensei (dizendo de melhor maneira: senti) que amanhã podia ser. Senti que o amanhã podia ser. Que podia ser que fosse – ou viesse a ser – amanhã. Era por causa da luz. Era por causa da luz a ser. As ruas, estabelecidas pelo comércio de sol & sombra entre mortos & vivos, vincavam panos pretos, laranjas de puro oiro, água nas veias, rápidas lápides, ríspidas cúspides – a árida avidez da ávida vida que há a haver. A haver e a ver – é a mesma coisa maravilhosa.
5
Nessa cidade interminada e indeterminada que tanto podia ser, sei lá, Viseu como Santarém como outra cidade qualquer, recordei, vendo os mortos passar à calma dos vivos, a casa-de-pasto onde, criança de outro junho e de ano algum, a família me levou a conhecer um galo de cabidela cujas tíbias apontavam o céu de madeira da sala-de-jantar. Era numa casa de família que servia veraneantes pobres. Éramos antes o Verão e éramos pobres – mas tínhamos para o galo e para ter ido ver a água. Eu vejo isto passar, à calma.
6
Comemos o galo, houve daquelas graças privadas que são o código das famílias, os indetermináveis anos terminais transitaram outros junhos e os novembros mesmos, cresci, estamos aqui todos a esta mesa vendo os panos pretos das ruas, onde os vivos, e os dourados, onde os mortos. Isto já foi e isto vai ser – com outros jogadores, as mesmas cartas e as mesmas regras: e a mesma coisa.
7
Nisto, o coração e a cabeça morrem e vivem. Nascem muito, ambos, perto da refrigéria fonte, da diamantina estatelação, digamos, de constelações, de estatelamento de firmamento, digamos. E a noite das preocupações habita a tarde flava, a fulva véspera, a estiva da roda dos estios, fundos os altos poços da montanha, até por recordação ser dar corda ao coração – por repetição da mesma coisa.
8
O sol arde mais do vivo nome dos mortos que passam ficando. Eles preferem o lado solar, têm os ossos plenos de terra congelada, coitados, estão tão sozinhos na permanência das tardes sem anos numeráveis. Nós, os vivos, os do comércio que há-de morrer quando de novo chover como antigamente, nós abrimos as bocas e engolimos fogo e somos peixes na natação do nada – que é tudo o que podemos.
9
Nasce uma criança para lados do poente, o parto é tremendo em casa, mulheres acorrem à mulher soerguida na cama de ferro, trazem água quente, linhos lavados como a luz, a figueira do pátio uiva como um lobo subido à montanha da lua, onde junho interminável abriu uma cratera de recordações futuras. A nova criança há-de ser um dos mortos mais solares que os vivos puderem recordar. Ou recordares tu, à calma.
10
Peço-me e despeço-me de ti, convosco. Não mudarei de rua, mas de lado dela. Tenho bilhete para a tourada. Umbroso solário, ominoso e uno – que não vário –, recordo o galo pobre cujos perónios apontavam o firmamento de madeira da humílima casa-de-pasto rés-da-barragem em outro junho mesmo que este. Nisto, então, ou agora para sempre, um dos mortos vive-me, a gelada mão direita, a que escreve na boca que fala, erguida em sinal de saúde ou de, o que é a mesma coisa, até mais não ver.
15/07/2008
E. O. – prosas quase versilibristas
Textos: Viseu, de 7 a 11 de Julho de 2008
Fotografias: Viseu, entardenoitecer de 10 de Julho de 2008
1. COMO SER FELIZ EM COISA DE HORA E MEIA
- uma profilaxia ambulatória mais –
Café Twins, tarde de 7 de Julho de 2008
Euforia oceânica, já muita sofri em terra firme longe do mar.
A visão de algum arvoredo, o vento lhe dando, é quanto me basta à espécie.
Também pratico o dia-a-dia, mas cada vez menos.
Uma volta solar pela cidade – e de repente, tal clarão, um arvoredo eólico marinha-me o instante, que à passagem se recusa e fica, ante o vento aeróbico do antefim da tarde.
Na boca, o pó e o cuspo argamassam já o texto-em-breve.
As calças imitam as pernas, cuja sombra estende panos rápidos na pedra do chão.
Estou vivo.
De manhã, ouvi a música de Aaron Copland, depois a de Hanns Eisler.
Na saleta, o tempo era alimentado a móveis.
Não enverguei os óculos, pelo que uma ameaça de dor de cabeça correu comigo dali antes de poder ouvir Schoenberg jogado ao piano por Gould e ao violino por Menuhin.
Fiz-me à rua, o Sol refrescava as casas religiosas, condenava à humidade as tabernas (onde o coração se torna esconso) e as retrosarias (onde as ferramentas de coser miniaturizam as mães recordadas), libelulizava os peões insignes deste tempo sem glória.
Fui a um bazar chinês, comprei este caderno, entrei no café e dei-me uma hora e meia para ser feliz.
À esquerda de quem entra, a máquina do tabaco espera pelos respiradores de resina.
Ainda é cedo – e é já tão tarde.
Dois homens sem angústia conversam entre copos de cerveja sobre licenciamentos camarários de obras pela porta-do-cavalo: não são burros.
Uma mulher, grossa e alta como um pneumático de tractor, ingere chá com banda sonora labial.
É de sardas moles no decote bambo, pés de pele de quartzo em sandálias de menina anacrónica, nádegas aluídas que gelatinam quando tosse, jibóia ventral brotando da blusa insuficiente.
Ao balcão, um bigode grisalho tasquinha tremoços.
Ao lado, muito impaciente (um feixe de nervos farpados), a esposa do bigode faz-me (d)escrever: perna dietética, emagrecida do mau sexo e pior perspectiva.
Longe daqui, suponho o mar enrolando suas tranquilas ânsias.
Estamos no Verão, é o tempo das conas-de-plástico e dos tarzans-de-pêlo-nas-costas.
Pelos areais, longe daqui, vereadores e gansos a recibo-verde patinham já a incompreensão cosmogónica que resulta do espectáculo oceânico – e da sua desumana euforia, como a que sofro ante qualquer arvoredo.
Cheguei a uma idade dotada da amarga bonomia de ver ao longe o que é próximo: e dentro, o que só longínquo tem sentido.
Bastar-me-ia tão pouco, que nada é tudo que tenho.
Ao Sol do fim de tarde, é certo que me salvo pela incursão, por assim dizer almóada, nos cristãos descampados da cidade.
Divãs de loja suportam almofadas cor-de-limão.
A senhora do balcão tem os dentes todos.
Uma criança dá-se a galinhar íntimos labirintos entre mesas.
Um amigo meu trouxe ontem damascos da aldeia dos pais.
Ali, uma árvore fulgura seu mesmo cartaz.
A morte conspira nos interstícios das falas – ou a fadiga por ela, não sei.
Sei que devo trabalhar, entrar nisto sempre e para sempre.
Ser feliz, mesmo sem cronómetro à vista, não é tarefa pontual, mas ofício cosmológico de rés-do-chão: aqui onde pensamos e vivemos, aqui onde pensamos que vivemos.
Alguns objectos, agora:
um cinzeiro de faiança branca patrocinado pela firma de hotelaria FL;
uma caixa de enrolar tabaco em um par de mãos brancas como a neves dos documentários-TV de sábado de manhã;
de um olhar indígena, a sombra materializada em coruscação de montra;
súbita na língua, a palavração dos substantivos cedro e cipreste (mais, deles e dela, a patogenia morbimelancólica);
caules de ferro dando corolas de tampo de mesas;
uma criança exercendo a inocência da morte e a culpa do nascimento;
a vulgata astrológica do calendário de parede;
o fedor a humanidade e a democracia sem livros,
rápidas na retina, andorinhas fogodartificiando fulminantes violínicos;
a hemorrosa da sombra pelo chão, agravada pelas calças dos que escrevem;
e um azulejo com uma quadra portuguesa receitando a felicidade por hora e meia.
2. ENTRE REFEIÇÕES
- algumas enumerações ortoépicas –
Café Mundial, acabada a manhã de 8 de Julho de 2008
O pão é de ontem.
Sobre a folha de mármore, o pão espera a consumpção.
O vinho demora, arquivado em vidro vertical.
A nova tarde fulgura já nos vidros faciais da casa.
O muito não poder abre todas as possibilidades.
Sou provavelmente portador de um coração inconsútil.
Tu és seguramente uma pessoa a norte de ti mesma.
A tristeza é uma gota de água, uma-duas-mil-a-mesma, uma bacia de plástico mental.
O coração dá-se, não doce, à condição de cisterna.
Revolução Industrial, não Pessoal.
Uma terça-feira, os noticiários ardendo de febre, os comboios suburbanos levand&trazendo as formigas.
A realidade como um filme deixado a gravar em casa alheia.
