20/08/2007

A Noite em Breve - 4

Foto:
Salvation, © Duane Michaels
A Noite em Breve
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)


4
Caramulo, tarde de 14 de Agosto de 2007

Outra tarde. Esta etapa não usa violência. É, até, tímida. Para os agostos de que me lembro, é tímida. O favónio desta tem uma face de gelo, outra de brasa. Os cães divertem-se de fome sobre as pedras. Tenho quarenta e três anos, esta tarde. Vou removendo da cave da casa da minha irmã a biblioteca em sacos. Aos anos que ali estavam, os livros e os cadernos. Chegou o tempo de os reaver para os reviver. Redescubro o tempo que se me queimou: cadernos pessoais, maigrets, álbuns de fotografias que convocam rostos e anos e noites. Roubaram-me, no entanto, o mais precioso dos objectos: a cafeteira azul que a mãe do meu Pai estreou no baptizado dele. Sei quem ma roubou: um ranhosozito que talvez ainda venha a preferir não o ter feito. A vida tem ouro e tem merda, enfim.
Outra tarde. Trabalhei bem depois de almoço. Redigi o meu programa de rádio, à noite gravo tudo, amanhã produzo-o. Entretanto, falei com um amigo. O meu futuro é, quando falo com amigos, igual ao passado – e é bom. Também, parece, vislumbrar-se um emprego novo para o dia. Hotelaria ou construção, a ver.
Entretanto, outra tarde. Calfam-se as horas andarilhas. Cinco, três, seis, quatro, zero. Na minha casa, a literatura ensacada revive tudo: a adolescência dos autores referentes, as redescobertas, os ainda-por-ler. Maugham, Moravia, Simenon, Christie, Faulkner, Thomas x 2 (Dylan e Mann), Steinbeck, Camões. A gata cheira, passando em nenúfares de pèzinho alteado, os sacos brancos e amarelos. Paginado e compaginado, revisita-me o tempo antigo de o meu Pai me dar umas notas de cem para a vivência universitária, que eu felizmente consumi fora da universidade o mais possível – sobretudo n’A Brasileira e nos alfarrabistas. Estas coisas vão depois ter conta e monta numa personagem chamada Ismael Janeiro, no livro dos anjos terminais que escrevo desde 24 de Novembro de 2006.
Agora: os objectos sobre o tampo da mesa, reduto do ócio-negócio da minha vida escriturária. A noite em breve.
Ou agora: Fernando Pessoa, em vida, viu editado de seu, em volume, apenas a Mensagem, apenas 2º lugar de uma merda de prémio qualquer. Portugal, já então. O rapaz chamado Fernando António, filho do defunto Joaquim, pressentindo as cópulas neoconjugais de sua extrema e pouco extremosa mãe com o gajo de bigodes que a levou, para emprenhanço de carreira, até à África do Sul (Durban); a nostalgia do quarto andar em frente ao S. Carlos. O maior poeta era o homem mínimo: um dos chapéus-de-coco de Magritte, uma das mulheromens dos cafés de Hopper – Fernando António Nogueira Pessoa.
Na sobreloja de uma casa de pasto, Bernardo Soares deu-se em papel a um cavalheiro correspondente comercial hábil em línguas bárbaras: francês, inglês, Fernando e António.
Revivo essas sombras.



René and Georgette Magritte with their dog after the war



canta Paulo Frederico Simão depois de todas as guerras. 1983 – Hearts and Bones. Biodiscografia – conhecimento pessoal, peculiar, antes da breve noite.
Nem ecologias de factura, nem facturações de cagar no chão. As guerras são movidas e promovidas a gasóleo. Alguém tem de pegar. Alguém tem de pagar. Paguem os afegãos, os pobres do deus errado, conforme a cavalaria a gasóleo.
Recordo a leitura de Lorca. Azeitonas, navalhas, Lua e sangue. Mulheromens. A vida espanhola. A ânsia de leite e de sangue e de azeite. E tudo isso nos versos. É muito difícil dizer. Mais fácil é recusar o Vale dos Caídos, dos cadaverosos de Franco e de Salazar e da Puta-que-os-Pariu-a-Todos. Pariu para não abortar a favor da evolução da Humanidade e contra os donos dos Direitos Huma(merica)nos do gasóleo.
Não.
Agora, mais devagar.
Tenho em casa o volume de 1982 (Setembro a Dezembro, nº450/1) da Vértice d(edic)ado a Carlos de Oliveira. Vão vinte e cinco anos. Vai a vida dele. Escritor português, tantos anos de vida, quantos anos de morte. Quero lá saber: tenho os livros. Tenho a memória dos livros: Pequenos Burgueses etc.
Ou a sedimentação dos pequenos prazeres. O corpo contra a terra ex-infantil, morna ainda do sol do dia, pronta para uma sexualidade inóspita, não-católica e não pró-comunista. Os mamilos roçando a terra dos espargos, dos caracóis e das lesmas e dos ouriços e da infância.
Ou Seara de Vento, de Manuel da Fonseca.

7 comentários:

José Antunes Ribeiro disse...

Daniel,um grande abraço:)
A escrita, a vida!...Sempre!

Daniel Abrunheiro disse...

Sempre, Zé, e para sempre.

Manuel da Mata disse...

Ultimamente tenho vindo ter com o Daniel, para rememorar os nomes de autores que amei na juventude.
É que vistas bem as coisas, andámos a ler as mesmas coisas ou coisas dos mesmos autores.
Vou à biblioteca do Zé Ribeiro e vejo muitas das lombadas da minha; vou ao consultório do meu amigo Carlos Lacerda, psiqiatra, e o cenário repete-se. E curiosamente, às vezes à dez anos a separar-nos.
O Daniel está caudaloso como o Amazonas e quanta a "tretas", cheira-me a falsa modéstia. O Daniel "prosa" bem e é um grande poeta. Ao contrário dos críticos encartados, eu não tenho medo dos adjectivos. E aqui vai: por vezes o Daniel partilha connosco, generosamente, momentos sublimes.

Daniel Abrunheiro disse...

Ai Manel, tudo tão ao contrário: sou o cão farejador que segue pistas. Os autores - e tu, em Figo Maduro, nada devendo à Pátria.

Manuel da Mata disse...

Era só para corrigir o "à dez anos" por há dez anos.
E qual é o grande poeta que não fareja?

JPC disse...

Quem me dera ter um nariz assim, companheiro! Há frases que invejamos às vezes: "caudaloso como o Amazonas". Subscrevo. Obrigado por estes pequenos/grandes prazeres. E cá fico à espera de outros "argumentos", quem sabe... será o que tiver de ser. Acima de tudo, liberdade.

Rui Correia disse...

construção civil: estrutura, estrutura, estrutura.

estás talhado para as obras. grandes obras.

que construção civil a tua, amigo

como vês, andas por aí a conduzir-nos a todos. cabe-nos, à Fonda, mas o mais novo, to enjoy the ride.

Luzes:

"O maior poeta era o homem mínimo: um dos chapéus-de-coco de Magritte, uma das mulheromens dos cafés de Hopper"

o Paulo Simão, pois claro

Canzoada Assaltante