A NOITE EM BREVE
ou
CORUSCAÇÕES NO IMO DE SOMBRAS
ou
CORUSCAÇÕES NO IMO DE SOMBRAS
(uma portugalidade delével)
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Caramulo, tarde de 10 de Agosto de 2007
Inicio hoje a redacção (e a publicação, aqui mesmo) de uma colecção de textos tão desimportantes como todos os que escrevi até agora e como todos os que escreverei até que. Decidi partilhar, enfim, a falsidade (e a falsa idade) da memória. Como isto não faz mal a ninguém, mal não há que resulte de tal colecção: nem da escrita que a dê, nem da leitura que a esqueça. Concluo este texto zero com a notação sincera da absoluta portugalidade embebedora da presente colecção – até a falsidade pode ser sincera.
1
Ibidem
É por um fim de tarde. Lá em baixo, por todo o vale, o calor do dia imobilizou-se na respiração humana. Disseram-me de muitas pessoas parando nos passeios, as línguas de fora palpitando como corações caninos. Cá em cima, não. A brisa quase foi vento, o que nos aliviou muito da ardência de gesso do sol. Todos andamos com a sonolência obtusa da tensão baixa, mas andamos. A brisa prossegue sinalizando os castanheiros e as tílias, as árvores favoritas do ignoto arquitecto botânico que há quase um século por aqui andou plantando a sombra futura.
Estou quieto na antemão ominosa da minha vida. Fotografado de satélite por algum anjo tecnológico, sou o da camisa de quadrículas verde-cinza. Nenhuma diferença crucial em relação aos três cavalheiros abonados de gordura ventral que cervejam na extrema oposta da pastelaria. Fragmentos oratórios daquela assembleia chegam-me pelo ar como mariposas errantes e erradas. Suporto o meu mesmo sossego com essa divina e bovina abstracção portuguesa que é a pedra-de-toque da felicidade: o tão nosso que-se-lixe. Na televisão, gente gorda e pequenina concorre animadamente a um prémio em dinheiro e/ou electrodomésticos.
Estou também imune à cutelaria dos sonhos que toda a noite passada me revolveram, frangassando-me em espeto sobre o brasido da tristeza. A tardinha vai muito doce. É bom dar a camisa à aragem, é bom receber na quilha do peito a brandura quase fria do hálito da serra.
Desfaz-se o sínodo obeso, fico só no estabelecimento. Depois (agora), o patrão da casa vai-me atirando informações do dia, do cartaz TV, da época desportiva, dos últimos relatórios de porrada à saída (à entrada) das discotecas e dos bailes rurais.
Sofro benignas memórias que fulminam como enfartes e como os adjectivos mal postos da literatura bem posta. Quero dizer: coisas de livros. São coruscações no imo de sombras. Personagens dali que disseram coisas inesquecíveis. O Faulkner da Light in August. O Carlos de Oliveira de Uma Abelha na Chuva. Autores? Já não só isso – personagens agora também, eles também.
A tardinha queima seu mesmo papel. Já as árvores disciplinadas do parque urdem entre elas uma treva pessoal. Uma mulher extremamente silenciosa varre um pátio. Um representante de bebidas gesticula contra o fantasma invisível que o assola da outra dimensão: a voz do telemóvel. Uma trança do castanheiro dançarina-se toda na pureza inútil da passerelle aérea. Tudo é tão bonito antes de morrer.
Nem sempre tudo foi tão vazio como agora – viver. Lembro-me do Inverno de 1995. Sobrevivia eu, então, numa cidade chamada Lisboa. Deitava-me cedo, levantava-me para sempre. Andava com dois livros na minha vida. Um era acessório, o outro era definitivo. Respectivamente: A Era do Vazio, de Gilles Lipovetsky, e A Cabeça entre as Mãos, de Herberto Helder. Os livros estavam e andavam em Lisboa comigo, em Coimbra estava a minha insensata alegria: uma criança nova como a palavra justa que de vez em quando merecemos todos. Ao fim do dia de trabalho, eu saía a vaguear pelo bairro. Nunca percebi nada daquilo: Lisboa by night. Lisboa? – aldeias justapostas, sucessivas, obsessivas. A noite? – metrópole única, agnóstica, obsessiva. Eu vagueava. Havia uma casa-de-pasto de transmontanos: malgas metálicas de caldo de talo de couve e pratos inox de iscas de fígado. Barato e sensato. Recolhia-me ali a coraçangar um tinto duro e sério, enfardando papos-secos para amortecer a amargura da cabeça entre as mãos na era do vazio.