Os nomes muito vivos de uns poucos mortos.
Os mortos vivendo muito.
O filme com eles.
A irrisão, a metafísica, o pão já velho.
A não benigna bonificação das taxas de crédito, sua falaciosa etimologia, seu ai-se-de-ti-de-pêssego.
A febre controlada a golpes, embaciados eles também, de bebida fria, à calma.
O instante nervoso (hípico) de um comboio arrestando a chegada.
A ossatura de uma ex-fábrica.
Uma colecção de esferográficas finas: vermelho-verde-azul-preto, benfica-sporting-porto-académica.
A fundamental insolvência: e a irrisão e a lápide e o espaldar e a palavra.
O branco quase azul do cabelo daquela mulher velha.
O pergaminho do rosto dela: e o coração dela de ontem como um pão, como um palimpsesto interpugilar.
A minha respiração canhestra: já só o pulmão esquerdo, o do lado do coração.
O serviço nacional de emergência sem consequência regional.
Nenhuma dúvida ávida mais: pelo contrário, certezas mínimas, certeiras – e bebidas frias, canhestras.
O Sol na pedra do largo, onde outrora, no futuro breve, a chuva.
O teu amor num teatro perto de mim.
O perdão nenhum, o argentino fervor do buscador de ouro.
O vietname particular de uma ida à mata.
A uretra muito plasticina cuspinhando ureia (o braço esquerdo segurando o muro da quinta privada, um que outro passando nas costas do solitário mijão).
Um cigarro fumado como um pensamento – como uma recorrência filtrada.
Ontem é pão.
Tomai-o e comei-o todos.
E esta é a língua portuguesa, enumeradora-mor do muito não poder.
3. NÃO HÁ PRESSA, NÃO À PRESSA
Café Avenida, manhã de 9 de Julho de 2008
Toda a autobiografia é precoce – para não dizer falsa, já que lhe sobra em auto o que lhe falta (ainda) em morte.
A biografia é sempre mais definitiva quando iluminada (e fixada e legislada) pelo passamento físico.
Ocorre-me esta verborreia em um fim de manhã muito lúcido e muito lúcida: o fim como a manhã.
“Pagar e morrer, já o dizia o meu avô, quanto mais tarde, melhor” – diz-me o senhor Luís, empregado de mesa & balcão do Café Avenida.
Sorrio-lhe em concordância.
Sinceramente, isto da morte e das autobiografias é fruta de todo(s) o(s) ano(s).
Nem tem (julgo, suponho, congemino, atiro) grande coisa que se lhe diga.
A autobiografia de Agatha Christie não esclarece os dias que passou desaparecida, na sequência dos cornos conjugais que lhe apôs o primeiro e penúltimo marido, Archibald.
Georges Simenon vinga-se, à força toda, nas Mémoires Intimes, de D., segunda e penúltima esposa dele, na sequência politraumática do suicídio da filha, M.-J.
Phyllis Bentley (a inglesa senhorinha que postei muito na Terminação do Anjo) escreveu-se em O Dreams, O Destinations com defeito de dezasseis anos: autobiografia conclusa em 1961, óbito real em 1977.
Mas sinceramente: vai claro o fim da manhã, poalha de água asperge-se a si mesma na fonte da rotunda, comprei este caderno nos chineses, deram-me esta caneta o Paulo & a Paula Rosa no Louriçal, onde D. João V, há mais de quinze dias e há mais de vinte anos, mandou se erigisse um convento para as Clarissas do Desagravo do Coração de Maria, senhoras que se vestem de garrafa de champanhe a preto-e-branco.
É o país do Sol, da manhã que foi – e da tarde que será, a tarde propedêutica da noite.
Sobre o cesto da roupa para lavar, na casa-de-banho, o segundo volume do Trabalho Poético de mestre Carlos de Oliveira sustenta o leitor sentado em louça.
O quotidiano esmifra os corpos de toda a atenção.
Eu exerço a atenção.
Anthony Burgess, em tradução francesa (Rome sous la Pluie) de Beard’s Roman Women.
O número 1 da Criatura (Fevereiro de 2008, Lisboa).
Prosa de Rilke, também há e também é: Histórias do Bom Deus e Outros Textos (nº 178 da Colecção Dois Mundos da Livros do Brasil).
Nada, portanto, me falta.
Nem a vida nem a morte.
Na estante, em baixo, ao rés do chão povoado de gatas, fotografias de 1984: Grupo Cultural Pedrulhense em acção, noite de fados, ninguém tinha morrido, eu tinha feito os primeiros, que não afinal penúltimos, vinte anos.
Digo isto assim porque posso.
E porque devo.
No televisor do café, os filhos-da-puta do costume.
A “dignidade” deles.
A dignidade filha-da-puta dos dignos filhos-da-puta.
As gravatas deles.
A moralidade dos gajos.
A farturinha digestiva dos gajos.
A mordomia dos cabrõezinhos.
O altar dos santinhos.
A aura politiqueira.
A evidentíssima corrupção.
A autogovernança, bera e vera como falsa é toda a autobiografia.
A caganeira portuguesa (única que de facto me interessa, pois que estimo bem se fodam as Filipinas, o Sudão, a Eslovénia e Washington D.C.) deles.
Escoro a minha vida com livros – já alhures o disse, aqui o repito.
É dia nove, é mês de Julho, é irrelevante o ano.
E a vida é para ser combatida até à morte: sem pressa, na praça.
Na praça pública, pública desde que lida, escrita e publicada.
Devagarinho, amor.
4. ASSUMPÇÃO DO AR VIVO, ATÉ PROVA EM CONTRÁRIO
Café Mundial, tarde de 9 de Julho de 2008
A joy flows my veins through,
o que não é de somenos importância.
O frio mármore data a reminiscência.
A palavra institui-se, também through.
De Levante a Poente, misericórdias.
De Sul a Norte, a morte e de vime cestos.
A realidade é tanta, que até zune.
Sou muito dado a palimpsestos.
Finalmente é agora, finalmente.
A importância maior é ter (sido) amado.
Num lumbre de corrida, um breve fado,
gasóleo a tantos, que gasta a gente.
Isto que se levanta no coração
como um animal tendo dormido.
Um fólio de História, um garrafão
e um ser-serei no ter-já-sido.
Saio cedo de casa, corpo lavado.
Derivo à esquina, mui pobre e sério.
D’ esconsa janela já zune um fado
d’ antigo transístor, Família Silvério.
Corto à padaria, Largo Major,
ambulo calças de vinco mole.
Se já na vida eu fui melhor,
pior sou não já eu, sou Daniel
como meu Pai, daí o baptis-
mo tido por conta-pia-bentinha.
Mas quand’ el’era, er’ eu feliz,
menino e tudo entr’ a gentinha.
Isto é tão fácil, que nem merece
de estrofe curta explicação.
É ver o País votar pêésse
e depois botar remorso, o cabrão.
Antigamente, a fadistagem
(copos-de-três e navalhada)
dava do País a fraca imagem
d’ infecta lavagem e mais nada.
Agora, não. Agora é tudo bom.
As flausinas já cantam todas.
Levam a saudade ao cabeleireiro
fígaro-bodas e vígaras fodas.
Agora, não. Agora é tudo bom.
Ele há até já telemóveis.
Plugga-se as crianças ao som,
credita-se à’quisição d’ imóveis.
Na campa do Salazar,
’’nda não fui (irei) cagar.
Os filhos-da-puta assassinos
nascem já velhos, nunca meninos.
(Trocarei o bordado móvel da gaivota
pela dinâmica profana da tua boca.
Tenho toda uma infância no prego.
Serei o combatente invencível ante ti.)
(Um flúor de rosas amarguradas
castigará nenhuma outra penitência
que a da calma, mesmo q’a paciência
de vindas idas pessoas voltadas.)
5. CATORZE VERSOS P’RA DOIS GAJOS
- por isso se calhar é um soneto ou o caraças –
Café Avenida, fim da tarde de 9 de Julho de 2008
Da humanidade ressuma o chão seus dela vapores,
cheira a passagem a framboesas e a morais.
Na cidade é hirta a mort’ idade, amores,
amores, p’s’tá claro, amorosamente imortais.
Não creio. Falo com a caneta. Sei, porém, d’ amigos,
outros testemunhos e mais outras circunvalações.
Não chega a ser um homem ter colhões,
mas ter amigos, homem, ter amigos.
Nunca mais quero ser eu quanto mais não fui.
Tenho um amigo Fernando e um amigo que é Rui.
De resto, faço jazz calado, olhando as fontes.
Se de repente me apontassem horizontes
e (pior) m’ assim dissessem – “Nunca foste aonde fui”,
mais bem redarguiria – “Ó Fernando, ai, ó Rui”.
6. CALIGRAFIA
Ibidem
Lírio lírio palavra minha do campo
botânica bíblia do senhor do meu coração
tece uma aranha de gaze na ponta dos dedos
uma vez na vida uma vida na minha vez.
