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entre as 22 e as 23h00,
na Emissora das Beiras
- 91.2 FM -
ou na rede, em
www.emissoradasbeiras.com
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1
O guarda-nocturno faz a mesma ronda há mais de duas décadas. A rua não é pobre. O guarda-nocturno recebe gratificações que acabam por superar o ordenado mensal. A solidão profissional permitiu-lhe engendrar uma visão do mundo que só podia dar no que deu – uma filosofia anoitecida, lunar, neutra, implacável.
2
A filosofia do guarda-nocturno não é moral nem ética. A bem dizer, nem é sequer uma filosofia. É mais uma colecção de cansaços, um herbário de repetições. Em vinte e poucos anos, o guarda-nocturno repetiu a companhia do cão.
3
É sempre amarelo, o cão do guarda-nocturno. Enquanto o homem verifica o correcto encerramento das portas, o cão repetido ejacula tiros de urina territorial. Sobem ambos de rotunda, no início baixo, até lá cima à sapataria. O mundo termina e recomeça aí.
4
Às quatro da manhã, o homem entra na padaria pelas traseiras. Tira do bolso um embrulho de papel-manteiga com rodelas de paio e lâminas de queijo. Partilha as vitualhas com o padeiro, que entretanto já tirou do forno o pão grande. Cortam o pão e derretem manteiga no coração fumegante.
5
Depois das seis, o guarda-nocturno cumprimenta as quatro raparigas que regressam ao apartamento de cinderelas de aluguer. Vêm enjoadas de champanhe barato vendido caro, mas têm sempre uma graça e uma nota de cinco para o guarda-nocturno.
6
O guarda-nocturno amanhece às nove da manhã, hora inicial do comércio. Desce a rua com o cão ao lado, cumprimentando toda a gente com um dedo levado à pala do boné. Parece um militar benigno. Depois da rotunda, em baixo, entra na taberna e almoça com o cão.
7
A noite volta a acontecer, volta o guarda-nocturno à rua. O cão morreu. O cão nasceu outra vez – e outra vez amarelo, sabedor dos pontos urinários do território. O guarda-nocturno comprou pilhas novas para a lanterna. Está a precisar de calças e de botas novas.
8
Esta noite, há um anúncio novo no painel iluminado em frente à sapataria. É uma rapariga impossível em roupa interior. Uma mulher-lingerie. Uma cinderela de luxo. O guarda-nocturno não sabe inglês mas pensa na rapariga como se soubesse.
9
O guarda-nocturno abre uma garrafa de champanhe barato. O padeiro admira-se.
– Faço hoje anos, acho eu – explica o guarda-nocturno.
O padeiro brinda com ele e atira uma rodela de paio ao cão.
– Eu lembrei-me – diz o padeiro. – Fiz um bolo e tudo.
O padeiro, o cão e o guarda-nocturno comem metade do bolo. O guarda-nocturno embrulha o resto para dar às cinderelas das seis da manhã.
10
Ninguém guarda a casa do guarda-nocturno. Não é nesta rua, a casa dele. Ninguém da rua sabe onde é. O cão sabe – e é por isso que vai sempre à frente.
O guarda-nocturno faz a mesma ronda há mais de duas décadas. A rua não é pobre. O guarda-nocturno recebe gratificações que acabam por superar o ordenado mensal. A solidão profissional permitiu-lhe engendrar uma visão do mundo que só podia dar no que deu – uma filosofia anoitecida, lunar, neutra, implacável.
2
A filosofia do guarda-nocturno não é moral nem ética. A bem dizer, nem é sequer uma filosofia. É mais uma colecção de cansaços, um herbário de repetições. Em vinte e poucos anos, o guarda-nocturno repetiu a companhia do cão.
3
É sempre amarelo, o cão do guarda-nocturno. Enquanto o homem verifica o correcto encerramento das portas, o cão repetido ejacula tiros de urina territorial. Sobem ambos de rotunda, no início baixo, até lá cima à sapataria. O mundo termina e recomeça aí.
4
Às quatro da manhã, o homem entra na padaria pelas traseiras. Tira do bolso um embrulho de papel-manteiga com rodelas de paio e lâminas de queijo. Partilha as vitualhas com o padeiro, que entretanto já tirou do forno o pão grande. Cortam o pão e derretem manteiga no coração fumegante.
5
Depois das seis, o guarda-nocturno cumprimenta as quatro raparigas que regressam ao apartamento de cinderelas de aluguer. Vêm enjoadas de champanhe barato vendido caro, mas têm sempre uma graça e uma nota de cinco para o guarda-nocturno.
6
O guarda-nocturno amanhece às nove da manhã, hora inicial do comércio. Desce a rua com o cão ao lado, cumprimentando toda a gente com um dedo levado à pala do boné. Parece um militar benigno. Depois da rotunda, em baixo, entra na taberna e almoça com o cão.
7
A noite volta a acontecer, volta o guarda-nocturno à rua. O cão morreu. O cão nasceu outra vez – e outra vez amarelo, sabedor dos pontos urinários do território. O guarda-nocturno comprou pilhas novas para a lanterna. Está a precisar de calças e de botas novas.
8
Esta noite, há um anúncio novo no painel iluminado em frente à sapataria. É uma rapariga impossível em roupa interior. Uma mulher-lingerie. Uma cinderela de luxo. O guarda-nocturno não sabe inglês mas pensa na rapariga como se soubesse.
9
O guarda-nocturno abre uma garrafa de champanhe barato. O padeiro admira-se.
– Faço hoje anos, acho eu – explica o guarda-nocturno.
O padeiro brinda com ele e atira uma rodela de paio ao cão.
– Eu lembrei-me – diz o padeiro. – Fiz um bolo e tudo.
O padeiro, o cão e o guarda-nocturno comem metade do bolo. O guarda-nocturno embrulha o resto para dar às cinderelas das seis da manhã.
10
Ninguém guarda a casa do guarda-nocturno. Não é nesta rua, a casa dele. Ninguém da rua sabe onde é. O cão sabe – e é por isso que vai sempre à frente.
Caramulo, tarde de 2 de Novembro de 2006
2 comentários:
Quando muito os amigos têm uma métrica, que é dita em estilo de máxima popular: mais vale poucos e bons, desses, um até pode ser um cão, sem o ser, para os amigos.
As histórias maravilhosas que eu vou tendo o privilégio de ler.
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