Hoje, a minha vida só é diferente porque isto não é Lisboa. Há tílias e castanheiros, através de que uma brisa omnisciente tudo deixa desconhecer em quietude, que não em paz.
Mas dizia-vos de Carlos de Oliveira, não era? Penso ter sido em 1982 que a Vértice lhe dedicou um justíssimo número de homenagem. O homem estava morto (desde o 1º de Julho de 1981), os livros dele não podiam está-lo. Há uma fotografia de Carlos, circa 1940, tão novo, na equipa de futebol do Febres (Cantanhede). Depois disso, ele escreveu e reescreveu incessantemente, numa depuração inelutável, a sua obra maravilhosa. Veio aquele rio lúcido todo, dele, todo dele: os poemas reunidos no Trabalho Poético; e as narrativas Casa na Duna, Pequenos Burgueses, mais outras a que voltarei quando recuperar o meu exemplar dessa Vértice (estou seguro de que de 1982, sim). Caramba. Só posso lobrigá-lo, à sombra-chinesa de uma memória (tão inventada como a que tecemos a partir dos nossos mortos) de Lisboa: ele na cidade, esposo de Ângela/Genaa, entre eléctricos e fatos-gravatas, fora já do estrito neo-realista (mas não de todo fora) e nunca promíscuo como os urbanóides pseudocomunistóides; e sebáceos; e dermóides. Sim, Carlos de Oliveira em Lisboa, capaz do que ninguém era. O urdume léxico-semântico dos seus poemas, como aquele em que sonhos, cedros, ombros e perfumes recuperam (Proust nosso, em pouquíssimas linhas) o Tempo.
Conversamos pouco uns com os outros. Pouco nos interessa. Há um esvaziamento electrodoméstico: as nossas vidas são gordinhas e pequeninas como os seres daquele teleconcurso. Assim de repente, não vou perorar sobre a bic laranja da escrita fina, nem sobre o Daniel Filipe d’A Invenção do Amor. Estala-me a cara a evidência (coruscante, íntima, sombria) de sermos um país sem ideia nenhuma de a quem parimos. Digo, pronto: Daniel Filipe, António Osório, Cesário Verde, Emanuel Félix. Exercemos uma honestidade de padaria paga a saco na porta, que nem de pano é já como outrora, mas de vulgar plástico. Vulgarizamo-nos como é de Natureza. Bem. Mas plastificarmo-nos ou deixarmos nós que no-lo façam, é recusar Tony de Matos noutra Lisboa, a das caves requeimadas a cigarros sem filtro e a táxis serventes à bandeirada do regime moral.
Sabemos tão pouco. Por exemplo: os Ingleses andam há muitos anos a, no intervalo das matanças coloniais, escrever grande literatura de dimensão psicorrífica. Sabem pegar no dedo sozinho da solitária mão do leitor sozinho e levá-lo a mansões decrépitas e desoladas, dentro de que mal respiram múmias vivas de sobrevivas viúvas guardiãs de turvos segredos. E zinga e zinga. Mas é verdade. O que eles não têm (nem querem ter), é a nossa mortuária vigília da sílaba, o nosso rossio-betesga da beatificação eugeniotorguiana. Não, pois não. O Eliot deles até norte-americano era. O Henry James também. Agora, o que eles nunca fariam, é o que fazemos: ignorar um Correia Garção, desconhecer um Martim Codax – ou achar graça aos vascos da idem moura.
A noite aí está, no texto um. É tempo de aquecimento contra tão tentacular refrigério. É a noite. É o grande púbis inofensivo, a vulva descomunal que dá e tira luas, humidades, sonhos revolutos do mental mortal churrasco.
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Caramulo, tarde de 10 de Agosto de 2007
Inicio hoje a redacção (e a publicação, aqui mesmo) de uma colecção de textos tão desimportantes como todos os que escrevi até agora e como todos os que escreverei até que. Decidi partilhar, enfim, a falsidade (e a falsa idade) da memória. Como isto não faz mal a ninguém, mal não há que resulte de tal colecção: nem da escrita que a dê, nem da leitura que a esqueça. Concluo este texto zero com a notação sincera da absoluta portugalidade embebedora da presente colecção – até a falsidade pode ser sincera.