Sabes do meu gosto pelo cheiro do mar
essa descomunal bufa de espuma na cara
da criança. Poderia lírio lírio dar de rosto
aos mal casados às más parturientes e ao azar.
Tenho nas costas toda uma tradição literária
como uma gaja que me enganou e era homem.
Mas respeito as minhas contas e os donos dos cafés.
Ainda hoje eu vi e ’ind’ era ontem lírio.
Os pés são (ainda) mais pobres do que o resto do corpo.
Modulizaram subvidas, craterurbanizações.
É triste olhar em torno a arquitectura.
Os bares mais pequenos pagam a melhor música.
Século XXI – tanta porra p’ra isto e eu sem passaporte.
Tenho umas moedas de ferro, uma educação.
Mantenho lápides vivas ao alcance da mão.
Dá-me azar crer muito na sorte.
Um telefonema pode ascender a poema.
Se não pedido, mais ainda agradecido.
Olha a minha língua na minha boca:
se de noite-dia, olha-me à Lua a caligrafia.
******
Depois é outra vez Junho, outra vez 1978.
A coca-cola entra na vida à força toda.
O meu Pai colecciona calendários como
transfusões de sangue.
A minha Mãe deita contas à mercearia e aos
filhos e à loja aberta que é viver sem horário
de encerramento, até que.
Até que tudo se torna agora, este papel,
esta muita leitura de Rilke, a solidão de
Duíno, os loucos anos-20 para quem era
fotografável na afinal pobre aristocracia
da Agatha, pimba, Christie.
Outra vez, quê? Julho, 2008. Este
ano não me praiarei com minha
Mãe, azulíneolongitunais as barracas
pagas por ofício de meu Pai.
As crianças e isso: as da amorosa
fornicação de meus irmãos, alheios
na minha bibliófila noite de mais
novo.
Espera. Isto é uma prosa. Não tens
de desencadear um coração à guisa
de granada. Nem tudo nem nada. Agora.
7. UMA ESPÉCIE DE E. O.
Café Avenida, fim da tarde de 11 de Julho de 2008
É pelo fim da tarde.
Sofro a extrema doçura do crepúsculo.
Sabe-me a saliva doce, a água da fonte.
Ainda me extasio, ente, ante o poente.
Sou muito dado a tais mariquices: a tenda solar, a gravidade pensativa das árvores, as pessoas compactadas na casa do olhar, os ladinos cãezitos que levitam quase na pedra amolecida pelo calor, uma rapariga morena como uma rumba erótica, a manipulação mental das jóias dos órgãos no estojo do corpo, a lembrada carta de um amigo, cada boca metaforizada na cereja fendida e no morango osculador, as senhoras mãe e filha à janela da Avenida Capitão Homem Ribeiro, à outra janela o macho gato Bijou, o veludo da noite amaciando por dentro o coração enumerador, a pressão viva do sangue catedralizando as abcissas das costelas, a noite na cidade como dupla cidade na noite, a música interior feita pura bonomia, e a esperança no novo dia desde menino, isto no meu coração quando anoitece, o xadrez de tanta palavra no tabuleiro da nossa cara, o amor vivo dos mortos de cada um como lousas de mármore num relvado peripatético, o teatro dos gestos, o rancor de estimação aos filhos-da-puta, a jaqueta de ganga desta rapariga que eleva o cálice de café à-cereja-ao-morango-bífido da boca, a despesa paga em moedas pessoais, o trânsito das pernas na aquasfera dos sonhos, a voz de Manuel Freire sabendo que o sonho é uma constante da vida, o gandarês Carlos de Oliveira recolhendo da chuva a abelha da solidão, o senhor Luís Filipe Costa tirando a borboleta da gaiola, a dignidade insofismável da tristeza – e o início da noite, quando tudo há e nada é, então que, pelo regresso a casa, ante os olhos azuis da minha companheira, me dou todo a uma espécie de euforia oceânica.
- uma profilaxia ambulatória mais –
Café Twins, tarde de 7 de Julho de 2008
Euforia oceânica, já muita sofri em terra firme longe do mar.
A visão de algum arvoredo, o vento lhe dando, é quanto me basta à espécie.
Também pratico o dia-a-dia, mas cada vez menos.
Uma volta solar pela cidade – e de repente, tal clarão, um arvoredo eólico marinha-me o instante, que à passagem se recusa e fica, ante o vento aeróbico do antefim da tarde.
Na boca, o pó e o cuspo argamassam já o texto-em-breve.
As calças imitam as pernas, cuja sombra estende panos rápidos na pedra do chão.
Estou vivo.
De manhã, ouvi a música de Aaron Copland, depois a de Hanns Eisler.
Na saleta, o tempo era alimentado a móveis.
Não enverguei os óculos, pelo que uma ameaça de dor de cabeça correu comigo dali antes de poder ouvir Schoenberg jogado ao piano por Gould e ao violino por Menuhin.
Fiz-me à rua, o Sol refrescava as casas religiosas, condenava à humidade as tabernas (onde o coração se torna esconso) e as retrosarias (onde as ferramentas de coser miniaturizam as mães recordadas), libelulizava os peões insignes deste tempo sem glória.
Fui a um bazar chinês, comprei este caderno, entrei no café e dei-me uma hora e meia para ser feliz.
À esquerda de quem entra, a máquina do tabaco espera pelos respiradores de resina.
Ainda é cedo – e é já tão tarde.
Dois homens sem angústia conversam entre copos de cerveja sobre licenciamentos camarários de obras pela porta-do-cavalo: não são burros.
Uma mulher, grossa e alta como um pneumático de tractor, ingere chá com banda sonora labial.
É de sardas moles no decote bambo, pés de pele de quartzo em sandálias de menina anacrónica, nádegas aluídas que gelatinam quando tosse, jibóia ventral brotando da blusa insuficiente.
Ao balcão, um bigode grisalho tasquinha tremoços.
Ao lado, muito impaciente (um feixe de nervos farpados), a esposa do bigode faz-me (d)escrever: perna dietética, emagrecida do mau sexo e pior perspectiva.
Longe daqui, suponho o mar enrolando suas tranquilas ânsias.
Estamos no Verão, é o tempo das conas-de-plástico e dos tarzans-de-pêlo-nas-costas.
Pelos areais, longe daqui, vereadores e gansos a recibo-verde patinham já a incompreensão cosmogónica que resulta do espectáculo oceânico – e da sua desumana euforia, como a que sofro ante qualquer arvoredo.
Cheguei a uma idade dotada da amarga bonomia de ver ao longe o que é próximo: e dentro, o que só longínquo tem sentido.
Bastar-me-ia tão pouco, que nada é tudo que tenho.
Ao Sol do fim de tarde, é certo que me salvo pela incursão, por assim dizer almóada, nos cristãos descampados da cidade.
Divãs de loja suportam almofadas cor-de-limão.
A senhora do balcão tem os dentes todos.
Uma criança dá-se a galinhar íntimos labirintos entre mesas.
Um amigo meu trouxe ontem damascos da aldeia dos pais.
Ali, uma árvore fulgura seu mesmo cartaz.
A morte conspira nos interstícios das falas – ou a fadiga por ela, não sei.
Sei que devo trabalhar, entrar nisto sempre e para sempre.
Ser feliz, mesmo sem cronómetro à vista, não é tarefa pontual, mas ofício cosmológico de rés-do-chão: aqui onde pensamos e vivemos, aqui onde pensamos que vivemos.
Alguns objectos, agora:
um cinzeiro de faiança branca patrocinado pela firma de hotelaria FL;
uma caixa de enrolar tabaco em um par de mãos brancas como a neves dos documentários-TV de sábado de manhã;
de um olhar indígena, a sombra materializada em coruscação de montra;
súbita na língua, a palavração dos substantivos cedro e cipreste (mais, deles e dela, a patogenia morbimelancólica);
caules de ferro dando corolas de tampo de mesas;
uma criança exercendo a inocência da morte e a culpa do nascimento;
a vulgata astrológica do calendário de parede;
o fedor a humanidade e a democracia sem livros,
rápidas na retina, andorinhas fogodartificiando fulminantes violínicos;
a hemorrosa da sombra pelo chão, agravada pelas calças dos que escrevem;
e um azulejo com uma quadra portuguesa receitando a felicidade por hora e meia.
2. ENTRE REFEIÇÕES
- algumas enumerações ortoépicas –
Café Mundial, acabada a manhã de 8 de Julho de 2008
O pão é de ontem.
Sobre a folha de mármore, o pão espera a consumpção.
O vinho demora, arquivado em vidro vertical.
A nova tarde fulgura já nos vidros faciais da casa.
O muito não poder abre todas as possibilidades.
Sou provavelmente portador de um coração inconsútil.
