Hoje mesmo,
entre as 22 e as 23h00,
na Emissora das Beiras
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1
Um homem tinha em casa uma gaveta com sete chaves dentro. Eram chaves que já não serviam para abrir ou fechar portas. O homem tinha ido guardando-as ao longo da vida. A única coisa que aquelas chaves ainda podiam abrir era o passado.
2
Uma das chaves era de cor outoniça, algo entre o ouro e a folha. Tinha servido para desvendar e trancar um casarão que pontificava ao alto da mais alta falésia de uma povoação de pescadores. Era nesse casarão que o homem vivia os invernos. Um dia, o casarão desmoronou-se sem ajuda falésia a baixo. Cá de baixo, na vila, o homem e os pescadores assistiram ao aparente suicídio do casarão.
3
Outra das chaves era verde. Tinha aberto e fechado muitas vezes a casa verde da montanha onde o homem vivia os verões. A chave verde deixou de servir depois de um incêndio que carbonizou até a luz. o homem virou as costas ao fogo e nunca mais voltou à montanha.
4
Havia também uma chave negra. Tinha a letra M em relevo. Com a polpa do dedo indicador, muitas vezes o homem tinha reescrito aquela letra negra. Era a chave da casa da mãe do homem. Quando a mãe do homem tomou lugar na fila do barqueiro, o homem trancou a porta e fez como se a casa tivesse ardido.
5
A chave castanha tinha sido a da casa dos livros. O homem havia adquirido uma sobreloja de casa-de-pasto para conservar a biblioteca pessoal. Os livros subiam ao tecto em silêncio. Quando abertos, os livros rumorejavam como cabos de alta tensão. Uma noite, o homem abriu a porta. O escuro da casa estava povoado de olhos incandescentes. Eram os ratos comedores de livros. O homem fechou a porta e nunca mais leu.
6
A chave encarnada tinha proporcionado ao homem o acesso ao interior da casa da mulher. A mulher nunca saía de casa. O homem levava-lhe comida e revistas. Uma manhã, depois de ter saído, o homem baixou-se para atacar o sapato. Foi então que viu o outro homem abrir a porta com uma chave tão encarnada como a dele. Acabou de fazer o laço ao atacador e fez como se a mulher tivesse chamado o barqueiro.
7
A chave azul era a do café que o homem comprou para ter onde receber gente que conversasse com ele sobre a total desimportância da vida. Uma noite, quando varria o chão e se preparava para fechar a porta, dois adolescentes com navalhas derrubaram-no, limparam a caixa registadora, a estante do tabaco e a das garrafas por abrir. Antes de sair, cortaram-lhe a cara devagar. A chave azul estava do lado de dentro da porta.
8
Também havia na gaveta uma chave de prata. Era prata de lei. O homem achou-a na rua. Não conseguiu imaginar coisa mais desamparada do que uma chave sem direcção. Tinha sido perdida ou abandonada como uma pessoa. O homem guardou-a, nem ele soube jamais porquê.
9
A nossa história está quase a acabar. Estou a escrevê-la num café vazio. Há fotografias emolduradas nas paredes do estabelecimento. Uma das imagens fixa um casarão atento ao oceano do alto de uma falésia muito alta. Outra é o retrato da mãe de alguém. Há uma outra tão bela quão terrível: uma montanha ardendo na noite.
10
O dono do café começou a varrer. Está na hora de fechar. Ele serve a última bebida. Diz que é por conta da casa. Ao dizer isto, ergue o rosto. É o rosto do outro homem, o que entrou na casa da mulher quando o homem das chaves atacava o sapato. Olho a porta do café: lá está, por dentro, a outra chave azul. Em casa, o homem fecha a gaveta. É uma gaveta simples – tal como o passado, não tem fechadura.
Um homem tinha em casa uma gaveta com sete chaves dentro. Eram chaves que já não serviam para abrir ou fechar portas. O homem tinha ido guardando-as ao longo da vida. A única coisa que aquelas chaves ainda podiam abrir era o passado.
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Uma das chaves era de cor outoniça, algo entre o ouro e a folha. Tinha servido para desvendar e trancar um casarão que pontificava ao alto da mais alta falésia de uma povoação de pescadores. Era nesse casarão que o homem vivia os invernos. Um dia, o casarão desmoronou-se sem ajuda falésia a baixo. Cá de baixo, na vila, o homem e os pescadores assistiram ao aparente suicídio do casarão.
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Outra das chaves era verde. Tinha aberto e fechado muitas vezes a casa verde da montanha onde o homem vivia os verões. A chave verde deixou de servir depois de um incêndio que carbonizou até a luz. o homem virou as costas ao fogo e nunca mais voltou à montanha.
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Havia também uma chave negra. Tinha a letra M em relevo. Com a polpa do dedo indicador, muitas vezes o homem tinha reescrito aquela letra negra. Era a chave da casa da mãe do homem. Quando a mãe do homem tomou lugar na fila do barqueiro, o homem trancou a porta e fez como se a casa tivesse ardido.
5
A chave castanha tinha sido a da casa dos livros. O homem havia adquirido uma sobreloja de casa-de-pasto para conservar a biblioteca pessoal. Os livros subiam ao tecto em silêncio. Quando abertos, os livros rumorejavam como cabos de alta tensão. Uma noite, o homem abriu a porta. O escuro da casa estava povoado de olhos incandescentes. Eram os ratos comedores de livros. O homem fechou a porta e nunca mais leu.
6
A chave encarnada tinha proporcionado ao homem o acesso ao interior da casa da mulher. A mulher nunca saía de casa. O homem levava-lhe comida e revistas. Uma manhã, depois de ter saído, o homem baixou-se para atacar o sapato. Foi então que viu o outro homem abrir a porta com uma chave tão encarnada como a dele. Acabou de fazer o laço ao atacador e fez como se a mulher tivesse chamado o barqueiro.
7
A chave azul era a do café que o homem comprou para ter onde receber gente que conversasse com ele sobre a total desimportância da vida. Uma noite, quando varria o chão e se preparava para fechar a porta, dois adolescentes com navalhas derrubaram-no, limparam a caixa registadora, a estante do tabaco e a das garrafas por abrir. Antes de sair, cortaram-lhe a cara devagar. A chave azul estava do lado de dentro da porta.
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Também havia na gaveta uma chave de prata. Era prata de lei. O homem achou-a na rua. Não conseguiu imaginar coisa mais desamparada do que uma chave sem direcção. Tinha sido perdida ou abandonada como uma pessoa. O homem guardou-a, nem ele soube jamais porquê.
9
A nossa história está quase a acabar. Estou a escrevê-la num café vazio. Há fotografias emolduradas nas paredes do estabelecimento. Uma das imagens fixa um casarão atento ao oceano do alto de uma falésia muito alta. Outra é o retrato da mãe de alguém. Há uma outra tão bela quão terrível: uma montanha ardendo na noite.
10
O dono do café começou a varrer. Está na hora de fechar. Ele serve a última bebida. Diz que é por conta da casa. Ao dizer isto, ergue o rosto. É o rosto do outro homem, o que entrou na casa da mulher quando o homem das chaves atacava o sapato. Olho a porta do café: lá está, por dentro, a outra chave azul. Em casa, o homem fecha a gaveta. É uma gaveta simples – tal como o passado, não tem fechadura.
Caramulo, noite de 1 de Novembro de 2006
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