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Ibidem
É por um fim de tarde. Lá em baixo, por todo o vale, o calor do dia imobilizou-se na respiração humana. Disseram-me de muitas pessoas parando nos passeios, as línguas de fora palpitando como corações caninos. Cá em cima, não. A brisa quase foi vento, o que nos aliviou muito da ardência de gesso do sol. Todos andamos com a sonolência obtusa da tensão baixa, mas andamos. A brisa prossegue sinalizando os castanheiros e as tílias, as árvores favoritas do ignoto arquitecto botânico que há quase um século por aqui andou plantando a sombra futura.
Estou quieto na antemão ominosa da minha vida. Fotografado de satélite por algum anjo tecnológico, sou o da camisa de quadrículas verde-cinza. Nenhuma diferença crucial em relação aos três cavalheiros abonados de gordura ventral que cervejam na extrema oposta da pastelaria. Fragmentos oratórios daquela assembleia chegam-me pelo ar como mariposas errantes e erradas. Suporto o meu mesmo sossego com essa divina e bovina abstracção portuguesa que é a pedra-de-toque da felicidade: o tão nosso que-se-lixe. Na televisão, gente gorda e pequenina concorre animadamente a um prémio em dinheiro e/ou electrodomésticos.
Estou também imune à cutelaria dos sonhos que toda a noite passada me revolveram, frangassando-me em espeto sobre o brasido da tristeza. A tardinha vai muito doce. É bom dar a camisa à aragem, é bom receber na quilha do peito a brandura quase fria do hálito da serra.
Desfaz-se o sínodo obeso, fico só no estabelecimento. Depois (agora), o patrão da casa vai-me atirando informações do dia, do cartaz TV, da época desportiva, dos últimos relatórios de porrada à saída (à entrada) das discotecas e dos bailes rurais.
Sofro benignas memórias que fulminam como enfartes e como os adjectivos mal postos da literatura bem posta. Quero dizer: coisas de livros. São coruscações no imo de sombras. Personagens dali que disseram coisas inesquecíveis. O Faulkner da Light in August. O Carlos de Oliveira de Uma Abelha na Chuva. Autores? Já não só isso – personagens agora também, eles também.
A tardinha queima seu mesmo papel. Já as árvores disciplinadas do parque urdem entre elas uma treva pessoal. Uma mulher extremamente silenciosa varre um pátio. Um representante de bebidas gesticula contra o fantasma invisível que o assola da outra dimensão: a voz do telemóvel. Uma trança do castanheiro dançarina-se toda na pureza inútil da passerelle aérea. Tudo é tão bonito antes de morrer.
Nem sempre tudo foi tão vazio como agora – viver. Lembro-me do Inverno de 1995. Sobrevivia eu, então, numa cidade chamada Lisboa. Deitava-me cedo, levantava-me para sempre. Andava com dois livros na minha vida. Um era acessório, o outro era definitivo. Respectivamente: A Era do Vazio, de Gilles Lipovetsky, e A Cabeça entre as Mãos, de Herberto Helder. Os livros estavam e andavam em Lisboa comigo, em Coimbra estava a minha insensata alegria: uma criança nova como a palavra justa que de vez em quando merecemos todos. Ao fim do dia de trabalho, eu saía a vaguear pelo bairro. Nunca percebi nada daquilo: Lisboa by night. Lisboa? – aldeias justapostas, sucessivas, obsessivas. A noite? – metrópole única, agnóstica, obsessiva. Eu vagueava. Havia uma casa-de-pasto de transmontanos: malgas metálicas de caldo de talo de couve e pratos inox de iscas de fígado. Barato e sensato. Recolhia-me ali a coraçangar um tinto duro e sério, enfardando papos-secos para amortecer a amargura da cabeça entre as mãos na era do vazio.
Hoje, a minha vida só é diferente porque isto não é Lisboa. Há tílias e castanheiros, através de que uma brisa omnisciente tudo deixa desconhecer em quietude, que não em paz.