Tu és seguramente uma pessoa a norte de ti mesma.
A tristeza é uma gota de água, uma-duas-mil-a-mesma, uma bacia de plástico mental.
O coração dá-se, não doce, à condição de cisterna.
Revolução Industrial, não Pessoal.
Uma terça-feira, os noticiários ardendo de febre, os comboios suburbanos levand&trazendo as formigas.
A realidade como um filme deixado a gravar em casa alheia.
Os nomes muito vivos de uns poucos mortos.
Os mortos vivendo muito.
O filme com eles.
A irrisão, a metafísica, o pão já velho.
A não benigna bonificação das taxas de crédito, sua falaciosa etimologia, seu ai-se-de-ti-de-pêssego.
A febre controlada a golpes, embaciados eles também, de bebida fria, à calma.
O instante nervoso (hípico) de um comboio arrestando a chegada.
A ossatura de uma ex-fábrica.
Uma colecção de esferográficas finas: vermelho-verde-azul-preto, benfica-sporting-porto-académica.
A fundamental insolvência: e a irrisão e a lápide e o espaldar e a palavra.
O branco quase azul do cabelo daquela mulher velha.
O pergaminho do rosto dela: e o coração dela de ontem como um pão, como um palimpsesto interpugilar.
A minha respiração canhestra: já só o pulmão esquerdo, o do lado do coração.
O serviço nacional de emergência sem consequência regional.
Nenhuma dúvida ávida mais: pelo contrário, certezas mínimas, certeiras – e bebidas frias, canhestras.
O Sol na pedra do largo, onde outrora, no futuro breve, a chuva.
O teu amor num teatro perto de mim.
O perdão nenhum, o argentino fervor do buscador de ouro.
O vietname particular de uma ida à mata.
A uretra muito plasticina cuspinhando ureia (o braço esquerdo segurando o muro da quinta privada, um que outro passando nas costas do solitário mijão).
Um cigarro fumado como um pensamento – como uma recorrência filtrada.
Ontem é pão.
Tomai-o e comei-o todos.
E esta é a língua portuguesa, enumeradora-mor do muito não poder.
3. NÃO HÁ PRESSA, NÃO À PRESSA
Café Avenida, manhã de 9 de Julho de 2008
Toda a autobiografia é precoce – para não dizer falsa, já que lhe sobra em auto o que lhe falta (ainda) em morte.
A biografia é sempre mais definitiva quando iluminada (e fixada e legislada) pelo passamento físico.
Ocorre-me esta verborreia em um fim de manhã muito lúcido e muito lúcida: o fim como a manhã.
“Pagar e morrer, já o dizia o meu avô, quanto mais tarde, melhor” – diz-me o senhor Luís, empregado de mesa & balcão do Café Avenida.
Sorrio-lhe em concordância.
Sinceramente, isto da morte e das autobiografias é fruta de todo(s) o(s) ano(s).
Nem tem (julgo, suponho, congemino, atiro) grande coisa que se lhe diga.
A autobiografia de Agatha Christie não esclarece os dias que passou desaparecida, na sequência dos cornos conjugais que lhe apôs o primeiro e penúltimo marido, Archibald.
Georges Simenon vinga-se, à força toda, nas Mémoires Intimes, de D., segunda e penúltima esposa dele, na sequência politraumática do suicídio da filha, M.-J.
Phyllis Bentley (a inglesa senhorinha que postei muito na Terminação do Anjo) escreveu-se em O Dreams, O Destinations com defeito de dezasseis anos: autobiografia conclusa em 1961, óbito real em 1977.
Mas sinceramente: vai claro o fim da manhã, poalha de água asperge-se a si mesma na fonte da rotunda, comprei este caderno nos chineses, deram-me esta caneta o Paulo & a Paula Rosa no Louriçal, onde D. João V, há mais de quinze dias e há mais de vinte anos, mandou se erigisse um convento para as Clarissas do Desagravo do Coração de Maria, senhoras que se vestem de garrafa de champanhe a preto-e-branco.
É o país do Sol, da manhã que foi – e da tarde que será, a tarde propedêutica da noite.
Sobre o cesto da roupa para lavar, na casa-de-banho, o segundo volume do Trabalho Poético de mestre Carlos de Oliveira sustenta o leitor sentado em louça.
O quotidiano esmifra os corpos de toda a atenção.
Eu exerço a atenção.
Anthony Burgess, em tradução francesa (Rome sous la Pluie) de Beard’s Roman Women.
O número 1 da Criatura (Fevereiro de 2008, Lisboa).
Prosa de Rilke, também há e também é: Histórias do Bom Deus e Outros Textos (nº 178 da Colecção Dois Mundos da Livros do Brasil).
Nada, portanto, me falta.
Nem a vida nem a morte.
Na estante, em baixo, ao rés do chão povoado de gatas, fotografias de 1984: Grupo Cultural Pedrulhense em acção, noite de fados, ninguém tinha morrido, eu tinha feito os primeiros, que não afinal penúltimos, vinte anos.
Digo isto assim porque posso.
E porque devo.
No televisor do café, os filhos-da-puta do costume.
A “dignidade” deles.
A dignidade filha-da-puta dos dignos filhos-da-puta.
As gravatas deles.
A moralidade dos gajos.
A farturinha digestiva dos gajos.
A mordomia dos cabrõezinhos.
O altar dos santinhos.
A aura politiqueira.
A evidentíssima corrupção.
A autogovernança, bera e vera como falsa é toda a autobiografia.
A caganeira portuguesa (única que de facto me interessa, pois que estimo bem se fodam as Filipinas, o Sudão, a Eslovénia e Washington D.C.) deles.
Escoro a minha vida com livros – já alhures o disse, aqui o repito.
É dia nove, é mês de Julho, é irrelevante o ano.
E a vida é para ser combatida até à morte: sem pressa, na praça.
Na praça pública, pública desde que lida, escrita e publicada.
Devagarinho, amor.
4. ASSUMPÇÃO DO AR VIVO, ATÉ PROVA EM CONTRÁRIO
Café Mundial, tarde de 9 de Julho de 2008
A joy flows my veins through,
o que não é de somenos importância.
O frio mármore data a reminiscência.
A palavra institui-se, também through.
De Levante a Poente, misericórdias.
De Sul a Norte, a morte e de vime cestos.
A realidade é tanta, que até zune.
Sou muito dado a palimpsestos.
Finalmente é agora, finalmente.
A importância maior é ter (sido) amado.
Num lumbre de corrida, um breve fado,
gasóleo a tantos, que gasta a gente.
Isto que se levanta no coração
como um animal tendo dormido.
Um fólio de História, um garrafão
e um ser-serei no ter-já-sido.
Saio cedo de casa, corpo lavado.
Derivo à esquina, mui pobre e sério.
D’ esconsa janela já zune um fado
d’ antigo transístor, Família Silvério.
Corto à padaria, Largo Major,
ambulo calças de vinco mole.
Se já na vida eu fui melhor,
pior sou não já eu, sou Daniel
como meu Pai, daí o baptis-
mo tido por conta-pia-bentinha.
Mas quand’ el’era, er’ eu feliz,
menino e tudo entr’ a gentinha.
Isto é tão fácil, que nem merece
de estrofe curta explicação.
É ver o País votar pêésse
e depois botar remorso, o cabrão.
Antigamente, a fadistagem
(copos-de-três e navalhada)
dava do País a fraca imagem
d’ infecta lavagem e mais nada.
Agora, não. Agora é tudo bom.
As flausinas já cantam todas.
Levam a saudade ao cabeleireiro
fígaro-bodas e vígaras fodas.
Agora, não. Agora é tudo bom.
Ele há até já telemóveis.
Plugga-se as crianças ao som,
credita-se à’quisição d’ imóveis.
Na campa do Salazar,
’’nda não fui (irei) cagar.
Os filhos-da-puta assassinos
nascem já velhos, nunca meninos.
(Trocarei o bordado móvel da gaivota
pela dinâmica profana da tua boca.
Tenho toda uma infância no prego.
Serei o combatente invencível ante ti.)
(Um flúor de rosas amarguradas
castigará nenhuma outra penitência
que a da calma, mesmo q’a paciência
de vindas idas pessoas voltadas.)
5. CATORZE VERSOS P’RA DOIS GAJOS
- por isso se calhar é um soneto ou o caraças –
Café Avenida, fim da tarde de 9 de Julho de 2008
Da humanidade ressuma o chão seus dela vapores,
cheira a passagem a framboesas e a morais.
Na cidade é hirta a mort’ idade, amores,
amores, p’s’tá claro, amorosamente imortais.
Não creio. Falo com a caneta. Sei, porém, d’ amigos,
outros testemunhos e mais outras circunvalações.
Não chega a ser um homem ter colhões,
mas ter amigos, homem, ter amigos.
