01/03/2022

REGISTOS CIVIS - 80

© DA.


De outiva - 80

                      


    Venho do doutor’rino – e feliz venho, limpo de outiva. Correu muito bem. Tímpanos lavados, equilíbrio reposto. Guerra na Ucrânia, entretanto: não há remédio para o factor-humanóide. O Piteco não logra sair do sílex talhado em lâmina. Nem pão, nem sabão.

Sim, ouço perfeitamente.
De novo a música do mundo me chega, clara.
Aqui não rebentam mísseis.
Até uma pouca de sol rompe a campânula nublante.
Ganho claramente a manhã anónima.
Suponho que seja diferente no Afeganistão.
Ou no Bronx. Ou em Odessa. Ou em Santiago do Cacém.
Não sei. Estudei pouco, não me documentei para o porvindo.
Uma velhota (fumadora) pontifica na esplanada.
Já hoje caminhei minhas milhas.
Estou de retorno a casa & ao Gato.
Quedo-me aqui um pouco para me ouvir escrevivendo.
É bom andar d’olhos limpos: mas d’ouvidos também não é nada mau.
A velhota fumadora rechupa um cálice de porto.
Valente camarada, a decana, valente colega.
É de talha meã, não se pinta ou enverniza.
Casaco grosso de lã aos florões, calças de flanela.
Sapatos que já trazem de fábrica os joanetes.
Não é por aqui diária, só por ocasião ressuscita.
Tem-me escapado ao verso, ’inda nem o nome lhe sei.

Seguirei demandando modo(s) de dizer o dizível.
Do inefável, há muito sei pertencer à música-sem-letra.
Venho do doutor-otorrino, venho de abóbada aspirada.
Distingo semicolcheias espontâneas no tinir dos vidros.
Não me griteis pois – já pena não vale o esforço.
Fevereiro apenas embora, já andorinhas tracejam a tinta os ares.
Jamais linear é o voo que escrevem no papel.
Lineares, as gaivotas: Asas escritoras / Do verso do vento
– como outrora menormente redondilhei.
É preciso tão-só não ceder flanco ao desespero.
E o desespero é um mano que falsamente te acoita.
É como uma pessoa: mas não te pessoaliza.
Antes as pombas. Gosto muito delas.
Parecem-me fardadas à maneira da PSP de ante-25-de-Abril.
Tenho um Amigo que as abomina, a sério que tenho & abomina.
Se pudesse, voltaria ao passado para me formar ornitólogo.
Não posso. O mais que posso, é ir podendo – nem pouco, nem muito.
Em latência, lamento alguns degraus da minha escadaria.
Ou antes: não os degraus mas a maneira como os pisei.
Passos há que são tiros-nos-pés.

É Genoveva: a senhora tabágico-duriense é Genoveva.
(Duriense, pelo cálice-de-porto, que já repetindo vai.)
Tratou-a pelo nome outra velhota entretanto advinda.
(E aqui o nome desta rima, por ser Benvinda.)
Gostaria (eu) de ser casado com uma velhota desta gama.
Digo: tabacófila, licorófila, bem-aposentada, com quê-de-seu.
E sobretudo velha, pronta a matrícula na Necrologia do Diário de Coimbra.
Com os primeiros tostões da her(d)ança, comprar-me-ia uma estante alta.
Por ordem alfabética, nesta deposit’alinharia:
Aleixo, Ballester, Calvino, Dürrenmatt
Eça, Flaubert, Grass, Homero
Índice de Descontos para a Previdência, Joyce, Kafka, Limite Didade
Márquez, Neville, Ornitologia, Proust
Quevedo, Rilke, Sófocles, Tem-Te-Não-Caias
Uma-Vez-na-Vida, Valéry, Wells, Xenofonte
Yourcenar & Zoroastro.
Talvez não aconteça, não tão depressa ao/ou menos.
Hei que fazer por alternativa vi(d)a.
Al não hei, ’té ora, feito.
Prossigamos pró-bingo porém.

Poucas coisas me sacodem tão quão a elegância do dizer.
(Dizer – é aqui derivação-imperfeita – dita imprópria – da lexical norma, mas.)
Ora que de novo voltei a limpa outiva, ouço, de Genoveva, isto:
Estrafalhos tarrenegassem, alma-do-diabo!
É ao telemóvel que ela isto vocifera: a fantasma fala no éter.
O televisor refere mortos russo-ucranianos.
São, em Coimbra, as 12h07m: a tarde nasce. (Mais duas horas em Kiev.)
Penso nos meus Amigos já extintos.
Eles são alguns já, merecedores todos de contabilidade.
O Alvarito. O Chico. O Tónio. Os Todos.
Ora-Foda-se!
Ora-Ausência.
Não vou daqui enroupar-me de competências que não hei.
(Sei porém que o mano do Abel-das-Águas foi para Vila de Rei.)
Ouço perfeitamente.
Não ouço vozes que em sonhos se não legitimem.
(Vale-me não telefonarem vozes que me não estimem.)
Não tenho (aos pré-58) expectorações, perdão, expectativ’esperanças.



Sem comentários:

Canzoada Assaltante