Mas dizia-vos de Carlos de Oliveira, não era? Penso ter sido em 1982 que a Vértice lhe dedicou um justíssimo número de homenagem. O homem estava morto (desde o 1º de Julho de 1981), os livros dele não podiam está-lo. Há uma fotografia de Carlos, circa 1940, tão novo, na equipa de futebol do Febres (Cantanhede). Depois disso, ele escreveu e reescreveu incessantemente, numa depuração inelutável, a sua obra maravilhosa. Veio aquele rio lúcido todo, dele, todo dele: os poemas reunidos no Trabalho Poético; e as narrativas Casa na Duna, Pequenos Burgueses, mais outras a que voltarei quando recuperar o meu exemplar dessa Vértice (estou seguro de que de 1982, sim). Caramba. Só posso lobrigá-lo, à sombra-chinesa de uma memória (tão inventada como a que tecemos a partir dos nossos mortos) de Lisboa: ele na cidade, esposo de Ângela/Genaa, entre eléctricos e fatos-gravatas, fora já do estrito neo-realista (mas não de todo fora) e nunca promíscuo como os urbanóides pseudocomunistóides; e sebáceos; e dermóides. Sim, Carlos de Oliveira em Lisboa, capaz do que ninguém era. O urdume léxico-semântico dos seus poemas, como aquele em que sonhos, cedros, ombros e perfumes recuperam (Proust nosso, em pouquíssimas linhas) o Tempo.
Conversamos pouco uns com os outros. Pouco nos interessa. Há um esvaziamento electrodoméstico: as nossas vidas são gordinhas e pequeninas como os seres daquele teleconcurso. Assim de repente, não vou perorar sobre a bic laranja da escrita fina, nem sobre o Daniel Filipe d’A Invenção do Amor. Estala-me a cara a evidência (coruscante, íntima, sombria) de sermos um país sem ideia nenhuma de a quem parimos. Digo, pronto: Daniel Filipe, António Osório, Cesário Verde, Emanuel Félix. Exercemos uma honestidade de padaria paga a saco na porta, que nem de pano é já como outrora, mas de vulgar plástico. Vulgarizamo-nos como é de Natureza. Bem. Mas plastificarmo-nos ou deixarmos nós que no-lo façam, é recusar Tony de Matos noutra Lisboa, a das caves requeimadas a cigarros sem filtro e a táxis serventes à bandeirada do regime moral.
Sabemos tão pouco. Por exemplo: os Ingleses andam há muitos anos a, no intervalo das matanças coloniais, escrever grande literatura de dimensão psicorrífica. Sabem pegar no dedo sozinho da solitária mão do leitor sozinho e levá-lo a mansões decrépitas e desoladas, dentro de que mal respiram múmias vivas de sobrevivas viúvas guardiãs de turvos segredos. E zinga e zinga. Mas é verdade. O que eles não têm (nem querem ter), é a nossa mortuária vigília da sílaba, o nosso rossio-betesga da beatificação eugeniotorguiana. Não, pois não. O Eliot deles até norte-americano era. O Henry James também. Agora, o que eles nunca fariam, é o que fazemos: ignorar um Correia Garção, desconhecer um Martim Codax – ou achar graça aos vascos da idem moura.
A noite aí está, no texto um. É tempo de aquecimento contra tão tentacular refrigério. É a noite. É o grande púbis inofensivo, a vulva descomunal que dá e tira luas, humidades, sonhos revolutos do mental mortal churrasco.
3 comentários:
Daniel! Sem palavras...um texto cru. Um texto real. Beijos.
Para Martim Codax
Pergunto por ti às ondas,
Mas as ondas que são ondas,
Não querem saber de ti,
Nem querem saber de mim.
Virás tarde, virás cedo,
Quem me poderá dizer?
Pergunto por ti às ondas,
Aqui junto ao mar, amiga,
Mas as ondas que são ondas,
Não querem saber de ti,
Nem querem saber de mim.
Virás tarde, virás cedo,
Quem me poderá dizer?
Manuel Barata
Luzes:
"que há quase um século por aqui andou plantando a sombra futura"
"Estou quieto na antemão ominosa da minha vida. Fotografado de satélite por algum anjo tecnológico, sou o da camisa de quadrículas verde-cinza."
"Autores? Já não só isso – personagens agora também, eles também."
"Um representante de bebidas gesticula contra o fantasma invisível que o assola da outra dimensão: a voz do telemóvel"
"enfardando papos-secos para amortecer a amargura da cabeça entre as mãos na era do vazio"
"o nosso rossio-betesga da beatificação eugeniotorguiana"
Um portento de sinceridade, amigo. Passos extraordinários que dás na direcção linda. Tão difícil perceber isso aqui deste satélite que te persegue ao longe.
Luzes.
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