Nunca mais quero ser eu quanto mais não fui.
Tenho um amigo Fernando e um amigo que é Rui.
De resto, faço jazz calado, olhando as fontes.
Se de repente me apontassem horizontes
e (pior) m’ assim dissessem – “Nunca foste aonde fui”,
mais bem redarguiria – “Ó Fernando, ai, ó Rui”.
6. CALIGRAFIA
Ibidem
Lírio lírio palavra minha do campo
botânica bíblia do senhor do meu coração
tece uma aranha de gaze na ponta dos dedos
uma vez na vida uma vida na minha vez.
Sabes do meu gosto pelo cheiro do mar
essa descomunal bufa de espuma na cara
da criança. Poderia lírio lírio dar de rosto
aos mal casados às más parturientes e ao azar.
Tenho nas costas toda uma tradição literária
como uma gaja que me enganou e era homem.
Mas respeito as minhas contas e os donos dos cafés.
Ainda hoje eu vi e ’ind’ era ontem lírio.
Os pés são (ainda) mais pobres do que o resto do corpo.
Modulizaram subvidas, craterurbanizações.
É triste olhar em torno a arquitectura.
Os bares mais pequenos pagam a melhor música.
Século XXI – tanta porra p’ra isto e eu sem passaporte.
Tenho umas moedas de ferro, uma educação.
Mantenho lápides vivas ao alcance da mão.
Dá-me azar crer muito na sorte.
Um telefonema pode ascender a poema.
Se não pedido, mais ainda agradecido.
Olha a minha língua na minha boca:
se de noite-dia, olha-me à Lua a caligrafia.
******
Depois é outra vez Junho, outra vez 1978.
A coca-cola entra na vida à força toda.
O meu Pai colecciona calendários como
transfusões de sangue.
A minha Mãe deita contas à mercearia e aos
filhos e à loja aberta que é viver sem horário
de encerramento, até que.
Até que tudo se torna agora, este papel,
esta muita leitura de Rilke, a solidão de
Duíno, os loucos anos-20 para quem era
fotografável na afinal pobre aristocracia
da Agatha, pimba, Christie.
Outra vez, quê? Julho, 2008. Este
ano não me praiarei com minha
Mãe, azulíneolongitunais as barracas
pagas por ofício de meu Pai.
As crianças e isso: as da amorosa
fornicação de meus irmãos, alheios
na minha bibliófila noite de mais
novo.
Espera. Isto é uma prosa. Não tens
de desencadear um coração à guisa
de granada. Nem tudo nem nada. Agora.
7. UMA ESPÉCIE DE E. O.
Café Avenida, fim da tarde de 11 de Julho de 2008
É pelo fim da tarde.
Sofro a extrema doçura do crepúsculo.
Sabe-me a saliva doce, a água da fonte.
Ainda me extasio, ente, ante o poente.
Sou muito dado a tais mariquices: a tenda solar, a gravidade pensativa das árvores, as pessoas compactadas na casa do olhar, os ladinos cãezitos que levitam quase na pedra amolecida pelo calor, uma rapariga morena como uma rumba erótica, a manipulação mental das jóias dos órgãos no estojo do corpo, a lembrada carta de um amigo, cada boca metaforizada na cereja fendida e no morango osculador, as senhoras mãe e filha à janela da Avenida Capitão Homem Ribeiro, à outra janela o macho gato Bijou, o veludo da noite amaciando por dentro o coração enumerador, a pressão viva do sangue catedralizando as abcissas das costelas, a noite na cidade como dupla cidade na noite, a música interior feita pura bonomia, e a esperança no novo dia desde menino, isto no meu coração quando anoitece, o xadrez de tanta palavra no tabuleiro da nossa cara, o amor vivo dos mortos de cada um como lousas de mármore num relvado peripatético, o teatro dos gestos, o rancor de estimação aos filhos-da-puta, a jaqueta de ganga desta rapariga que eleva o cálice de café à-cereja-ao-morango-bífido da boca, a despesa paga em moedas pessoais, o trânsito das pernas na aquasfera dos sonhos, a voz de Manuel Freire sabendo que o sonho é uma constante da vida, o gandarês Carlos de Oliveira recolhendo da chuva a abelha da solidão, o senhor Luís Filipe Costa tirando a borboleta da gaiola, a dignidade insofismável da tristeza – e o início da noite, quando tudo há e nada é, então que, pelo regresso a casa, ante os olhos azuis da minha companheira, me dou todo a uma espécie de euforia oceânica.
ANTES QUE S. N.
Café-Restaurante-Cervejaria Lafões, fim da manhã de 10 de Julho de 2008
Passa quase nu o pé branco da rapariga chinelando.É uma rua de comércio aberto a quem passa vivo.
Escrevo sobre uma mesa vermelha como um escarlate de unhas.
Também estou vivo – e recebo do idioma as quadras prontas.
Gosto das camisolas castanhas cheias ‘inda de infância, gosto das raparigas que, passando, me ficam na sintáctica retina.
(No adjectivo, o c antes do t justifica-se pelo x do substantivo de que decorre.)
Aqueles dois ali vendem tabletezitas de haxixe, escrevo-os daqui.
Nasci já antigo: sétimo filho de um amor de sete filhos.
Como o vosso, o meu Pai. A minha Mãe, como a vossa:
flores que à brisa espargem o pólen mais amante,
o mais amado pólen – que é preciso honrar, à luz.
Uma taça de vinho branco, um fim de manhã.
A cabecita das pombas articulando passadas cronómetras.
A rosa na boca: etimologia e música: e a poesia.
E uma rapariga de sapatos azuis marejando a rua.
Traçada a genética navalha, uma boca fina
supra um pescoço de cisne magro: outra
rapariga alardeando columbófila passagem,
na rua que branquejo a taça comercial.
Olha: uma mulher louca, criança velha
dependurada do cotovelo em riste da pobre mãe
dela (como a vossa, como a minha), o cuspo babujado na boca,
o ar mártir da pobre mãe, cujo amor redundou em loucura
e segurança social. Olha: uma blusa cor-de-rosa
amparando um par de mamas aluídas
como papa-nestlé na hora undécima da manhã.
Ouve esta frase que ouço a uma fumadora de
haxixe, cliente daqueles dois:
“Eu estou a desanimar, demoraram com uma
injecção prà infecção oito anos que neste país quando eu
estava lá fora.” Ouve, olha.
Dá-me um cigarro, leitor, dá-me uma noite
– e seremos ambos felizes: contra a corrente,
contra o vento, contra a praia que se insurge
por antagonismo nos nossos ambos corações.
Lê-me as quadras depressa mas ama-me devagar, eu tenho
soluçado impensáveis agonias, eu digo boa-tarde às pedras,
o coração fal(h)a-me: e Jerus’ além (D.C., como Washington e
depois de Cristo) não é nada a capital do mundo.
Agora vou almoçar com a minha senhora,
fecho agora o caderno e a manhã.
Pela tarde voltarei,
antes que seja noite.
13/07/2008
Ela Agora
© Joel Meyerowitz, The Blue Hour, Bay Sky, 1984
Viseu, Café Avenida, tarde de 11 de Julho de 2008
Ela ajuda-me a enlouquecer com suavidade.
Ela atira-me pontes em cada gesto.
Ela é um animal completamente telúrico.
Ela trata da casa, das coisas que a vida junta.
Ela ondula como um cortinado de gaze.
Ela traz as batatas, as cartas, a promessa.
Ela cuida dos vasos, das roupas, das ligações.
Ela sonha por mim quando a durmo.
Ela é a casa, o bairro, o país.
Ela não permite que me perca mais do que o necessário.
Ela chama, respondo-lhe por escrito, ela azula-me.
Ela escreve-me por voz, eu chamo-a, ela azula-me.
Ela açula-me, protege-me dos outros homens, ela humaniza.
Ela quando me toca eu canto.
Ela acompanha as notícias e explica-mas.
Eu sou o que sobra dela, sou o que a visita dentro.
Eu regresso-lhe com a suavidade feita vidros.
Ela colhe os vidros, faz-me uma festa na cabeça.
Ela diz a bonança, ela traz o mar.
Ela entra no café e as pessoas calam-se.
Ela fala na minha mão direita.
Ela é antiga e colectiva como um rancho folclórico.
Ela acentua a filarmonia das estações.
Ela quando chove eu danço.
Eu agora já sou alguém outra vez.
Eu tive de esperar muitos anos.
Ela agora vai chamar-me, eu vou.
Ela atira-me pontes em cada gesto.
Ela é um animal completamente telúrico.
Ela trata da casa, das coisas que a vida junta.
Ela ondula como um cortinado de gaze.
Ela traz as batatas, as cartas, a promessa.
Ela cuida dos vasos, das roupas, das ligações.
Ela sonha por mim quando a durmo.
Ela é a casa, o bairro, o país.
