01/11/2006

O Homem de Vidro – histª 31 do Anoitecer ao Tom Dela

Hoje mesmo,
entre as 22 e as 23h00,
na Emissora das Beiras - 91.2 FM -
ou na rede, em
www.emissoradasbeiras.com


1
Trabalho na construção civil há catorze anos. Não tenho casa. Durmo no estaleiro da obra. Enfim, acho que posso chamar casa ao contentor metálico adaptado. Tem uma porta e uma janela. Tem um catre, uma mesa, uma cadeira e uma salamandra em que queimo, no inverno, as sobras de madeira da construção. Vou de obra em obra, de terra em terra. É a minha vida.

2
Levanto-me sempre uma hora mais cedo do que é preciso. Faço café instantâneo e bebo duas chávenas enquanto leio o dicionário. É o único livro que tenho. Gosto de ler as palavras. Leio seguidamente, como uma história. Todas as histórias estão ali contidas. Quando acabar o dicionário, voltarei ao princípio.

3
Às oito da manhã, o trabalho começa. É duro e bom, o trabalho. Aprendi todos os ofícios. Cofragem, massa, electricidade, canalização, pintura, estuque – nada me é estranho. São palavras também, os ofícios. Quando o dia de trabalho acaba, os ofícios voltam ao livro.

4
À noite, vou jantar sozinho. O mundo tem milhares de restaurantes. Escolho um e mantenho-me fiel a ele enquanto a obra dura. Já cheguei a estar catorze meses no mesmo sítio.

5
Nunca tiro férias. Ganho a dobrar, deixo o dinheiro ganhar pó no banco. Fumo uma cigarrilha à noite, junto á salamandra. Se chove, o céu canta na chapa. Não leio à noite. Aproveito o cansaço para dormir sem sonhos.

6
Se chegar a velho, há-de vir o dia em que não poderei trabalhar. O médico vai passar-me os papéis para a reforma, o engenheiro há-de dar-me uma placa de prata com o meu nome e os meus anos de formiga. Quando isso acontecer, arranjo um contentor destes, compro uma terra e levo o dicionário.

7
Talvez eu tenha alguma coisa partida dentro de mim, não sei. Às vezes, quando está muito frio, sinto o corpo como se fosse de vidro. Se me atirassem uma pedrada, estou certo de que me esmigalharia. O que estivesse partido dentro de mim haveria então de confundir-se com o resto.

8
A obra em que trabalho agora é perto da foz de um rio. Vejo daqui a ponte, que é alta e longa. Do cimo da construção, vejo longe. Aviões a jacto traçam um rasto de giz no céu muito puro, muito azul. Nunca andei de avião. De certa maneira, nunca andei. Acontece-me viver a ilusão de que a obra é sempre a mesma, o restaurante sempre o mesmo. Como são mesmas as palavras – e outras, ao mesmo tempo.

9
Aos domingos, é mais difícil. Acordo à mesma hora, leio o mesmo tempo, saio e dou uma volta pela obra. Já me tem acontecido trabalhar o dia todo. A solidão é perfeita como uma esfera de rolamento. Mas ontem não fiz isso. Era domingo. Fui ver o rio. Andei pela base dos pilares. Havia pescadores. Estive a vê-los tirar peixe.

10
No dicionário, a morte vem antes da vida. A vida está depois da morte. Talvez por causa disso tenham inventado as religiões, não sei. Não falo disto com ninguém. Também o mar está antes do rio, ao contrário do que vejo. Esta obra acaba em Novembro. Depois há-de ser Dezembro, que no livro está antes. Talvez eu nasça outra vez. Só não faço ideia que obra faria com outra vida.


Caramulo, noite de 31 de Outubro de 2006

4 comentários:

Anónimo disse...

Fascinante. Tanta beleza e tão bem escrito.
Obrigado.

Anónimo disse...

Muito belo, sem dúvida. Fiz um link no meu blog.

Daniel Abrunheiro disse...

Eu é que agradeço.

Maria Carvalho disse...

Lindíssimo!

Canzoada Assaltante