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entre as 22 e as 23h00,
na Emissora das Beiras - 91.2 FM -
ou na rede, em www.emissoradasbeiras.com
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1
Trabalho na construção civil há catorze anos. Não tenho casa. Durmo no estaleiro da obra. Enfim, acho que posso chamar casa ao contentor metálico adaptado. Tem uma porta e uma janela. Tem um catre, uma mesa, uma cadeira e uma salamandra em que queimo, no inverno, as sobras de madeira da construção. Vou de obra em obra, de terra em terra. É a minha vida.
2
Levanto-me sempre uma hora mais cedo do que é preciso. Faço café instantâneo e bebo duas chávenas enquanto leio o dicionário. É o único livro que tenho. Gosto de ler as palavras. Leio seguidamente, como uma história. Todas as histórias estão ali contidas. Quando acabar o dicionário, voltarei ao princípio.
3
Às oito da manhã, o trabalho começa. É duro e bom, o trabalho. Aprendi todos os ofícios. Cofragem, massa, electricidade, canalização, pintura, estuque – nada me é estranho. São palavras também, os ofícios. Quando o dia de trabalho acaba, os ofícios voltam ao livro.
4
À noite, vou jantar sozinho. O mundo tem milhares de restaurantes. Escolho um e mantenho-me fiel a ele enquanto a obra dura. Já cheguei a estar catorze meses no mesmo sítio.
5
Nunca tiro férias. Ganho a dobrar, deixo o dinheiro ganhar pó no banco. Fumo uma cigarrilha à noite, junto á salamandra. Se chove, o céu canta na chapa. Não leio à noite. Aproveito o cansaço para dormir sem sonhos.
6
Se chegar a velho, há-de vir o dia em que não poderei trabalhar. O médico vai passar-me os papéis para a reforma, o engenheiro há-de dar-me uma placa de prata com o meu nome e os meus anos de formiga. Quando isso acontecer, arranjo um contentor destes, compro uma terra e levo o dicionário.
7
Talvez eu tenha alguma coisa partida dentro de mim, não sei. Às vezes, quando está muito frio, sinto o corpo como se fosse de vidro. Se me atirassem uma pedrada, estou certo de que me esmigalharia. O que estivesse partido dentro de mim haveria então de confundir-se com o resto.
8
A obra em que trabalho agora é perto da foz de um rio. Vejo daqui a ponte, que é alta e longa. Do cimo da construção, vejo longe. Aviões a jacto traçam um rasto de giz no céu muito puro, muito azul. Nunca andei de avião. De certa maneira, nunca andei. Acontece-me viver a ilusão de que a obra é sempre a mesma, o restaurante sempre o mesmo. Como são mesmas as palavras – e outras, ao mesmo tempo.
9
Aos domingos, é mais difícil. Acordo à mesma hora, leio o mesmo tempo, saio e dou uma volta pela obra. Já me tem acontecido trabalhar o dia todo. A solidão é perfeita como uma esfera de rolamento. Mas ontem não fiz isso. Era domingo. Fui ver o rio. Andei pela base dos pilares. Havia pescadores. Estive a vê-los tirar peixe.
10
No dicionário, a morte vem antes da vida. A vida está depois da morte. Talvez por causa disso tenham inventado as religiões, não sei. Não falo disto com ninguém. Também o mar está antes do rio, ao contrário do que vejo. Esta obra acaba em Novembro. Depois há-de ser Dezembro, que no livro está antes. Talvez eu nasça outra vez. Só não faço ideia que obra faria com outra vida.
Trabalho na construção civil há catorze anos. Não tenho casa. Durmo no estaleiro da obra. Enfim, acho que posso chamar casa ao contentor metálico adaptado. Tem uma porta e uma janela. Tem um catre, uma mesa, uma cadeira e uma salamandra em que queimo, no inverno, as sobras de madeira da construção. Vou de obra em obra, de terra em terra. É a minha vida.
2
Levanto-me sempre uma hora mais cedo do que é preciso. Faço café instantâneo e bebo duas chávenas enquanto leio o dicionário. É o único livro que tenho. Gosto de ler as palavras. Leio seguidamente, como uma história. Todas as histórias estão ali contidas. Quando acabar o dicionário, voltarei ao princípio.
3
Às oito da manhã, o trabalho começa. É duro e bom, o trabalho. Aprendi todos os ofícios. Cofragem, massa, electricidade, canalização, pintura, estuque – nada me é estranho. São palavras também, os ofícios. Quando o dia de trabalho acaba, os ofícios voltam ao livro.
4
À noite, vou jantar sozinho. O mundo tem milhares de restaurantes. Escolho um e mantenho-me fiel a ele enquanto a obra dura. Já cheguei a estar catorze meses no mesmo sítio.
5
Nunca tiro férias. Ganho a dobrar, deixo o dinheiro ganhar pó no banco. Fumo uma cigarrilha à noite, junto á salamandra. Se chove, o céu canta na chapa. Não leio à noite. Aproveito o cansaço para dormir sem sonhos.
6
Se chegar a velho, há-de vir o dia em que não poderei trabalhar. O médico vai passar-me os papéis para a reforma, o engenheiro há-de dar-me uma placa de prata com o meu nome e os meus anos de formiga. Quando isso acontecer, arranjo um contentor destes, compro uma terra e levo o dicionário.
7
Talvez eu tenha alguma coisa partida dentro de mim, não sei. Às vezes, quando está muito frio, sinto o corpo como se fosse de vidro. Se me atirassem uma pedrada, estou certo de que me esmigalharia. O que estivesse partido dentro de mim haveria então de confundir-se com o resto.
8
A obra em que trabalho agora é perto da foz de um rio. Vejo daqui a ponte, que é alta e longa. Do cimo da construção, vejo longe. Aviões a jacto traçam um rasto de giz no céu muito puro, muito azul. Nunca andei de avião. De certa maneira, nunca andei. Acontece-me viver a ilusão de que a obra é sempre a mesma, o restaurante sempre o mesmo. Como são mesmas as palavras – e outras, ao mesmo tempo.
9
Aos domingos, é mais difícil. Acordo à mesma hora, leio o mesmo tempo, saio e dou uma volta pela obra. Já me tem acontecido trabalhar o dia todo. A solidão é perfeita como uma esfera de rolamento. Mas ontem não fiz isso. Era domingo. Fui ver o rio. Andei pela base dos pilares. Havia pescadores. Estive a vê-los tirar peixe.
10
No dicionário, a morte vem antes da vida. A vida está depois da morte. Talvez por causa disso tenham inventado as religiões, não sei. Não falo disto com ninguém. Também o mar está antes do rio, ao contrário do que vejo. Esta obra acaba em Novembro. Depois há-de ser Dezembro, que no livro está antes. Talvez eu nasça outra vez. Só não faço ideia que obra faria com outra vida.
Caramulo, noite de 31 de Outubro de 2006
4 comentários:
Fascinante. Tanta beleza e tão bem escrito.
Obrigado.
Muito belo, sem dúvida. Fiz um link no meu blog.
Eu é que agradeço.
Lindíssimo!
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