Ela não permite que me perca mais do que o necessário.
Ela chama, respondo-lhe por escrito, ela azula-me.
Ela escreve-me por voz, eu chamo-a, ela azula-me.
Ela açula-me, protege-me dos outros homens, ela humaniza.
Ela quando me toca eu canto.
Ela acompanha as notícias e explica-mas.
Eu sou o que sobra dela, sou o que a visita dentro.
Eu regresso-lhe com a suavidade feita vidros.
Ela colhe os vidros, faz-me uma festa na cabeça.
Ela diz a bonança, ela traz o mar.
Ela entra no café e as pessoas calam-se.
Ela fala na minha mão direita.
Ela é antiga e colectiva como um rancho folclórico.
Ela acentua a filarmonia das estações.
Ela quando chove eu danço.
Eu agora já sou alguém outra vez.
Eu tive de esperar muitos anos.
Ela agora vai chamar-me, eu vou.
12/07/2008
A Senhora da Tabacaria - para ouvir
Em cima, clicar na janela.
Para a Xelinha, naturalmente.
Texto: Caramulo, tarde de 24 de Outubro de 2006
Produção do Anoitecer do Tom Dela
para a Emissora das Beiras
- 3ª hora do Anoitecer (entre as 20 e as 24 horas, de 2ª a 6ª feiras).
Sonorização de José Eduardo Saraiva.
Para a Xelinha, naturalmente.
Texto: Caramulo, tarde de 24 de Outubro de 2006
Produção do Anoitecer do Tom Dela
para a Emissora das Beiras
- 3ª hora do Anoitecer (entre as 20 e as 24 horas, de 2ª a 6ª feiras).
Sonorização de José Eduardo Saraiva.
11/07/2008
Quatro Jornais, Cinco Crónicas (O Ribatejo, Região de Leiria, Jornal da Bairrada e Jornal do Centro)
GRATIDÃO BARATEIRA
É preciso não confundir “silicone” com “silly season”.
O primeiro é aquilo das micropeças de computador (não sei quais) e dos implantes mamários em actrizes de certos filmes (sabeis muito bem quais, fazei favor de me não puxar pela língua).
A “silly season” pode ser livremente traduzida por “estação das baratas tontas” e, por norma, era associada ao Verão. Era. Agora é fruta de todo o ano, como o tomate de estufa espanhol e a tesúria do consumidor. (Redacção intermédia: O Verão era uma das quatro estações do ano. Eu gostava muito do Verão. No Verão, eram as férias grandes. Já está.) Agora, o Verão só se nota pelas páginas e páginas de jornais de inquéritos “à la minuta” tipo onde-vai-passar-as-férias-que-livro-vai-levar-a-sua-avó-está-melhor-do-alzheimer-ou-ainda-reconhece-o-Júlio-Isidro? Sim – o Verão é isto e é os programas matinais de TV invadindo as praças municipais à mama do tacho orçamental do Poder Local (essa “conquista” do 25 de Abril que redundou em rotundas e em taxas de disponibilidade do contador da água).
Quem já viu o resultado do implante de silicone, não pode deixar de trepidar por dentro com as maravilhas da técnica. A tumefacção respiratória das actrizes é praticamente inabalável. Mas abala, ai não que não abala.
A barata tonta é diferente. Digamo-lo “com toda a clareza”, à maneira de um Paulo Portas e de um Francisco Louçã: a barata tonta é vilegiatura que veio para ficar, como o toyota de antigamente e o sorriso-ricto-esgar da Catarina Furtado dos nossos dias.
E está tudo muito bem assim. A realidade é o que nenhum de nós pode que ela não seja. Ainda bem. O horror seria, por exemplo, uma realidade à minha maneira. Ai eu proibiria logo quatro aspectos: o Portas, o Louçã, a Furtado e a TV matinal. Depois, imporia a obrigação do fabrico em silicone de toda a barata tonta que se pusesse… à mama. Mas isto nunca será. Só tenho pena de que a vossa realidade também não venha nunca a ser real. Sempre gostaria de saber quais as vossas interdições, qual a fractura exposta do vosso mais íntimo desejo (ninguém está a falar dos tais filmes), qual o verdadeiro aspecto de você(s) na TV.
No fundo, porém, deveríamos todos estar-lhes gratos: como as coisas estão e andam, as tontas devem ser as últimas coisas de facto baratas.
FLATO À FORÇA TODA
Vi num jornal que, depois da Britney Spears e da Christina Aguilera, chegou a vez da Gwyneth Paltrow ser beijada na boca por Madonna. Como por acaso até tenho um caderninho em que anoto tudo quanto é ósculo, anotei. Só lamento (mas pouco) que a aparente síndrome beijoqueira da execrável flausina não tenha ainda vitimado a Lynda Carter.
Lynda Carter? Sim, Lynda e Carter: a actriz de TV que nos anos 70 protagonizou a série Super-Mulher (ou WonderWoman”, no original). Consta que a Lynda é uma alcoólica reabilitada, condição que eu sei requerer superpoderes (ou “wonderpowers”). Mas, se calhar, estou a ser egoísta: o mais provável é que, na eventualidade de a Madonna lhe estampilhar, à Lynda, um “chocho” nas beiças, a Carter voltasse a meter-se nos copos à força toda. Digo eu. Se ela, Madonna, mo fizesse, eu beberia. Se ela mo não fizesse, também beberia. Digo eu.
Entretanto, cá pelas lusas berças, ’tá tudo bem. O paraíso segue dentro de momentos, como antigamente as transmissões avariadas da televisão única (a mesma que, hoj’ em dia, e por piada, se diz “de serviço público”). Cá por nós, anda no ar o adocicado perfume a mortos da amargura, mas pode ser que não. Contra o vero desemprego, contra a falsa “qualificação”, contra a cosmética oratória, contra a flatulência verborreica e contra a verbosidade do flato, nada. Contra as pessoas, tudo. Está, portanto, tudo bem, aqui no paraíso-dentro-de-momentos.
É Verão, é tempo de “ícones”. Em Leiria, o “ícone” que mais imediatamente me ocorre, desculpai-me, é a Ribeira dos Milagres, mas isto é por causa do meu famigerado mau feitio. No resto do mundo (que começa na Barosa, passa pela Nova Zelândia e acaba, também por piada, em Pombal), o “ícone” é a Madonna, matrona magrela a quem nunca passou pela cabeça (até agora, ao menos) vir a Leiria beijocar um dos 400 mil bácoros que dejectam fezes impunes na dita Ribeira. Deve ser do flato.
Ainda se obrigassem cada porquinho a levar “chip” como os cachorros nacionais nascidos a partir de 1 de Julho último…
Proposta: beijemo-nos todos na boca. Proposta: em simpática encomenda personalizada, enviemo-nos todos à Lynda Carter. No remetente, escrevamos assim: Leiria-Portugal (“ou “wondercity of the wondercountry”).
E quando a encomenda lá chegar(mos), vamos mas é todos beber um copo com a Super-Mulher.
CRÓNICA FUTURA
Há muitos, muitos anos, a vida era simples. Tão simples, que o mundo nem precisava de engenharias cosmogónicas. Na cozinha maternal, o calendário de parede nunca mudava de ano, pois que a infância é (era) uma eternidade não numerária. Éramos todos felizes da felicidade maior que há (ou houve): a que resulta da não-consciência.
O futuro tornou-se agora e o agora é isto: os nossos rostos repetindo, por atavismo, os retratos espalhados por toda a casa como sentinelas do Tempo, como arautos da Passagem, como decretadores da Brevidade.
A vida é a vida. Só não compreendo, dela, isto: se nascer não é pecado, por que razão não nos perdoa a vida termos nascido dela e para ela? E mais: por que motivo não lhe perdoamos nós a ela, à ávida vida, esta pena de a pen(s)armos mais do que, simplesmente, a vivermos? Não sei responder. Só sei perguntar.
Há muitos, muitos anos, nós éramos simples. A nossa respiração, por infantil (por inicial, portanto), prolongava a brisa, que nas árvores entretinha a folhagem de passaritos cantores e de pinceladas de ouro aeróbico. Não era, então, o dinheiro (ou a escassez dele) que nos movia. Nem era o aspecto exterior que se nos assemelhava, por dentro, a nós mesmos. Éramos, mais pequenos embora em corpo, bem mais altos do que agora somos (ou parecemos, por fora). Por assim dizer, nós éramos, então, de verdade nós, não estes que agora, no futuro, nos tornámos.
(Em frente a esta crónica e em frente à mão que a escreve, uma loja de móveis espera clientes que não vêm; um cão abandonado trota solidão passeio acima, passeio abaixo; uma mulher antiga e muito branca cambaleia de mercearias rumo à casa viúva onde exerce sozinha seu particular atavismo fotográfico; mas uma adolescente desempoeirada grita euforias de telemóvel ao namorado algures no éter da modernidade.)
Pouso agora a caneta, a crónica está pronta, está acabada a manhã. Tentarei, na tarde e na noite que se seguem, não ceder ao amargor supranumerário da consciência. Procurarei (encontrarei?) árvores – árvores e o vento nelas dando-lhes de pássaros respiratórios e de ouro cantor. Se o lograr, serei de novo o que fui já: não uma repetição de retrato, mas um rosto novo, um rosto em que aquele cão solitário confie para dono e companheiro de solidão, passeio abaixo, passeio acima.
ABANDONOS
Resigno-me sempre muito mal, cada vez que se me impõe a visão de um abandonado. Um gato, um cão, uma pessoa: cada espécie é propícia ao desperdício. E eu não consigo nunca furtar-me à tristeza perante (de pessoa, cão ou gato) um caso de abandono.
Na aldeia, acontece menos. O universo é mais restrito, na aldeia. Também acontece, eu sei. Mas acontece menos do que na cidade. Esta manhã, tomando com a minha mulher a primeira cafeína do dia, havia um cão sem dono nem perspectiva. A água dos olhos dele arrefecia ao sol de Julho. Apresentava uma orelha roída ou pela moléstia ou por outro cão. Movia-se lentamente. Encontrou uma sombra, deitou-se na pedra. Respirava como um acordeão doente. De pronto, o café amargou-se-me entre a boca e o coração. Paguei, saí dali depois de beijar a face por igual condoída da minha senhora, sentei-me aqui a escrever-vos isto.
Estou agora num café gentil da Avenida Capitão Silva Pereira. A manhã cresce fresca e luminosa. Estou calado a um canto. Ainda penso no cão. Então (agora mesmo, enquanto e quanto escrevo), impõe-se-me a recordação de um homem que muitas vezes vi pelas ruas desta cidade de Viseu. É de olhos azuis e de roupas muito limpas e muito pobres. É a personificação viva da solidão: uma estátua que se mexe, acima, abaixo. Recolhe do chão pontas de cigarro que o mundo dos fumadores abandona à passagem. Tem uma caixa de fósforos de cozinha.
Uma vez, parei ante ele e ofereci-lhe um cigarro não pedido. Aceitou-o sem olhar a minha mão. Olhou-me nos olhos enquanto recolhia o cigarro. Aquele azul aguado e magoado frechou-me irremediavelmente o instante. Balbuciou um “Agradecido” correctíssimo e seguiu caminho, abandonando-se ao seu mesmo abandono. Nunca o esquecerei. Sei-o bem: nunca o esquecerei.
Quando puder, voltarei a viver na aldeia, restrito universo onde o abandono é, ao menos, colectivo. Digamo-lo: onde o abandono, por universal, não se nota nem se sofre tanto. Não se nota nem se sofre tanto a evidência existencial do abandono, na aldeia. É tudo perto, até a vida, até a morte. Na cidade, porém, sucede-me evocar um homem mercê de um cão – e vice-versa.
Aqui há gato.
OURO, VISTE-LO
Tenho duas filhas, mas espero que se tornem, também elas, meninos. E de ouro. Dois meninos de ouro: é o que mais lhes desejo. Também depende delas, não só da minha esperança.
Um cursozito tecnológico desses rápidos para as estatísticas e um cartão-chip de juventude partidária como agora os cachorros nacionais nascidos a partir de 1 de Julho último: eis dois degraus que as minhas duas rosas terão de adquirir antes que se faça tarde na vida delas, como na minha se fez a partir do momento em que, tendo cursado Letras, me estatelei de pára-quedas no país dos Números.
Meninas-meninos, sim. E de ouro. Mesmo que de ouro de espúria casquinha de pechisbeque, ouro-lata de ourivesaria covilhanense, por assim dizer. Ainda no outro dia me dei ao solitário prazer de um trocadilho duplo. Era este: perdemos em 2004 com os Gregos porque o Sócrates deles é a sério; e porque o Sócrates deles sempre tinha o Platão, ao passo que nós, com o nosso, nem latão.
As minhas meninas torcem o nariz a tanta agrura paternal. De facto, tornei-me um “cota” ácido, um rezingão malacueco, um ocioso misantropo, um vedor de águas paradas, um obstinado maledicente, um ex-menino de ouro-nenhum e de prata-viste-la. Pois foi. Pois é. Mas também a realidade se encarrega de dar-me razões: 24 horas por dia, sete dias/semana, 12 meses/ano e, com algum azar, 70 anos/vida.
O Scolari ter-se ido embora é que foi duro golpe assestado nos meus futuros meninos de ouro. Tropeçando em sacos cheios de dinheiro (contribuinte, logo nosso), o insigne pendurador de bandeiras republicanas da monarquia das bananas foi-se embora e despovoou os meninos/meninas, que assim já não hão-de jogar (até por não terem nascido no Brasil) na selecção nacional. Resta-lhes o pechisbeque tecnológico, o 12º por equivalência, os festivais de Verão para cigarras e os centros de desemprego de Inverno para formigas. Pobrezinhos dos meus meninos, pobrezinhas das minhas rosas.
No país dos Números que a nenhuma outra realidade contam se não (a) esta, escrevi estas letras que, pensando bem, não mostrarei às andróginas filhas minhas. Nem que mas pagassem ao preço de um ouro que não é verdade mas tão-só covilhanense, por assim dizer.
Fica dito.
É preciso não confundir “silicone” com “silly season”.
O primeiro é aquilo das micropeças de computador (não sei quais) e dos implantes mamários em actrizes de certos filmes (sabeis muito bem quais, fazei favor de me não puxar pela língua).
A “silly season” pode ser livremente traduzida por “estação das baratas tontas” e, por norma, era associada ao Verão. Era. Agora é fruta de todo o ano, como o tomate de estufa espanhol e a tesúria do consumidor. (Redacção intermédia: O Verão era uma das quatro estações do ano. Eu gostava muito do Verão. No Verão, eram as férias grandes. Já está.) Agora, o Verão só se nota pelas páginas e páginas de jornais de inquéritos “à la minuta” tipo onde-vai-passar-as-férias-que-livro-vai-levar-a-sua-avó-está-melhor-do-alzheimer-ou-ainda-reconhece-o-Júlio-Isidro? Sim – o Verão é isto e é os programas matinais de TV invadindo as praças municipais à mama do tacho orçamental do Poder Local (essa “conquista” do 25 de Abril que redundou em rotundas e em taxas de disponibilidade do contador da água).
Quem já viu o resultado do implante de silicone, não pode deixar de trepidar por dentro com as maravilhas da técnica. A tumefacção respiratória das actrizes é praticamente inabalável. Mas abala, ai não que não abala.
A barata tonta é diferente. Digamo-lo “com toda a clareza”, à maneira de um Paulo Portas e de um Francisco Louçã: a barata tonta é vilegiatura que veio para ficar, como o toyota de antigamente e o sorriso-ricto-esgar da Catarina Furtado dos nossos dias.
E está tudo muito bem assim. A realidade é o que nenhum de nós pode que ela não seja. Ainda bem. O horror seria, por exemplo, uma realidade à minha maneira. Ai eu proibiria logo quatro aspectos: o Portas, o Louçã, a Furtado e a TV matinal. Depois, imporia a obrigação do fabrico em silicone de toda a barata tonta que se pusesse… à mama. Mas isto nunca será. Só tenho pena de que a vossa realidade também não venha nunca a ser real. Sempre gostaria de saber quais as vossas interdições, qual a fractura exposta do vosso mais íntimo desejo (ninguém está a falar dos tais filmes), qual o verdadeiro aspecto de você(s) na TV.
No fundo, porém, deveríamos todos estar-lhes gratos: como as coisas estão e andam, as tontas devem ser as últimas coisas de facto baratas.
FLATO À FORÇA TODA
Vi num jornal que, depois da Britney Spears e da Christina Aguilera, chegou a vez da Gwyneth Paltrow ser beijada na boca por Madonna. Como por acaso até tenho um caderninho em que anoto tudo quanto é ósculo, anotei. Só lamento (mas pouco) que a aparente síndrome beijoqueira da execrável flausina não tenha ainda vitimado a Lynda Carter.
Lynda Carter? Sim, Lynda e Carter: a actriz de TV que nos anos 70 protagonizou a série Super-Mulher (ou WonderWoman”, no original). Consta que a Lynda é uma alcoólica reabilitada, condição que eu sei requerer superpoderes (ou “wonderpowers”). Mas, se calhar, estou a ser egoísta: o mais provável é que, na eventualidade de a Madonna lhe estampilhar, à Lynda, um “chocho” nas beiças, a Carter voltasse a meter-se nos copos à força toda. Digo eu. Se ela, Madonna, mo fizesse, eu beberia. Se ela mo não fizesse, também beberia. Digo eu.
Entretanto, cá pelas lusas berças, ’tá tudo bem. O paraíso segue dentro de momentos, como antigamente as transmissões avariadas da televisão única (a mesma que, hoj’ em dia, e por piada, se diz “de serviço público”). Cá por nós, anda no ar o adocicado perfume a mortos da amargura, mas pode ser que não. Contra o vero desemprego, contra a falsa “qualificação”, contra a cosmética oratória, contra a flatulência verborreica e contra a verbosidade do flato, nada. Contra as pessoas, tudo. Está, portanto, tudo bem, aqui no paraíso-dentro-de-momentos.
É Verão, é tempo de “ícones”. Em Leiria, o “ícone” que mais imediatamente me ocorre, desculpai-me, é a Ribeira dos Milagres, mas isto é por causa do meu famigerado mau feitio. No resto do mundo (que começa na Barosa, passa pela Nova Zelândia e acaba, também por piada, em Pombal), o “ícone” é a Madonna, matrona magrela a quem nunca passou pela cabeça (até agora, ao menos) vir a Leiria beijocar um dos 400 mil bácoros que dejectam fezes impunes na dita Ribeira. Deve ser do flato.
Ainda se obrigassem cada porquinho a levar “chip” como os cachorros nacionais nascidos a partir de 1 de Julho último…
Proposta: beijemo-nos todos na boca. Proposta: em simpática encomenda personalizada, enviemo-nos todos à Lynda Carter. No remetente, escrevamos assim: Leiria-Portugal (“ou “wondercity of the wondercountry”).
E quando a encomenda lá chegar(mos), vamos mas é todos beber um copo com a Super-Mulher.
CRÓNICA FUTURA
Há muitos, muitos anos, a vida era simples. Tão simples, que o mundo nem precisava de engenharias cosmogónicas. Na cozinha maternal, o calendário de parede nunca mudava de ano, pois que a infância é (era) uma eternidade não numerária. Éramos todos felizes da felicidade maior que há (ou houve): a que resulta da não-consciência.
O futuro tornou-se agora e o agora é isto: os nossos rostos repetindo, por atavismo, os retratos espalhados por toda a casa como sentinelas do Tempo, como arautos da Passagem, como decretadores da Brevidade.
A vida é a vida. Só não compreendo, dela, isto: se nascer não é pecado, por que razão não nos perdoa a vida termos nascido dela e para ela? E mais: por que motivo não lhe perdoamos nós a ela, à ávida vida, esta pena de a pen(s)armos mais do que, simplesmente, a vivermos? Não sei responder. Só sei perguntar.
Há muitos, muitos anos, nós éramos simples. A nossa respiração, por infantil (por inicial, portanto), prolongava a brisa, que nas árvores entretinha a folhagem de passaritos cantores e de pinceladas de ouro aeróbico. Não era, então, o dinheiro (ou a escassez dele) que nos movia. Nem era o aspecto exterior que se nos assemelhava, por dentro, a nós mesmos. Éramos, mais pequenos embora em corpo, bem mais altos do que agora somos (ou parecemos, por fora). Por assim dizer, nós éramos, então, de verdade nós, não estes que agora, no futuro, nos tornámos.
(Em frente a esta crónica e em frente à mão que a escreve, uma loja de móveis espera clientes que não vêm; um cão abandonado trota solidão passeio acima, passeio abaixo; uma mulher antiga e muito branca cambaleia de mercearias rumo à casa viúva onde exerce sozinha seu particular atavismo fotográfico; mas uma adolescente desempoeirada grita euforias de telemóvel ao namorado algures no éter da modernidade.)
Pouso agora a caneta, a crónica está pronta, está acabada a manhã. Tentarei, na tarde e na noite que se seguem, não ceder ao amargor supranumerário da consciência. Procurarei (encontrarei?) árvores – árvores e o vento nelas dando-lhes de pássaros respiratórios e de ouro cantor. Se o lograr, serei de novo o que fui já: não uma repetição de retrato, mas um rosto novo, um rosto em que aquele cão solitário confie para dono e companheiro de solidão, passeio abaixo, passeio acima.
ABANDONOS
Resigno-me sempre muito mal, cada vez que se me impõe a visão de um abandonado. Um gato, um cão, uma pessoa: cada espécie é propícia ao desperdício. E eu não consigo nunca furtar-me à tristeza perante (de pessoa, cão ou gato) um caso de abandono.
Na aldeia, acontece menos. O universo é mais restrito, na aldeia. Também acontece, eu sei. Mas acontece menos do que na cidade. Esta manhã, tomando com a minha mulher a primeira cafeína do dia, havia um cão sem dono nem perspectiva. A água dos olhos dele arrefecia ao sol de Julho. Apresentava uma orelha roída ou pela moléstia ou por outro cão. Movia-se lentamente. Encontrou uma sombra, deitou-se na pedra. Respirava como um acordeão doente. De pronto, o café amargou-se-me entre a boca e o coração. Paguei, saí dali depois de beijar a face por igual condoída da minha senhora, sentei-me aqui a escrever-vos isto.
Estou agora num café gentil da Avenida Capitão Silva Pereira. A manhã cresce fresca e luminosa. Estou calado a um canto. Ainda penso no cão. Então (agora mesmo, enquanto e quanto escrevo), impõe-se-me a recordação de um homem que muitas vezes vi pelas ruas desta cidade de Viseu. É de olhos azuis e de roupas muito limpas e muito pobres. É a personificação viva da solidão: uma estátua que se mexe, acima, abaixo. Recolhe do chão pontas de cigarro que o mundo dos fumadores abandona à passagem. Tem uma caixa de fósforos de cozinha.
Uma vez, parei ante ele e ofereci-lhe um cigarro não pedido. Aceitou-o sem olhar a minha mão. Olhou-me nos olhos enquanto recolhia o cigarro. Aquele azul aguado e magoado frechou-me irremediavelmente o instante. Balbuciou um “Agradecido” correctíssimo e seguiu caminho, abandonando-se ao seu mesmo abandono. Nunca o esquecerei. Sei-o bem: nunca o esquecerei.
Quando puder, voltarei a viver na aldeia, restrito universo onde o abandono é, ao menos, colectivo. Digamo-lo: onde o abandono, por universal, não se nota nem se sofre tanto. Não se nota nem se sofre tanto a evidência existencial do abandono, na aldeia. É tudo perto, até a vida, até a morte. Na cidade, porém, sucede-me evocar um homem mercê de um cão – e vice-versa.
Aqui há gato.
OURO, VISTE-LO
Tenho duas filhas, mas espero que se tornem, também elas, meninos. E de ouro. Dois meninos de ouro: é o que mais lhes desejo. Também depende delas, não só da minha esperança.
Um cursozito tecnológico desses rápidos para as estatísticas e um cartão-chip de juventude partidária como agora os cachorros nacionais nascidos a partir de 1 de Julho último: eis dois degraus que as minhas duas rosas terão de adquirir antes que se faça tarde na vida delas, como na minha se fez a partir do momento em que, tendo cursado Letras, me estatelei de pára-quedas no país dos Números.
Meninas-meninos, sim. E de ouro. Mesmo que de ouro de espúria casquinha de pechisbeque, ouro-lata de ourivesaria covilhanense, por assim dizer. Ainda no outro dia me dei ao solitário prazer de um trocadilho duplo. Era este: perdemos em 2004 com os Gregos porque o Sócrates deles é a sério; e porque o Sócrates deles sempre tinha o Platão, ao passo que nós, com o nosso, nem latão.
As minhas meninas torcem o nariz a tanta agrura paternal. De facto, tornei-me um “cota” ácido, um rezingão malacueco, um ocioso misantropo, um vedor de águas paradas, um obstinado maledicente, um ex-menino de ouro-nenhum e de prata-viste-la. Pois foi. Pois é. Mas também a realidade se encarrega de dar-me razões: 24 horas por dia, sete dias/semana, 12 meses/ano e, com algum azar, 70 anos/vida.
O Scolari ter-se ido embora é que foi duro golpe assestado nos meus futuros meninos de ouro. Tropeçando em sacos cheios de dinheiro (contribuinte, logo nosso), o insigne pendurador de bandeiras republicanas da monarquia das bananas foi-se embora e despovoou os meninos/meninas, que assim já não hão-de jogar (até por não terem nascido no Brasil) na selecção nacional. Resta-lhes o pechisbeque tecnológico, o 12º por equivalência, os festivais de Verão para cigarras e os centros de desemprego de Inverno para formigas. Pobrezinhos dos meus meninos, pobrezinhas das minhas rosas.
No país dos Números que a nenhuma outra realidade contam se não (a) esta, escrevi estas letras que, pensando bem, não mostrarei às andróginas filhas minhas. Nem que mas pagassem ao preço de um ouro que não é verdade mas tão-só covilhanense, por assim dizer.
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